segunda-feira, 8 de maio de 2023

Histórias de um grande amor




Levei muito anos para escrever sobre meu grande amigo. Dezesseis anos e um pouco mais.

Ainda é difícil, e sua história, às vezes engraçada, outras heroica, às vezes comovente, é também cercada de uma aura de mistério, talvez de fantasia.

Você pode achar estranho, mas falo de um cachorro. Uma amiga minha, Eliana Simonetti, jornalista que trabalhava comigo em Veja, tinha uma cadela que ganhou uma ninhada de dogues alemães, da variedade arlequim, de pelagem malhada. Separou para mim o maior deles, meio folgado, e comilão, para me dar de presente.

Bichinho que já nasce meio grande, dizia ela que, quando acabava com a ração, ele se enrolava e dormia dentro do prato da comida.

Dei-lhe o nome de King.

Eu sempre quis ter um cachorro, a infância inteira, mas meu pai nunca deixou. Aos 36 anos, achava que era hora de fazer todas as vontades não satisfeitas e acabara de comprar um sítio, onde pretendia construir uma casa. Não imaginava que teria, porém, um cachorro daquele tamanho, para matar qualquer vontade.

No sítio, que estava ainda em obras, não havia ninguém para cuidar do bicho. Ele não caberia no apartamento de São Paulo. Eu sempre quis ter cachorro, repito, mas não tinha onde colocar um bicho que, segundo diziam, crescia até ficar quase do tamanho de um leão; queria ele para mim, mas não podia; pensei em dá-lo a minha mãe, que estava se mudando para Brotas, no interior de São Paulo.

Ela comprara e estava reformando uma casa com quintal, em frente à praça central da cidade. Eu e minha irmã Lara íamos visitá-la, durante a obra. Em Brotas, com minha mãe, King teria terra e cimento para andar, e ainda seria companhia para dona Marlene, recém separada, numa cidade com poucos amigos, nenhum parente. Para completar, ele guardaria a casa. Era o meu pretexto. E eu o veria sempre - pelo menos, sempre que fosse para lá.

No fundo, eu também transferia a minha mãe todo o trabalho. Eu era solteiro, livre para ir onde quisesse: por que iria cuidar de um bicho que no futuro iria fazer cocô e xixi como um cavalo?

Tive mais certeza disso quando fiquei um tempo com ele em casa, ainda pequeno, para ver como era, e dar a minha mãe quando a casa dela estivesse pronta e o cão tivesse algumas vacinas. Quase fiquei louco. King escorregava, riscava com as unhas o sinteco, batia com estrondo a cabeça nas portas. Eu não sabia lidar ele, com suas travessuras, mais aquela alegria incontida quando eu chegava em casa.

Ele era um relacionamento sério: dependia de mim e não me largava um minuto. Eu trabalhava em casa, escrevendo, e ele me puxava pelas meias, gania, pulava para chamar a atenção. Um dia, numa explosão de fúria, afastei-o com um chute na cara; ele ganiu, gemeu e, para dor ainda maior do meu coração, voltou e me lambeu o pé, como a dizer que em sua carência suportava tudo, até aquela minha demonstração de destempero e suprema desumanidade.

Eu ainda não estava preparado para aprender a ser gente, com um cachorro. Tão logo ele tomou a segunda vacina, levei o “presente” a minha mãe, que ela aceitou também sem pensar muito.

Minha mãe adorava cachorros, paixão que passou para os filhos. Levava na perna uma feia cicatriz deixada pelo Zorro, pastor alemão preto, de olhos cor de laranja, cão que teve na infância, na Casa Verde. Bravo, bravo, bravo.

Ao meu avô, deu muito trabalho; um dia pulou o muro e mordeu feio o Lolote, filho do Orlando, um vizinho espanhol, que estranhou porque o menino corria na rua, atrasado para chegar em casa. Mordeu feio também minha mãe, mas, por amor ao bicho, ela o desculpava.

Mesmo adorando cachorros, minha mãe não tinha como criar o King. A cada visita, mais de 400 quilômetros dentro de um carro, eu o via crescendo; com quatro meses, estava maior que muitos cachorros, e ficou depois muito grande, mesmo para um dogue alemão.  Também por causa da pelagem, diziam que parecia um bezerro.

Talvez como ao filho, minha mãe não sabia discipliná-lo. Resultado, King pulava em cima das pessoas, principalmente dela; não saía de casa, porque minha mãe não tinha força suficiente para segurá-lo na guia; as coisas iam de mal a pior. Vi o dia em que o cachorro acabaria por machucá-la e, não sem tristeza, ela deixou que eu o levasse embora.

Eu havia comprado o sítio na serra da Mantiqueira com o primeiro dinheiro que ganhei depois de me separar, saindo de casa com a roupa do corpo. Tudo o que recebi do livro que fizera com o jornalista Fernando de Barros, sobre moda masculina, troquei numa canetada por um pedaço de mato no alto de uma montanha pelo qual me encantei e parecia um bom remédio contra a angústia. Sem outro jeito, levei King para lá.


De Brotas para São Bento do Sapucaí, foram sete horas de carro. Um passeio tranquilo, numa tarde ensolarada, na qual pela primeira vez fomos companheiros de jornada. Depois de sair do casamento, eu vivia tão em crise que nem sabia explicá-la. Porém, aquela mudança de ares – um sítio, um cachorro - já andava me fazendo bem.

Fazíamos algumas paradas, esticávamos as pernas, esvaziávamos a bexiga no mato à beira da estrada: dois rapazes sem compromisso.

Deixá-lo no sítio foi uma dor de cabeça. Eliézio, o caseiro, que morava no sítio ao lado, aceitou cuidar de King, dando-lhe comida; mas o cão tinha de morar na obra, mudando de cômodo, à medida em que os pedreiros levantavam paredes, cimentavam o piso, davam forma ao rancho.

Eu subia a montanha sacudindo na estrada poeirenta, que nos dias de chuva virava uma ilha no céu, inacessível pela subida lamacenta, especialmente num morro íngreme, em formato de S. Como bem havia alertado Tiãozinho Neto, dono do bar que me vendera o pedaço de chão, no molhado não subia ali “nem tatu ferrado”.

A antiga tapera, onde eu passara apenas uma noite dormindo entre as aranhas, aos poucos mudava: dois quartos novos, banheiros de azulejos hidráulicos que chegavam no meu carro, arriado quase ao chão. Agora, tinha o cão.

Era ainda o bicho indomável que eu trouxera da casa de minha mãe; ansioso ao me ver, me recebia com mordidas insistentes nos braços, que ficavam lanhados. As feridas depois inflamavam, por causa da baba; ele pulava na gente, enfiando as patas enlameadas na minha roupa, na minha cara, quase me derrubando no chão;  eu me perguntava se podia fazer o que minha mãe não conseguira, ou se era tarde demais.   

O mestre de obras, um senhor cheio de melindres, cansado do King, o colocava para fora da casa em construção, apesar do meu pedido para deixá-lo abrigado lá dentro. Certa vez, ao visitar a obra, num sábado, e perceber que o homem estava deixando o cachorro dormir ao relento, ultimei que fizesse como eu havia falado.

“Melhor esclarecer uma coisa”, eu disse. “Se eu tiver que decidir entre o senhor e o cachorro, eu fico com o cachorro.”

(Eu era foda. Ainda bem que fiquei mais velho. E mais jeitoso)

King passou a dormir novamente na obra da casa, recém coberta. Depois, pedi ao mestre de obras que fizesse um canil com uma cerca de arame do grosso. A casinha de alvenaria ficou pequena e um forno: mandei fazer outra, de madeira. 

As paredes de tábua permitiam um pouco de refrigeração; o lugar não esquentava muito de dia, nem esfriava tanto à noite, como acontece com a alvenaria.

O piso também era de madeira, recomendação de Zé Carlos, veterinário de São Bento: o dogue, por seu tamanho, acaba criando bolsas calosas nos cotovelos quando dorme apoiado num piso muito duro.

A segunda casinha do cachorro não merecia o diminutivo. Era tão grande que um adulto podia entrar e ficar em pé lá dentro, um pouco inclinado. Maria, a vizinha, e faxineira, foi ver a nova residência do King. Com as mãos de roça na cintura, comentou, admirada: “O cachorro é rico!”

A casa ficou pronta e tratei de ensinar King a se comportar, o que não era tarefa fácil. Comprei um manual de auto-ajuda, de um treinador alemão (“Adestramento sem castigo”), para ver como podia lidar com aquele bichão.

Aprendi ali uma lição preciosa. Se o cão te incomoda fazendo algo, você tem que fazer com que aquilo se torne para ele também um grande incômodo. Passei a usar o joelho para detê-lo quando pulava na gente – um animal que, nas patas traseiras, já ficava bem maior que um homem de boa estatura.

Tirei dele também a mania de, excitado com a minha chegada, morder os meus braços – mordidinhas amigáveis, mas que me deixavam as feridas infeccionadas. Passei a dar batidinhas em sua cabeça, como numa porta, quando ele me mordia. Depois de algum tempo, desistiu.

Logo, King se tornou um cão educadíssimo. Respondia a chamados, sentava, ficava parado ao meu comando. Sobretudo, não pulava mais em ninguém, nem mordia. Mas era bastante independente. Tinha personalidade própria. E opinião.


Afinal a obra ficou pronta. Era um lugar ainda de acesso dífícil, onde o celular em sua rudimentar gênese (um Startac tipo flip flop, moderníssimo para  época) não pegava. Porém, eu tinha a casa na montanha, e um cão. Andávamos juntos pela mata, diante da paisagem soberba, com o vale verde rodeado por picos que, de manhã, levantavam do lençol de nuvens brancas; respirava ali o ar e a luz da liberdade.


Viramos grandes companheiros. Para chegar lá no alto, comprei um jipe Wyllis de oito lugares (o "Bernardão"), quase uma peça de museu, mas com ele descia e subia a montanha abaixo para passear com King na cidade ou nas estradas de terra que serpenteavam a partir do que eu chamava agora de casa.

Fazíamos também longas caminhadas, de dia e de noite. Eu andava com ele preso à corrente; aparecíamos nas festas da roça, caminhando pelas estrada de terra sob a noite estrelada.

Logo percebi que ele podia ser também um sério perigo. Certa tarde, eu esperava meu pai sentado no banco de concreto dentro do bar do Tiãozinho, na saída de São Bento para o bairro do Serrano. O cão estava sentado na minha frente. Por sorte, eu o mantinha seguro pela coleira. Meu pai apareceu na porta do bar e veio na minha direção, para me abraçar. King estranhou o homem vindo para cima de mim - saltou no ar e, no trajeto, já virou a boca, para pegar meu pai pelo pescoço.

Como eu disse, por sorte eu o segurava pela coleira, um enforcador com anéis de aço. Detive o cão quando já ia fechar a boca no pescoço do meu pai, que deu um salto para trás e parou com um baque das costas num carro estacionado em frente, na rua. Tiãozinho Neto, que estava no balcão, assistiu tudo. Nunca mais chegou perto do cachorro.

Não era só no dono do bar que ele punha medo. Começava pelos cães da vizinhança. Certa vez, um Weimaraner de bom tamanho, cachorro do Barrinha, que eu visitava, rosnou para King. O dogue mal se mexeu: com uma pata, deu-lhe um tapa na cara, como se fosse gente, e jogou o outro cão para longe. Foi o bastante: nunca mais brigaram.

Ele punha medo também na vizinhança. Certo carnaval, encontrei-o magro, inerme, depois de ter sido envenenado por alguém que não o queria mais ali na montanha.

Durante quatro dias, eu o alimentei na boca, como a um bebê, com colheradas de xarope de guaraná. Punha sua cabeçorra no meu colo e fazia com que sorvesse o líquido pela língua, com dificuldade. Ele permaneceu três dias deitado ao lado da porta de entrada; na quarta-feira de cinzas, se levantou, ainda cambaleante.

O envenenamento ligou o alarme. Eliézio fez algo inteligente. Um dia, ao chegar, reparei que alguém havia cortado pelos do cachorro, que tinha nas costas uma marquinha de tesoura. Para tirar o medo das crianças, o caseiro tinha feito uma sopa de pelo de cachorro. Jogou os pelos na água fervendo. Quem bebesse daquela sopa mágica, estava a salvo do cão. Assim, a vizinhança ficou pacificada.

Mais, as pessoas do morro começaram a pensar que King cuidava de todos, ali, botando medo nos estranhos, que, claro, não tinham tomado a sopa de pelo de cachorro.

 

Minha mãe o adorava: ficava companheiro dela, quando vinha ao sítio. Minha irmã Lara, também sempre ali, igual. Era o nosso cachorro, e de todo mundo.

King me ensinou muitas coisas, a mais fundamental delas a importância do amor e da comunicação sem palavras, que eu, como jornalista, até então valorizava demasiadamente. Percebi, com ele, que a palavra não era a intermediária para tudo. Nem é com palavras que escrevemos muita coisa, e sim com sensações e emoções.

Eu não conhecia a mim mesmo, meus sentimentos, bloqueado pelo esforço sempre profissional da palavra: a racionalização de tudo. Naquele plano, não podia resolver problemas afetivos, que só podiam ser resolvidos no plano afetivo.

Com aquele animal, que gostava de mim sem nada dizer, e me compreendia sem nada ouvir, passei a entender melhor o que sentia, e a manifestar meus sentimentos da mesma forma: sem palavras, sem prevenções, intermediários, o que equivale dizer, sem medo.

Nós nos entendíamos e nos ajudávamos, principalmente diante de grandes e reais perigos.

Certa manhã de domingo, andando no mato, entramos no sítio do Zé Janico, homem que morava sozinho no alto da montanha e que, picado de cobra no pé, internado na cidade, tinha deixado ali a casa e um burro bravo, sem cuidados.

Eu não sabia que o burro estava ali, um lugar ermo, com uma casa que mais parecia um galpão enfiado no mato. Caminhava para a porteira, quando vi King sair correndo de trás da casa, e o burro atrás dele, para pegá-lo de manotada.

Era um burro cinzento e poderoso, com o qual Janico puxava o cadáver das vacas que caíam do despenhadeiro no ribeirão, um lugar íngreme e fundo. Corri para a porteira, passei para o lado de fora. King começou a correr em círculos, com o burro atrás, tão perto, que o cão não tinha tempo de agachar-se, para escapar por baixo da cerca de arame.

Eu o chamei pelo nome. Ele veio. Abri a porteira e deixei espaço apenas suficiente para ele passar. Só vi uma coisa branca zunindo a meu lado, como um raio, e bati a porteira.

No mesmo instante, o baque: o burro brecou nas quatro patas e estava tão em cima que bateu com o peito na porteira, na minha frente - pude sentir o seu bafo. Saímos dali os dois, eu e o cão, ofegantes, eu com as pernas trêmulas e o coração quase saindo pela boca.

Um dia, andando também pelo mato, sem a corrente, ele entrou a brincar num chiqueiro de porcos, mas, em vez de divertir-se, os porcos o atacaram. Nada vi, pois todos estavam atrás de uma grande pedra. Só ouvi uma gritaria de porco. Depois, fiquei sabendo de outro matuto, dono do chiqueiro, Zé Tida, que King havia levado uma corrida dos porcos, revidara e tinha dado uma mordida que arrancara um pedaço das costas de um cachaço.

O bicho não morreu, apesar da febre. Dali em diante, porém, King passou a não gostar de porco - corria atrás de todos o que encontrava pela frente, e para matar. Tive que passar a andar com ele seguro pela corrente sempre.

Num dia em que achei que podia deixá-lo andar sozinho, sumiu atrás de um porco que viu ao longe - e de repente, desapareceu, como por mágica.

Fui atrás do vizinho mais próximo, Tiãozinho Costa, pedindo ajuda. Ele me guiou até uma caverna, que ficava embaixo de uma pedra: tão grande que parecia uma capela subterrânea.

De um lado, havia um fosso, um buraco que levava à superfície. O porco tinha caído ali por aquela abertura e o cão mergulhara atrás dele. Aquela tinha sido a mágica do desaparecimento.

Achamos o porco no fundo da câmara, deitado, imóvel, em silêncio, sobre uma plataforma de terra que parecia um altar. Chegamos perto, devagar, porque o bicho podia estar ferido, e brabo. Estava, contudo, morto.

O porco pertencia ao Pé de Ferro, apelido de outro vizinho, que morava mais acima, no fim da estrada, alto na montanha. Ele trouxe um maçarico ligado a um botijão de gás, queimou a pele do porco e distribuiu os pedaços à vizinhança. Não comi nada, sem estômago, mas o porco, tive que pagar inteiro.

Cansei de pagar por bichos, depois disso, por causa do cachorrão. Certa vez, King juntou-se a um bando de cachorros que seguiu uma cadela no cio, até uma fazenda de carneiros, já na virada da serra para Gonçalves, longe. Ficou uma semana sem voltar. No sábado, quando cheguei, e o caseiro Eliézio me avisou do seu sumiço, fui procurá-lo. O funcionário da fazenda me levou por um pinheiral onde se avistavam no chão pedaços de carneiros espalhados por todos os lados - pernas, cabeças, coisas assim.

- A gente já tinha visto ele com você, por isso não atiramos - disse o homem. - Mas ninguém teve coragem de chegar perto dele.

Achei o cachorro na matilha, simplesmente passei a guia na coleira e o levei embora. Lembro de quanto paguei à dona da fazenda: 60 reais cada um dos nove carneiros mortos. Na época,  era um bom dinheiro.

King não havia comido nenhum carneiro. Quando parei o carro na igreja da Sagrada Família, para lhe dar água, seu estômago fazia barulho: estava colado, de fome. Porém, como era o cachorro maior, os outros não tinham dono, e era dele que tinham medo, recaiu a conta sobre mim.


Dali em diante, King passou a pegar vacas, bichos maiores. Um dia, numa estrada vicinal, topamos com um burro velho de um vizinho que encarou a gente, bufou, não nos deixou passar. Eu estava com King na coleira, soltei, ele entrou pelo mato e sumiu. O burro entrou no mato atrás dele.

Segui caminhando. Entrei na estrada principal, comecei a descer a ladeira, num lugar onde a estrada tinha um barranco alto, à direita, e uma cerca de arame farpado, à esquerda. Ouvi um barulho, e lá de cima, vindo morro abaixo pela estrada, corria o cachorro, perseguido pelo burro. Fui para o lado da estrada e rolei por baixo da cerca de arame, para sair do caminho.

Testemunhei, então, uma impressionante cena de caça, que durou um piscar de olhos. Quando King passou na minha frente, fugindo do burro, de repente deu um salto e voou para o alto do barranco, bem na minha frente, do lado oposto da estrada. Câmera lenta: o burro, surpreso, tentou brecar, arrancando a poeira do chão com as patas. Enquanto se arrastava ladeira abaixo na brecada, virou a cabeça para o barranco, procurando onde o cão estava. Nesse instante, o caçador virou caça. King, do barranco, completando uma manobra de tigre, caiu sobre o burro como uma fera, fechou a boca no pescoço do burro, derrubou-o no chão e ali o deixou pregado.

Logo vi que o mataria - era uma questão de tempo. Corri até o cachorro, que tinha o burro dominado, passei a corrente de ferro pela coleira e tentei puxá-lo, tirando-o do pescoço do animal. Porém, ele não se moveu. Eu nem sabia que tinha aquela força: naquele frenesi, puxei de tal forma que a corrente de aço rebentou na minha mão.

Fui buscar ajuda, de novo. Quando voltei com vizinhos, da família de Barrinha, porém, não havia nada na estrada: nem burro, nem cachorro. Achei King pouco depois: tinha ido beber água num regato, pescoço empapado com o sangue do burro. Este era velho, e esperto. Fingira-se de morto. Quando o cachorro foi embora, fugiu tropegamente até o fim da estrada: foi encontrado, semimorto, lá embaixo, no vale, tropicando pelo asfalto.

Como eu tinha comprado uma casa no Morumbi, em São Paulo, quis levá-lo para lá. King guardaria a casa e lá não mataria nenhum bicho, pensei. Engano. Acostumado a viver livre, andava estressado e atacava as visitas, como os padrinhos de meu filho, que tiveram de correr dele, e amigos. Tive de levá-lo de volta para o sítio. Comprei uma cadela para tomar conta da casa e, quem, sabe, cruzar com ele, para termos filhotes.

A cadela tinha a mesma pelagem arlequim. Mel ficou o seu nome, por conta da cor dos olhos. Uma vez, eu a levei para o sítio, de modo a conhecer King e movimentar-se no espaço maior. Só não pensei que Eliézio, o caseiro, estava acostumado a entrar ali sem pedir licença. E não sabia que Mel estava por lá.

Quando abriu o portãozinho da entrada, Mel o viu. Disparou como uma seta na direção do caseiro. E deu o salto, virando a cabeça já no ar, para pegá-lo pelo pescoço.

King também viu Eliézio entrar. E Mel correr na direção do caseiro. Parece mentira, mas foi exatamente isto o que aconteceu.

King, que estava bem mais longe, num baixio do terreno, arrancou na direção do caseiro. Quando Mel se projetou no ar, a boca virada para apanhar Eliézio pelo pescoço, King também saltou. Com seu corpanzil de mais de 90 quilos, interceptou Mel no ar, jogando-a longe com uma trombada. Ela caiu rodopiando no gramado, sem entender o que tinha acontecido. Viu King, que Eliézio tratava todos os dias. Ele então olhou para ela e emitiu um bufo, uôuf! - como a dizer: "este não".

Era isto o King: um herói. Não sei de onde ele havia tirado aquela índole, mas era um ser admirável.

Tinha também um estranho sexto sentido. Aos sábados, eu chegava por volta das duas da tarde, pois trabalhava na sexta até a madrugada de sábado e, ao acordar, partia para a casa do mato. Encontrava King na estrada, sentado sobre uma pedra, à minha espera.

- Ele fica sempre aí? - perguntei ao Eliézio.

- Não. Ele sobe nessa pedra sempre às duas da tarde de sábado, a hora que você chega, e fica esperando.

- E como ele sabe que é sábado e duas da tarde?

- Não tenho ideia.

Aquilo fazia parte da minha vida, e me fez falta no ano que passei morando em Nova York. Quando voltei, éramos os mesmos - ou quase. Cachorros grandes ficam velhos mais cedo, e King estava já indo para o final da vida.

Passou a sofrer alguns problemas. Teve um tumor na bolsa escrotal; os veterinários queriam extirpar toda sua genitália. Não deixei. Achei que ele podia viver com mais qualidade com uma cirurgia menor. Viveu mais um ano, depois disso, e morreu de velho, numa quinta-feira, quando eu estava em São Paulo.

Nesse mesmo dia, minha mulher, grávida de nove meses, teve contrações. As contrações pararam e o médico disse ter sido alarme falso. Passou uma semana e eu estava preocupado. Para mim, o cão tinha aquele estranho sexto sentido e eu acreditava que sabia das coisas. Tinha morrido na quinta-fera, dia justamente das contrações, porque o menino estava nascendo, como quem diz: "você já tem companhia, agora eu posso ir embora".

Mas o menino não tinha nascido.

Passada uma semana, eu estava preocupado com aquele atraso. No exame de rotina, sentado ao lado do médico, olhando a imagem do ultrassom da criança, projetada em uma tela na parede do consultório, eu disse que havia algo errado. Não expliquei ao doutor Eduardo que achava isso por causa do cachorro, é claro.

O médico, olhando a imagem, balançou a cabeça.

- Não tem nada de errado, segundo a imagem - disse. - Porém, se você está preocupado, vamos ao hospital tentar induzir o parto.

Foi o que fizemos. À uma da tarde, no mesmo dia, eu estava no hospital com minha mulher. Ela deitou numa maca, instalaram eletrodos para medir seus batimentos cardíacos, assim como os da criança.

Tomou os remédios para acelerar contrações - a indução do parto. O que era um procedimento de rotina, porém, de repente virou emergência. Cada vez que ela tinha uma contração, de 180 os batimentos cardíacos do bebê caíam a 60, 40...

O médico foi chamado às pressas e realizou a cesariana. Nunca passei tanto medo na vida. Vi quando ele abriu a barriga, camadas e camadas, e de lá do fundo puxou a criança. Por trás da máscara azul, ele então sorriu amarelo, ou assim o imaginei, quando puxou o cordão umbilical, enrolado no pescoço da criança, como um elástico.

- Ele não tem nenhuma sequela, mas no fim foi bom termos feito o procedimento, porque assim ele poderia entrar em sofrimento - disse.

O problema não aparecia na imagem, mas eu o pressentira, alertado, de um jeito talvez meio espírita, pela morte do cachorro. Na quinta-feira, era para ter acontecido o parto - mas o cordão impedia o bebê de ser empurrado para a saída, segurando-o pelo pescoço. A cada contração, o cordão o enforcava.

Por pouco, não ocorrera algo grave. Eu pensava que aquilo tinha sido o sinal de King, ele sabia que aquele era o dia do bebê nascer. Graças a este sinal, eu havia insistido em levar a mãe de meu filho ao hospital. A criança estava a salvo, e, a meu ver, quem a salvara tinha sido o cachorro.

Pode rir ou duvidar. Eu, estou convicto.

Pelo celular, quando soube da sua morte, eu pedira a Eliézio para enterrar King num lugar que eu jamais saberia. Ainda hoje não gosto de pensar que ele morreu. Prefiro acreditar que está vivo, presente, um espírito do bem a nos guiar - a mim, seu amigo, e meu filho, a quem penso ter transferido o amor dele por mim.

Um amor maior, que não precisa de palavras, onde o heroísmo está sempre presente e que eu carrego comigo por montanhas acima das nuvens.



segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

O inventor do carnaval

Em A Criação do Brasil, conto como um governador, para safar-se de uma difícil situação política, inventou o carnaval, ou o que seria o carnaval. Não por acaso, no Rio de Janeiro.

Em 1641, quando Portugal se separou da Espanha, a quem havia se submetido por seis décadas, o então governador da capitania do Rio de Janeiro, Salvador Correia de Sá e Benevides, consultou a elite local, que decidiu ficar ao lado dos portugueses na cisão. Ocorre que duvidava-se da lealdade do próprio Correia de Sá, da família do ex-governador-geral Mem de Sá, mas nascido em Cádiz, na Espanha.

Ele, então, foi a Portugal, falar com o novo rei, Dom João IV. Não apenas prestou-lhe fidelidade como apresentou um plano para a restauração do império português. Fomentaria a guerrilha contra os holandeses no nordeste, protegeria os cargueiros de açúcar, mandaria os bandeirantes paulistas avançarem sobre território colonial espanhol e retomaria as posses portugueses na África, de onde vinha a mão de obra escrava.

Ao voltar para o Rio, mandou organizar uma grande festa, marcada para logo depois da Páscoa, de forma a celebrar a restauração do domínio de Portugal. A festa, que consistia numa série de jogos, origem do entrudo e depois do carnaval, era obrigatória - quem não aparecesse seria considerado traidor da coroa.

O governador, lembrado pela ilha onde construiu o maior estaleiro da época, bem como pelos escândalos de corrupção e aumento da taxação que levaram à "revolta da cachaça", cumpriu todas as suas promessas ao rei. E, de quebra, foi o inventor do carnaval carioca, que até hoje parece uma celebração obrigatória da felicidade nacional.

Para saber mais, leia A Criação do Brasil (1660-1700).
 

domingo, 29 de janeiro de 2023

O destino dos nossos sonhos

Qual será o destino dos nossos sonhos?

Eu já acreditei que poderíamos melhorar o Brasil, que com democracia e liberdade teríamos mais igualdade e este país se tornaria de primeiro mundo. Também acreditei em sonhos de amor, com aquela energia transformadora que se confunde com a energia da juventude.

As coisas não saíram como eu pensava, para mim e para o mundo, e creio que divido esta sensação com muitos da minha geração. Todos os nossos esforços, baseados nos melhores sentimentos, por vezes parecem desperdiçados. 

Não sei se isto é amadurecer, um ciclo em que o mundo se mostra autônomo outra vez e foge ao nosso controle, aos nossos projetos, à nossa vontade. Sobretudo de paz, amor e felicidade, individual e coletivamente.

Não sei, mas a história do que vivemos me deu este livro: Asas sobre nós. É um poema, do tamanho de um livro, que pode ser lido aos pedaços ou corrido. Um livro de história, mas não a história dos fatos, que estão no Google, mas a história dos nossos desejos, dos nossos sonhos, do nosso esforço de transformação - o espírito do nosso tempo.

Creio que fala a muita gente, embora hoje eu saiba que as pessoas que pensam, refletem, cultivam a civilização sejam sempre poucas, no conjunto da sociedade. É o que eu acho ser a verdadeira elite.

Tive uma mulher que me disse certa vez: "você precisa parar de escrever para ninguém". Talvez Asas sobre nós seja mesmo um livro para poucos, ou mesmo ninguém, isto é, só para mim mesmo. Talvez eu só estivesse com a pessoa errada. Porém, reflete o meu amor, meu empenho pela vida, e meu desejo de criarmos um bem que possa um dia ser para muitos, iniciado com poesia.

Repito: qual será o destino dos nossos sonhos?

Para comprar:

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terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Aquela hora


Aquela era a hora de você me dizer eu te amo

aquela era a hora de dizer quero ficar com você

naquela hora

eu teria feito qualquer coisa para ficar do seu lado

naquela hora eu te amaria para sempre


Naquela hora você decidiu ir embora

naquela hora você mostrou que nada era real

aquela hora

que eu ainda sinto agora

fez nossa vida virar do bem para o mal


Naquela hora eu ainda te amava

e depois sofri tanto que já nem sei

depois daquela hora nunca mais eu fiz planos

nunca mais eu sonhei

amaldiçoei meus grandes enganos

naquela hora tirei minha coroa de rei

 

E se hoje não vejo mais o que havia de belo

e encarar a verdade é como morrer

desejando ter sido tudo só um pesadelo

que apenas fosse um pesadelo que eu pudesse esquecer

Thales Guaracy, 

siga @livroespelho

sábado, 10 de dezembro de 2022

Você conhece um psicopata?

 Você conhece um psicopata? Com certeza, só que provavelmente não sabe.

Por recomendação de uma amiga psicóloga, vejo os vídeos esclarecedores sobre psicopatas, da Dra Ana Beatriz Barbosa, psiquiatra, autora de Mentes perigosas: o psicopata mora ao lado.

Imaginamos um psicopata como o serial killer dos filmes, um criminoso frio, sanguinário e serial. Bem, ele existe, mas são os casos mais extremos. O psicopata, porém, não precisa matar ninguém para ser psicopata. Ele pode ser apenas frio e relevar o sentimento alheio, fingindo afeto, por um interesse próprio. Pode não cometer nenhum crime, mas estraga a vida de muita gente. E pode ser uma mulher.

O “psicopata afetivo”, como Ana Beatriz chama essa espécie mais genérica, representa cerca de 4% da população. “Estatisticamente, numa família, ou no trabalho, sempre tem alguém assim”, diz ela.

O psicopata não tem empatia com o outro. Tem lógica, mas não tem afeto. Não sente culpa, ou remorso. Dentro de uma relação afetiva, é um manipulador. Finge um afeto que não existe. É um mentiroso contumaz. “Para o psicopata, mentir é um jogo, em que o outro cai, e por meio do qual ele reafirma a sua inteligência.”

Pode ser sedutor (ou sedutora). Uma pessoa “maravilhosa, o melhor sexo que existe”, diz ela. Isto porque o sexo, para o psicopata, é um instrumento de envolvimento, de sedução.  “Ele pratica o sexo que você quer receber”, diz ela.  “É um grande ator”, diz ela. Ou atriz.

Esse transtorno de personalidade faz com que a pessoa se torne uma máquina programada para obter, sempre, na relação com o outro, “status, poder, prazer e diversão”. A outra pessoa é um objeto, ou um veículo para o psicopata chegar a esse objetivo.

“É uma relação inglória”, afirma Ana Beatriz. A outra pessoa existe para ser usada. Psicopatas constituem família para dar satisfação à sociedade e ter algum ganho pessoal. Se a outra pessoa pode proporcionar algum tipo de status, poder ou diversão, o psicopata vai atrás daquilo que a pessoa pode lhe dar.

Quando não há mais interesse, ele desliga. Desaparece. E tenta não deixar traços. Vai mudar para outra pessoa, ser outra pessoa, então corta antigos vínculos, testemunhas do passado.

O psicopata é uma maneira de ser. Vê o mundo de outra forma. É difícil imaginar uma pessoa sem afeto, pois trata-se de uma minoria. Por onde passa, porém, deixa um rastro de destruição, financeira e nas pessoas que fez acreditarem nele.

Como identificar um psicopata? “Atitudes maldosas, praticadas de forma repetitiva, o sarcasmo, fazer o outro se sentir inferior, ou culpado, até pelas coisas que o próprio psicopata fez”, explica Ana Beatriz. “A encenação, se fazer de vítima: ele está sempre contando uma história triste, como tendo sido prejudicado por outros, para que se tenha complacência com ele.” Porque a pena é um dos sentimentos que mais fragilizam os outros. Ao causar pena, a outra pessoa se torna manipulável.

A presa mais fácil do psicopata, diz ela, são as pessoas generosas, que têm brilho próprio, alguma coisa bonita. Psicopatas são parasitas, ou insetos em volta da lâmpada: se aproximam  de alguém que brilha. Ele vai na pessoa para sugar o que ela tem de melhor.

“Uma pessoa que se relaciona com um psicopata, se relaciona com um vampiro”, diz ela. “Eles são vampirizadores. Vão tirando a energia do outro: a gente vê a pessoa perdendo o brilho, a alegria. A dominação deles é essa.”

Entram na vida de um homem ou mulher, fazendo o outro achar que é o homem ou mulher da sua vida, sempre entusiasmado, porque o psicopata representa muito bem esse papel. Ele é alegre, é gentil, ele faz tudo. “É um camaleão”, diz ela, por apresentar-se da forma como a outra pessoa deseja que seu companheiro seja.

Quando o psicopata vê que alguém caiu na sedução, seduz também amigos e parentes. Porém, começa a se mostrar na intimidade. Para fora, continua fazendo pose, mas, por dentro, o relacionamento se torna tóxico: tudo o que faz, sempre dá um jeito de a outra pessoa ser a culpada.

Se não consegue jogar a culpa em mais alguém, o psicopata faz a vitimização, para que tenham pena dele. Assim a outra pessoa lhe dá mais uma chance, e depois outra.

O psicopata, ou a psicopata, sabe que é assim, e que se utiliza das pessoas. Não ama, mas se liga pelo “jogo do controle, ou ter a vida do outro sob seu controle".


Antes de sair da relação, é melhor não entrar – é preciso identificar o comportamento pela história patológica pregressa da pessoa. Psicopatas repetem os mesmos erros, porque a memória é marcada pela emoção - se não sofre com os erros, e não se arrepende, ele os repete. Por isso, também, cedo ou tarde acabam sendo descobertos.

O relacionamento com o psicopata é sempre abusivo. Uma pessoa aberta a amar se relaciona a alguém que não amará ninguém, nunca. E apenas a usa, ou abusa. Não tem cura, porque não é doença, é maneira de ser.

Quem se relaciona com um psicopata sofre, porque se relaciona com alguém que faz com que o outro tenha sempre sentimento de culpa. O psicopata nunca erra: é sempre o outro, e ele faz com que o outro se sinta um incapaz. O outro acha estar com aquela pessoa maravilhosa, que é do jeito que ela quer, e isso é corroborado pelo fato de que até seus próprios parentes aprenderam a gostar dela. A realidade, porém, é bem outra.

O outro se apaixona por quem o psicopata se apresenta, mas essa pessoa não é ele. A grande dificuldade de quem se apaixona por um psicopata é admitir que aquilo que ela achava que era amor nem sequer existiu. “Não existe amor com quem não sente amor”, diz Ana Beatriz.

De novo: você conhece um psicopata?

sábado, 3 de setembro de 2022

Dez livros importantes

Uma lista dos dez obras literárias que mais me influenciaram (não necessariamente as melhores,  porém as mais importantes para mim):

1. Quo vadis. Poderia ser Ben Hur, mas este livro, escrito por um polonês de nome impronunciável, ainda no século XIX, foi o primeiro romance que li, ainda criança, e me fez gostar de ler, transportado  no tempo até a Roma de Nero e dos escravos cristãos.

2. Sidarta. Do mestre do romance espiritualizado, cujas imagens uso em minha obra até hoje: Herman Hesse.

3. Tia Julia e o Escrevinhador, de Llosa. Como não querer viver escrevendo depois disto? Vou espremer aqui Dossiê Odessa, de Frederick Forsyth: como não querer ser jornalista, depois deste romance sobre um repórter solteiro, dono de um Jaguar,  com a namorada mais bonita de Munique, e que larga tudo diante da oportunidade que lhe cai nas mãos de fazer... Justiça?

4. Dom Casmurro, Machado de Assis. Admiro o refinamento intelectual, e o conteúdo, tão verdadeiro: aprendi com ele as sutilezas da alma humana e, sobretudo, o quanto a felicidade pode ser enganosa.

5. Incidente em Antares, de Érico Veríssimo. É uma grandiosa parábola do Brasil, sobre uma cidade onde o passado fantasmagoricamente  não larga o presente. Mas quando o li, aos 14 verdes anos, o que me impressionou, mesmo,  foi a putaria.

6. Metamorfose. Poderia ser qualquer livro de Kakfa, mas este é o que mais me fez entender o coração (quero dizer, o meu).

7. 1984. O romance sombrio, estranho e profético desse gênio, ícone do engajamento da literatura com a vida e vice versa, para mim talvez ao lado de Kafka o maior escritor da era contemporânea: Orwell.

8. Folhas da relva, de Walt Whitman. Toda a vida dentro de um livro. Fica na minha cabeceira, como uma oração.

9. A Bíblia. Li três vezes inteira, de cabo a rabo, parte de minha pesquisa para o romance O Homem que Falava com Deus. O grande épico mitológico da história da Humanidade, com lindas passagens (destaco o Gênesis, os Salmos, o Livro da Sabedoria, o Livro de Jó) e a história de Jesus, o maior revolucionário de todos os tempos, pregando a simples ideia de que todos somos iguais.

10. Os últimos deveriam ser os primeiros: Fédon, o diálogo de Platão que narra a morte (e última aula) de Sócrates, o Jesus dos intelectuais.

Hum... deu 11, e é pouco.🤣


sábado, 6 de agosto de 2022

No mundo do criador. Meu perfil de Jô Soares, para VIP, novembro de 1995

Embora fosse o entrevistador mais célebre do Brasil, o showman Jô Soares raramente concedia entrevistas. Em 1995, abriu-se a janela para uma delas, quando ele promovia o lançamento de seu primeiro romance, o policial satírico O Xangô de Baker Street. Em seu apartamento no bairro de Higienópolis, Jô recebeu a mim e ao diretor de redação de Vip na época, Marco Antônio Rezende, com a condição de que somente poderíamos publicar a reportagem depois que passasse pela sua leitura. No início, pensei ser algo inaceitável na imprensa. Hoje, vejo o pedido dele mais como uma gentileza entre colegas de profissão.

Jô concordou em falar sobre tudo, até mesmo seu filho Rafa, sobre quem sempre deu poucas declarações. Posou de bom grado para uma sessão de fotografias, com o tradicional terno e gravata borboleta, conjunto ao qual fez questão de acrescentar um charuto. Muito cioso e experiente no controle da própria imagem, queria surgir no seu coté mais intelectual.

Voltamos à casa de Jô uma segunda vez com o texto pronto, para o momento delicado da leitura por parte do personagem.

– “Luzinhas piscam”? – disse ele, repetindo em voz alta a primeira frase, com uma careta. – É assim que começa?

– É – respondi.

Jô seguiu em frente e o resultado pareceu agradá-lo. Não fez qualquer reparo ou pedido de modificação do texto, nem sobre as tais luzinhas. Eu e Marco Antonio voltamos para a redação aliviados. Tínhamos a capa da revista, sem brigar com o Jô.

O texto original da revista foi publicado num livro de perfis de pessoas célebres, que publiquei pela editora Saraiva (Eles me disseram). Jô virou amigo. Fui entrevistado por ele duas vezes em seu programa, a última delas em 2015, quando lancei A Conquista do Brasil. Eventualmente conversávamos. Jantávamos no Jardim de Nápoli, porque, lá, ele não pagava a conta. E eu aceitava, para pegar carona  na gentileza do dono da casa. Eram jantares sempre divertidos, em que gostávamos especialmente de trocar histórias sobre gente de imprensa - ele conhecia muitas, e era uma delícia ouvi-lo contar.

Estranho que o texto termine falando de uma certa aristocracia que só acabaria junto com Jô. Ele acaba de falecer, para tristeza geral, e, tantos anos depois, continuo pensando a mesma coisa. E este perfil, construído no seu auge intelectual e criativo, ainda me parece o melhor Jô. 

 

(texto)

No mundo do criador

Luzinhas piscam como vaga- lumes eletrônicos na escuridão. Jô Soares acende a luz e aparece a grande biblioteca de seu apartamento, em Higienópolis  São Paulo. Nas estantes de madeira patinada, sob inspiração do arquiteto Sig Bergamin, acomoda-se 2000 livros, a maioria encadernados —sem contar os que há em sua casa de Petrópolis. Como o comandante de uma espaçonave, Jô instala-se na mesa em semicírculo ao fundo do salão. Sobre ela, o elemento mais proeminente é uma elegante caixa umidificadora de charutos, de rádica. De um conjunto de som, faíscam as luzinhas sequenciais. À direita, um poderoso microcomputador Pentium, tela gigante, um aprelho de TV Philips, e a janela onde pousam duas corujas espanta-pombos , de cerâmica, com vista para o bairro arborizado.

            Na parede do outro lado repousa um quadro a óleo em estilo pop de autoria do próprio Jô. É uma caricatura dele mesmo, gostosamente refestelado numa poltrona, com a roupa do Super—Homem e chinelas. Dorme segurando os classificados de um jornal, ao pé do retrato emoldurado de um sujeito bigodudo. “O nome do quadro é O retrato de Nietzsche na casa de seu filho”, explica.

            Não é só auto-ironia que quebra a perfeita organização do ambiente. Pelos cantos, há algumas pilhas do livro que Jó lançou recentemente: O Xangô de Baker Street, sua estréia como romancista. A história, um policial protagonizado pelo legendário detetive Sherlok Holmes no Rio de Janeiro do Segundo Império, é claramente algo com a marca de Jô. Na trama, personagens reais e fictícios se misturam com a naturalidade que ele imprime às suas mais finas criações. Para quem se espantou ao ver Jô romancista,diga-se que o livro já era um sucesso no lançamento.  Nas primeiras três semanas, foram vendidos cerca de 130 000 exemplares de Xangô. Nesse pouco tempo, ele quase alcançou a marca final de Agosto, último romance de um especialista no ramo, o escritor Rubem Fonseca( 160 000exemplares vendidos). E aproximou-se a passos rápidos dos recordistas da sua editora, a Companhia das Letras( Estorvo, de Chico Buarque, e Paratii, de Amyr Klink, com 200 000 exemplares). “Este vai ser o nosso melhor ano”, proclama o normalmente comedido editor Luiz Schwarcz.

            O Jô romancista cavalga com desenvoltura um sucesso do mesmo tamanho do Jô da TV. Mas a nova encarnação de Jô, literato, explodiu de modo um tanto inesperado, até para o editor Schwarcz, que ao lhe pedir um livro sugerira um compêndio sobre a história da televisão brasileira. “Não sei porque estranharam que eu tivesse escrito um romance”, diz Jô, enquanto solicita uma ajudante doméstica, ainda fardada para o seu plantão noturno, uísque com gelo para os seus convidados. Para ele mesmo pede um imbatível guaraná diet- bebida predileta dentre as que se permite. “Isso é um prolongamento da atividade do artista”, prossegue. “Se eu fosse engenheiro ou neurocirurgião , aí talvez se justificasse algum espanto”.

            Não se pode dizer , também, que Jô seja um neófito nas pretinhas, como os jornalistas costumavam chamar a máquina de escrever na era pré- computador. “Eu trbalhei pela primeira vez em jornal em 1961, quando escrevia uma coluna diária no Última Hora”, conta Jô, entre goladas de guaraná. “Era uma coluna com pessoas, artistas e espetáculos.” Na época, como era costume entre a elite do jornalismo paulistano, ficava até altas horas da madrugada em debates boêmios no velho restaurante Gigetto com os colegas da redação .

            De certa forma, nem mesmo os oito anos em que Jô confirmou-se como o melhor entrevistador da televisão brasileira, no seu tradicional programa Onze e Meia, ou escrevendo na coluna semanal na revista Veja, foram suficientes para encobrir sua imagem como humorista e homem de TV e teatro, onde ainda atrai multidões com seu one- man- show Um gordo em Concerto. Até porque ele faz questão de dizer que como jornalista seu principal elemento é também o humor.

            Pode-se ver muita coisa do Jô intelectual em Xangô. Persiste no seu livro a graça com que ele coloca um clássico personagem dos romances policiais, o detetive Sherlock Holmes, e seu amigo, o doutor Watson, a investigar uma série de crimes no Rio de Janeiro do Imperador Pedro II. Ao recriar os personagens a seu modo, inventar outros e ainda entronizar uma participação especial de personagens históricos, como a atriz Sarah Bernhardt e o próprio Dom Pedro, ele se diverte misturando ficção ao documento minucioso da época, o que imprime ao livro uma interessante mistura de graça e erudição.

            Com seus dedinhos , JÔ saca um Hoyo de Monterrey, doble corona, fura a ponta e o acende com prazerosas fumaradas. Diz que este é um velho hábito seu, embora só tenha vindo a aparecer publicamente empunhando charutos agora que está lançando o livro, na condição de entrevistado, e não na de entrevistador. Jô entende de imagens como poucos—e quer mostrar seu lado sério para que não levem seu livro na brincadeira. “Gosto muito de charutos, embora não tenha preferência por nenhum”, ele diz. “Fumo cubanos, porque eles realmente são algo diferente. É como vinho francês e pastel e sanduíche de botequim. O sanduíche em casa nunca é igual ao do bar. Faltam os germes, as bactérias e a mão suja de quem faz”.

            Entre uma e outra baforada, ele se entrega com evidente prazer à tarefa de recompor seu percurso profissional e intelectual. Lembra que em 1965 chegou a passar um dia prestando depoimento no Dops por participar de reunião de intelectuais de apoio à classe teatral, quando esteve entre os integrantes da mesa. Diverte-se ao lembrar: “O policial que me interrogou me perguntou, com grande seriedade: “O senhor sabe que intelectual é palavra inventada pelos comunistas?”

                                                                                                                                    De uma gaveta bem à mão, JÔ saca uma pasta com cópia de sua ficha nos récem – abertos arquivos do Dops paulista, retirada por um amigo. Põe-se a ler, quase embaraçado pela estupidez de uma era passada e obscura: “Elemento  nomeado ministro extraordinário da eucaristia, formado por Dom Helder Câmara...”Explica: “Eu fazia espetáculo no Brasil todo e ajudava na eucaristia. Achava que o leigo deveria participar mais da Igreja e fiz curso em São Paulo com Dom Lucas Moreira Neves. Estive com Dom Helder apenas quando fiz um show no Recife”.

Ele assesta os óculos e prossegue na leitura: “Autor da música Liberdade, proibida pelo Dops”... Nova explicação: “Fiz para o Ari Toledo. A letra dizia que ele queria morar na Liberdade (o bairro de São Paulo), que a rua tal e tal ia dar na Liberdade, mas que a Brasil e a Estados Unidos não iam dar na Liberdade... Claro que a gente fazia oposição como podia”. Jô chegou a ser processado quando trabalhou no Pasquim, naqueles tempos brabos, por causa de um artigo chamado “A cama”. “Dizia que a cama chamava-se cama por causa de seu suposto inventor, um homossexual assumido e famoso chamado Giovanni Cama”, explica Jô. “Daí a frase: Crie fama e deite-se no Cama”. Ri. “Não tinha nada demais, mas era o Pasquim, e qualquer coisa servia de pretexto para censurar a esquerda e podar a livre criação.”

 Talvez Jô acabasse conquistando fama no jornalismo se não tivesse iniciado a carreira de ator no filme “O homem do Sputnik”, em 1958, e começado a trabalhar na TV Rio na mesma época. Depois, foi convidado para a TV Globo pelo amigo Max Nunes, cardiologista que nas horas vagas tornou-se um dos mais talentosos autores de rádio e televisão do país. O mesmo Max Nunes, agora com 73 anos, aposentado da Medicina, com quem Jô ainda faz parceria – é seu co-autor na TV, em caráter de exclusividade. “Fizemos o Faça Humor, Não faça Guerra, ele escrevendo, eu escrevendo e fazendo personagens”, diz. Ele olha para o seu Pentium e lamentou que ainda não estivesse à sua disposição naquela época. “Escrever naquelas máquinas era um trabalho estivador”, diz Jô. “Principalmente a Família Trapo, um programa semanal de 2 horas. E ainda tínhamos de escrever tudo naquelas folhas de mimeógrafo. Ao final, estávamos completamente azuis”. Mas não se pense que o Pentium escreve sozinho. “O ato de escrever”, diz o novo romancista, “é como parir sem ser mãe”.

Jô fez incursões variadas também por outras searas artísticas, nem sempre com o mesmo sucesso, diga-se. Foi o caso, por exemplo, de seu único filme como diretor: “O pai do povo”, de 1975. “Foi uma frustração ter feito um filme que ninguém viu. Pelo menos, virou um cult às avessas”, disse. O Jô artista plástico participou em 1967 da 9ª. Bienal de Artes Plásticas de São Paulo, que ficou conhecida como a Bienal da Pop Art .

O ecletismo de Jô na área artística encontrou correspondência em outros aspectos de sua vida. Declara descaradamente que prefere um gorduroso cheeseburger às iguarias dos melhores restaurantes, embora tenha as de sua predileção, como o boeuf bourguignone do restaurante Daniel e o hambúrguer do P.J. Clark’s, em Nova York, ou o chucrute da Mansion d ‘Alsace, em Paris.

No Rio, Jô aprecia o cardápio do Hipopótamus e a carne seca e desfiada do Pantagruel. Em São Paulo, gosta do Massimo e é fã do polpettone al sugo de pomodoro do Jardim de Nápoli, que oferece a vantagem adicional de ser perto de sua casa. Jô é consumidor voraz também de livros. Entre suas leituras prediletas, relaciona clássicos como Eça de Queiroz, Ernest Hemingway e Dostoiévski, mas também escritores marginais. Como Frederic Brown, autor de contos curtos que ele degusta com prazer, e de um romance intitulado “Os Marcianos Se divertem”. Trata-se da narrativa de uma invasão de “marcianinhos verdes super cafajestes”, descreve Jô, que perseguem as pessoas em toda parte, inclusive na cama.

“Brow tem um humor ferino de que gosto muito”, diz ele. “Acho que os gremlins são fruto direto dos marcianinhos dele.” Para provar que está falando sério, Jô se dirige ao Pentium e tenta puxar o nome do escritor nos arquivos da Enciclopédia Britânica em versão CD—ROM. Nada. “Ele é tão marginal que nem na Britânica está”, diz. Depois, olhou para os livros em sua estante, levanta e busca um volume em francês onde consta uma brevíssima biografia de Brow. “Está vendo?”

Ao passar da bancada do entrevistador para o entrevistado, na esteira do romance, descobre-se um Jô Soares um pouco diferente daquele que todos acham conhecer da televisão. A começar pelas idéias, que muitas vezes deixa filtrar no seu programa, mas que só então aparecem inteiramente explicitadas.  Sua declarada posição ideológica, por exemplo: “Eu sou o anarquista que todo artista deveria ser”, diz. “Preservo a capacidade de criticar a quem quiser.” Essa profissão de fé tem seu lado muito prático. Jô, por exemplo, foi uma das primeiras - e poucas - personalidades a disparar contra o presidente Fernando Henrique Cardoso, uma unanimidade entre seus pares no mundo intelectualizado, ainda antes das eleições para a presidência da República, em 1993, quando decidiu aliar-se ao PFL: “Sou um democrata enraizado”, diz. “Essa aliança com o PFL incomodou todo mundo. E não era necessária”.

Ele também tem opiniões bastante singulares sobre o seu próprio meio. Acha bobagem, por exemplo, a conversa muito freqüente segundo a qual a TV imbeciliza o povo. “A função dela é pegar coisa de fora e levar para dentro da sua casa. Se você não ligar o aparelho , não será nociva, mas também não trará nenhum benefício - nem notícias, entretenimento, filmes. Nada. Na verdade, ela democratizou a informação, que antes era elitizada de modo indiscutível. Tenho empregados que às vezes estão mais bem informados do que eu sobre o que está acontecendo na economia.”

Casado pela terceira vez, com Flávia, Jô cultiva a discrição em relação à sua vida particular. Nas últimas semanas, expondo-se na nova faceta de escritor, acabou tendo de falar de assuntos que antes tenderiam a permanecer no terreno estritamente privado, como religião. Declara-se devoto de Santa Rita de Cássia, de quem tem uma imagem de meio metro de altura bem ali, em seu escritório. Diz que é assim desde criança, por influência da mãe. “Acho que Santa Rita me protege”, afirma. “Como tudo que é irracional, não tem muita explicação.”

Durante um programa Roda Viva, da TV Cultura, o momento mais emotivo foi aquele em que respondeu à pergunta de um telespectador sobre se tinha filhos. “Eu tenho um, hoje com 31 anos, o Rafael”, diz Jô. Rafael, que mora com a mãe, Tereza Austregésilo, com quem Jô se casou aos 21 anos, tem problemas semelhantes aos do personagem autista interpretado por Dustin Hoffman no filme “Rain Man”, embora ele evite mencionar o nome médico para o assunto. “O Rafinha tem um talento enorme para a música, toca piano e compõe”, disse no programa. “Mas ao mesmo tempo não consegue fechar sozinho o botão da camisa.” Alguns dias depois, entrevistado por Marília Gabriela, disse que para ele o problema de Rafinha era “bem resolvido até onde pode ser bem resolvido. Ter filhos com dificuldades é algo difícil de administrar. Mas eu não gostaria de ter outro filho  que não fosse o Rafa”.

Boa parte do dia, Jô passa ali no escritório mesmo, seu reino encantado, onde se sente muito à vontade. Acorda às 11 horas da manhã e dorme às 4 da madrugada. “Leio, vejo vídeos”, relata ele. Às segundas e terças, grava o Onze e Meia. Faz entrevistas também para os demais dias da semana. Grava ainda um programa de rádio, “Jô Soares Jam Session”, e de sexta a domingo apresenta no teatro “Um Gordo em Concerto”. Tira férias da metade de dezembro até março e procura não manter horários rígidos. “Tenho um problema com a pontualidade”, disse.

Nas férias, vai com freqüência a Nova York, onde se hospeda em flats alugados. Da última vez, em janeiro do ano anterior, acabou trabalhando na confecção de Xangô. “Quando estava escrevendo, fui ao Argosy, um sebo fantástico, com computador, na Rua 59, entre a Lexington e a Park Avenue”, disse ele. Lá, comprou a coleção completa dos livros de Sherlock Holmes. “Mas sou cliente fiel da Barnes & Noble, na Broadway com 83”, emenda. Em Manhattan, freqüenta cinema e teatro. “Aqui no Brasil, as salas são pequenas. A shopping não dá para ir, porque quando apareço começa aquela algazarra. Mas não fujo das pessoas, ao contrário, porque sou exibido à beça. Em viagem, ao contrário de muitos artistas que adoram o anonimato, eu fico carente. Sinto falta das pessoas que cruzam comigo sorrindo e me cumprimentando. Fico pensando: o que será que eu fiz de errado?”

Como se veste um escritor grande como Jô Soares? Ele usa jeans feito na Exss, que fabrica jeans de lycra, stone washed, especialmente para ele. Faz seus ternos com a VR. Depois, por amizade ao falecido Rafael Minelli, que confeccionava suas roupas desde a década de 1960, continuou freguês da alfaiataria paulista que leva seu nome. Gosta de gravata borboleta de dar laço — “nunca pinga nada nela” — e cultiva com gosto hábitos europeus, algo muito apropriado para quem estudou na Suíça até a adolescência. “Em Paris, vou à Brasserie Lipp”, diz. “Era amigo do antigo proprietário, falecido monsieur Casè, um fumante de charuto que proibia fumar cachimbo, dizendo que atrapalhava o apetite alheio com aquele ‘perfume adocicado’. Mas ele deixava os charuteiros completamente à vontade” diz Jô, e ri deliciado.


 Mesmo sendo amante de charutos, ele afirma que não tema outras grandes manias, como a de procurar “aquele” charuto. “Eu invejo as pessoas que não têm a menor fixação por objetos, como o Max Nunes”, afirma. “Uma vez lhe perguntei qual a cor de carro de que ele mais gostava. Sabe o que ele respondeu? Nenhuma, eu vou dentro.” Jô gosta de objetos bonitos, mas não faz questão de quantidade. Adora relógios, mas só tem três - o preferido era um Cartier modelo Pachá, de ouro maciço. Carros, também possui três: um Jaguar, um BMW 750 “longo” e um Mercedes conversível. “Tinha uma paixão pelas motos Harley que, como toda paixão, era patológica”, diz. Ela acabou depois de um par de tombos que deixou algumas seqüelas. Jô se levanta, vai até uma parede e empurra o braço contra ela, até conseguir alçá-lo apontando para o alto, único jeito de fazer movimento. Na primeira queda de moto, quebrou um braço. Na segunda, quebrou os dois. “O Max diz que motocicleta, por ter duas rodas, foi inventada para cair”, diz. “Um dia, ela te vence”.

O ar enfumaçado pelo charuto favorece temas mais profundos, de maneira que mudamos de assunto, para falar sobre seu método de criação. Talvez a principal característica de Jô seja a capacidade de reciclar o que vê à sua volta, transformando tudo sob sua ótica bem-humorada, como fazia com seus personagens da TV — alguns extraídos da realidade. Era o caso do português que exclamava “Q’ erias !”, um bordão que ao seu tempo se tornou muito famoso. “Eu estava com papai e mamãe numa estação de águas na Itália, num hotel deslumbrante”, conta Jô. “Havia lá um português grossíssimo e engraçado. Certa vez, vi uma bela italiana ralhando com ele: ‘Farabutto! Mascalzone!’ Era uma daquelas moçoilas que ficavam no hotel à caça dos ricaços que andavam por ali e cobravam 20 000 liras por serviço prestados.” Nesse ponto, Jô imita a reação do português: “’Q’erias! Q’erias vinte, zero é o que vales. Dei-te cinco, lucraste cinco. Q’erias!’  Contei essa história para o Max Nunes e ele achou que tínhamos ali um tipo já pronto”.

Essa característica de Jô também está presente em Xangô, além de um certo romantismo, pela maneira com que ele retrata o Brasil monárquico - cheio de nódoas sociais, mas também dotado de uma adorável leveza. Jô trata de monarquia como um tempo despreocupado e propício a uma boemia na qual se esbarra com figuras como o poeta Olavo Bilac numa mesa de bar ou Ernesto Nazareth ao piano num sarau chique.

Passa da meia-noite. Jô nos acompanha até a porta. Na parede do hall, há um grande painel de João Câmara de um lado e, de outro, a gigantesca estátua de um negro, com um grande sorriso no rosto, usando casaca decorada de estrelinhas e chapéu-coco, como os personagens que abriam a porta dos antigos teatros americanos. Estende a mão enluvada, e alguém deixou ali uma nota de 1 dólar. “Um amigo americano passou aqui em casa e deixou a nota aí”, diz Jô, divertido. “Eu gostei e colei”.

A história lembra outra, contada por Jô na mesma noite. Certa vez, acompanhado do compositor Jorge Mautner, ele discutiu com um negro na Washington Square, em Nova York, em meio a uma passeata de protesto contra os brancos. Tentava prova a ele que compreendia muito bem a situação dos negros nos Estados Unidos, porque, sendo de um país de Terceiro Mundo, também sentia-se discriminado. O negro americano, entretanto, fez pouco caso da conversa daquele brasileiro cordial. “Você é branco”, fuzilou ele, antes de lançar alguns impropérios e seguir na sua marcha. Jô não se conformava que o racismo pudesse ser superior àquela tentativa de aproximação.

De certa forma, em uma fértil maturidade, Jô é o tipo do homem que estaria apto a viver num mundo, passado ou futuro, onde o instrumento da moda fosse o violino, o francês a língua oficial e o fair play a regra de conduta. Infelizmente, o mundo é hoje bastante diferente – mas penso que sempre haverá algo dessa alegre aristocracia enquanto Jô estiver no nosso convívio.