quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Um eletrizante voo pela história


Wendy Fernandes Evangelista e Fernando Alves de Lima e Silva se aproximam da produtora de cinema Joana Henning, no hall dos cinemas Multiplex, no shopping Eldorado, onde tinham acabado de assistir à pré-estreia do filme O sequestro do voo 375, na noite da terça-feira, dia 5. Conversam com Henning e, chorando, os dois se abraçam.

Ambos tiveram suas vidas tragicamente ligadas pela história real narrada no filme. Fernando é filho do piloto Fernando Murilo e Silva, que comandava o voo, falecido em 2020, aos 76 anos de idade. Wendy é filha do copiloto Salvador Evangelista. Tinha oito anos quando seu pai foi morto com um tiro na cabine, quando respondia ao chamado da torre, pelo sequestrador do voo, Raimundo Nonato.

- Se ninguém mais visse o filme, teria valido só por isto - digo a Joana.

- É o spin off - diz ela, com um sorriso.

O sequestro do voo 375 é antes de mais nada uma história humana, a começar pela do piloto Fernando, um herói brasileiro de verdade, desses que são colocados pelas circunstâncias diante de decisões em que a própria vida deixa de ser o mais importante.

O filme assume os relatos dos passageiros, expondo também as versões oficiais sobre tudo o que aconteceu - a do governo e da companhia aérea. Lembra a constrangedora tentativa de acobertar a verdade, típica dos governos covardes e atrabiliários, que carregam ainda muito mais os esqueletos do passado que o embrião do futuro.

Aponta, mais especialmente, que material de imprensa sobre o sequestro foi encontrado nas cavernas do Afeganistão onde havia se abrigado Osama Bin Laden. Sugere que o líder da Al Qaeda estudou o caso brasileiro, no planejamento do sequestro de voos civis para lançar seu ataque às torres gêmeas, em Nova York, assim como o Capitólio e o Pentágono, em 11 de setembro de 2001.

O que Bin Laden aprendeu com o caso brasileiro é que o fator que impediu a execução do plano de sequestro foi justamente o piloto. Como relato em meu livro A Era da Intolerância, o líder da Al Qaeda decidiu treinar os próprios terroristas kamikazes para pilotar os aviões, de modo a assumirem o comando do voo. Não podiam, como Nonato, depender do comandante.

Fizeram cursos de pilotagem, com um detalhe, estranhado pelos instrutores. Nenhum deles compareceu às aulas finais, que versavam, justamente, sobre a aterrissagem.

A história do sequestro acaba sendo um filme de ação, mas é também um excelente painel de uma época. O sequestrador é algoz, mas também vítima - e quem viveu aquele período do Brasil sabe como foi difícil a saga da redemocratização. Foi também o de reeconstrução de uma nação arrasada pela prepotência política e o dirigismo econômico estatal, com suas consequências na vida de todos.

O desespero é a maior fonte do radicalismo e dos movimentos irracionais, que levam aos grandes desastres, tanto dos indivíduos quanto da coletividade. Nestes tempos em que os radicais novamente se levantam, o filme de Joana é, além de grande entretenimento, bastante oportuno.

Mostra que, assim como ocorreu com os instrutores de voo americanos, não podemos ficar indiferentes aos sinais do dia a dia, nem menosprezar aonde as crises podem levar. Um país civilizado e próspero é aquele que não precisa de heróis - embora eles existam e estejam entre nós.

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

O Brasileirão e o que há de errado com o brasileiro












A gente, no Brasil, tem a estranha mania de falar mal da gente mesmo e de achar um lado negativo em tudo o que acontece. Voltamos ao complexo de viralatas, do qual Nelson Rodrigues escrevia, antes de o Brasil ser campeão do mundo pela primeira vez - quando o brasileiro, pelo menos no futebol, deixou essa mentalidade do subdesenvolvimento e passou a ser mais positivo e confiante. A repercussão do Brasileirão de 2023 mostra essa tendência para o catastrofismo, a inclinação para ver somente a desgraça, em vez do mérito. Circula agora na imprensa, nos bares, nas conversas dos torcedores a história de que foi o Botafogo que perdeu o campeonato, e não o Palmeiras que o ganhou. Um jornalista, que atende pela sigla de RMP, fez pouco caso do que teria sido a "arrancada" palmeirense. Disse que não foi arrancada, e sim queda do Botafogo, já que todo mundo se aproximou. Repete o que se fala em toda parte. Sempre é possível ver um copo meio cheio ou meio vazio, mas a inclinação do brasileiro para enxovalhar os derrotados, como um consolo ou conformismo com o derrotismo nacional, assim como desvalorizar os vitoriosos, que são apenas os derrotados de amanhã, é uma característica terrível da nossa personalidade coletiva. E que, diga-se de passagem, passa uma impressão falsa. O Palmeiras venceu o campeonato, não o Botafogo que o perdeu. Venceu numa arrancada com 8 vitórias em 10 jogos e a partir de um jogo memorável, que decidiu o campeonato, dentro dele mesmo uma arrancada heróica: a vitória no jogo decisivo contra o próprio Botafogo, por 4 a 3, com um gol no último lance, depois de estar perdendo por 3 a 1 e ainda ter um pênalti contra, aos 37 minutos do segundo tempo. Embora o Botafogo tivesse perdido um jogo para o Flamengo, depois de longa e impecável série de resultados, e de um primeiro tempo brilhante em que aplicou 3 a 0 no mesmo Palmeiras, a virada épica do time de verde não mudou apenas o jogo, como o campeonato. Ao buscar uma vitória que parecia impossível, o Palmeiras não apenas ganhou a partida, como mostrou que ganhar o Brasileiro também era possível. Nessa partida, o Palmeiras quebrou o espírito do Botafogo. O time que já foi o de Garrincha perdeu a confiança, de tal forma que não mais se levantou. Numa corrida final em que os competidores se aproximaram, faltou justamente o que o Palmeiras já tinha e passou a ter de sobra. Está acostumado a ser campeão, e, como mostrou aquele jogo no qual se impôs contra todas as probabilidades, sempre disposto a tentar o incrível. Antes colecionando vitórias, o Botafogo passou a esmorecer e ceder o placar no final dos jogos, tomando viradas ou deixando o adversário empatar nos últimos minutos, sem a força mental que compensa o cansaço, para assegurar a posição. O Palmeiras venceu porque foi melhor que o Botafogo e os outros competidores que tornaram o campeonato emocionante até o final, especialmente o Atlético Mineiro, o Flamengo e, um pouco mais atrás, Grêmio e Bragantino. Foi melhor no mais importante: na força mental, capaz de decidir disputas parelhas, numa competição decidida nos detalhes. Tecnica e taticamente, todos estavam no mesmo nível. Todos tiveram de alguma forma de se reiventar ao longo do campeonato: uns trocaram de técnico; o Palmeiras, de elementos importantes para a equipe, de forma a suprir a ausência de jogadores alijados da competição por contusões graves: Dudu, Menino, Roni. O Palmeiras achou forças no momento decisivo. Inclusive mais de um reforço: Endrick, um garoto de 17 anos que comandou um grupo de campeões na partida mais perdida e depois mais ganha da história palmeirense. Endrick deu sangue novo ao ataque, ao próprio time, e impulsionou o Palmeiras, enquanto outros ficavam pelo caminho. Essa é a maior virtude do carismático técnico Abel Ferreira. O português é um especialista em fortalecer seu time, não apenas tática e tecnicamente, como mentalmente. Trabalha sobretudo a força mental, que conta muito, sobretudo quando todo o resto é tão equilibrado. A virada sobre o Botafogo mostra a importância de uma mentalidade vencedora, forja de quem não desiste, e quem, mesmo quando perde, sai de cabeça erguida, sabendo que vencer de novo é questão de tempo. É o contrário do derrotismo brasileiro, que gosta de tripudiar sobre quem perde e desvaloriza não só o derrotado, como o vencedor. É uma autoimagem que não condiz com nosso país e desmerece a nossa gente. Quem leu A Conquista do Brasil, meu primeiro livro de história, sabe que o Brasil é resultado de uma arrancada não menos heróica e improvável. Somos a maior prova do mundo, na verdade, de que é muito possível conseguir qualquer coisa, quando a gente olha para o alto, e não para o chão.

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Além da Memória, ou: por que escrevemos

Está saindo pela Assírio & Alvim Brasil o poema em livro Além da Memória, em que procuro explorar o passado mais remoto do ser humano – ou de mim mesmo. Revisito a primeira infância – o “tempo sem palavras”, quando ainda antes de aprendermos a falar, ou racionalizar, construímos nossa personalidade, com a noção sobre sentimentos, como o amor e o medo. Uma forma de cognição pouco compreendida, mas tão presente e influente no adulto, como digo, "artificialmente construído".

Escrever Além da Memória não foi nada fácil e começou num momento de forte impacto pessoal, quando minha mãe estava já muito doente de câncer, e meu filho era recém-nascido. Para lidar com sentimentos tão conflitantes, passei a rabiscar umas memórias, primeiro em prosa. Mas não estava satisfeito. Daquela forma, não conseguia me exprimir. Reescrevi tudo, então, como o poema, que foi apresentado em parte na Casa das Artes, no Porto, em Portugal, por iniciativa da pianista brasileira Enóe Ferrão, com participação da atriz Mariya Victorivna, e sai agora completo, em livro.

Desse tempo em que nascia Além da Memória, ficou esse registro aqui:

"23h29 de 3 de novembro de 2016. Faz algum tempo acabei o romance que será publicado ano que vem. Escrevo agora o livro mais difícil da minha vida. Nem sei se terei coragem de apresentá-lo um dia. Acabo esse trecho, abaixo. Não falta tanto para o fim. Escrevo na esperança de que tenha um fim. Mas receio que nunca acabe.

'Quando minha mãe morreu, meu filho tinha dois anos de vida. Eu olhava para ele como se olhasse para mim mesmo no começo de tudo. Meu filho estava aprendendo a viver. Andava sem dar a mão, aproximava-se de desconhecidos, avançava curioso sobre tudo. Descobria como o mundo é maravilhoso. Avaliava e tentava se certificar da importância de cada pessoa que conhecia, dentro do seu universo. ('Você é o meu vovô?', perguntava repetidas vezes a meu pai). Via o sol, as estrelas. Experimentava, fantasiava. Certo dia, apanhei-o batendo com um tubo de cola na testa. Explicou que tentava colar nele mesmo a sua sombra.

É ao mesmo tempo belo e duro aprender a viver; mais duro ainda, talvez belo, seja aprender a viver com a morte. Pessoas que perderam cedo os pais ou outros entes queridos têm de fazê-lo também cedo. Não existe uma ordem natural para as coisas; o destino muitas vezes é tomado pelo acaso e só nos resta enfrentá-lo como ele vem.

É difícil encarar a morte enquanto estamos cheios de vida; ela não pode se tornar uma sombra, colada na testa, pois aquele que chora ou  teme o fim diariamente, morre um pouco também todos os dias. É preciso assimilar as piores tristezas e os fatos mais duros da existência e ainda assim manter a cabeça erguida, a dignidade e a alegria.

Eu me encontrava nesse estágio do aprendizado; via a vida florescer, ao mesmo tempo em que tinha de aprender a conviver com a dor da grande perda. Era sorte, ser também pai; isso me ajudava a manter a coragem de seguir em frente, pois exigia uma motivação superior a qualquer tristeza.

Filhos são um bem do céu, não porque nos trazem felicidade, mas porque pedem de nós a felicidade. Não apenas dão alegria, como a exigem de nós. Por eles, todos os dias temos de sorrir, de brincar e esquecer nossos males. Crianças não nos dão tempo para a dor.

Ao mesmo tempo em que ensinamos os filhos, aprendemos com eles. Não é apenas pelas crianças que se deve seguir em frente, mas por nós mesmos, e pela criança que há dentro de nós. É na infância, a nossa e dos nossos filhos, ou dos que vêm depois, que está uma fonte permanente de felicidade. Por isso, aquele que não ri nem se alegra com as crianças está morrendo sem saber.

Aquele que aprendeu a viver com a morte talvez esteja mais preparado para aprender a morrer; cada etapa parece servir de antesala da próxima, cada degrau da sabedoria leva a outro. Provavelmente, quando não achamos um degrau, ou perdemos o pé, é porque não subimos direito o anterior."

Esse era o livro em prosa. Quando levei os dois, poema e prosa, a meu antigo editor, Pedro Paulo Senna Madureira, para me ajudar a decidir o que fazer, ele me disse para guardar a prosa. Gostou, mas achou melhor o poema, mais livre, profundo e afetivo. "Este livro é você" - ele me disse. "Triste, sombrio, com esplêndidos raios de sol."

Fez profecias, como o de que eu não me casaria novamente. Como editor e amigo de grandes escritores confessionais, como Clarice Lispector e Pedro Nava, sabia por experiência. "Nenhuma pessoa vai dar o que você precisa" - ele me disse. Essa, creio, para alguns, é a função da arte.

Escrever Além da memória me deu paz - a paz possível. Enquanto escrevia, voltei às lembranças mais remotas, de meus tempos de criança – um menino que não podia andar, com a difusa lembrança de crianças brincando ao longe, atrás do vidro; meus pais,  às voltas com aquele “filho torto”; o mundo circunscrito a um tapete; e, por fim, a imaginação como liberdade.

Em Além da Memória, eu sou filho, mas também pai; sou adulto, e sou menino; evoco ali minha diretriz primordial, essencialmente afetiva. A poesia como linguagem agora para mim se explica, como relato do quase indizível, a começar pelas invisíveis teias da relação entre mãe e filho, nossa ligação mais essencial.

Dividido em duas partes – “Sombra e Luz” e “Menino de apartamento”, Além da Memória é um suave documentário de momentos profundamente íntimos, ou um ensaio sobre o ser humano, no que tem de mais essencial. Traz a criança que frequentemente toma as rédeas da vida, surpreendendo o adulto, às vezes contra ou apesar da razão.

Como diz meu próprio pai, os filhos nascem para ensinar os pais. Foi isso que vivi  quando meu filho começou a crescer, uma espécie de espelho do tempo, quando eu me despedia de minha mãe, mas queria não perder o menino que há em mim.

Por muito tempo hesitei em trazer à luz o poema, porque não sabia qual a razão de expor algo tão pessoal. Hoje, eu sei. A única coisa que explica essa necessidade,  e razão pela qual escrevo, e todos escrevemos, creio, é acreditar que esse sacrifício da intimidade pode de alguma forma fazer as pessoas que amamos viverem para sempre.


terça-feira, 7 de novembro de 2023

Duas mães. E o Brasil

O mais comovente da convocação pela seleção brasileira do Endrick, atacante de 17 anos do Palmeiras, depois do mágico jogo contra o Botafogo, foi ver a dona Cíntia, mãe dele, feliz com a felicidade do marido, o seu Douglas, que trabalhou de pedreiro e pediu um emprego de servente no clube quando o filho foi jogar lá.

Endrick ser convocado para a seleção, porém, não foi o momento mais emocionante da vida da dona Cíntia. E ela disse qual foi. E por que.

"Quando ele pisou no gramado do Alianz Park pela primeira vez, foi como se tivesse pegado um diploma na mão", disse a dona Cíntia.

O Brasil inteiro cabe nessa declaração de mãe. 

Dona Cíntia lembrou minha mãe, dona Marlene, professora da rede de ensino público, quando viu o primeiro boletim do neto, André, que tinha então só dois aninhos, mas recebeu na escola, no fim do ano, uma avaliação.

Ao pegar aquele papel, minha mãe, que ensinava até a adultos as primeiras letras, quando achava algum analfabeto, e me ensinou a ler e escrever, olhou e... As lágrimas saltavam dos seus olhos.


Se tem uma coisa que mexe comigo, e o amor da mãe. E o Brasil. Quando as duas coisas se juntam, então...

Seja feliz, dona Cíntia. Seu diploma está no coração.


terça-feira, 31 de outubro de 2023

O homem mais importante que o presidente

Jeyne, atriz 24 horas por dia, certa vez encontrou Aécio Neves, na casa de um cineasta, quando ele era candidato à presidência da República.

- Você conhece o Danilo Miranda?

- Não.

- Então você nunca vai ser o presidente da República.

Por aí, dá para se ter uma ideia do que Danilo Miranda representava para os artistas. Para ela, se havia alguém que um presidente devia conhecer, ou era mais importante que o próprio presidente, era o Danilo.

Como se sabe, Aécio profeticamente perdeu a eleição - não foi presidente. Mas até ele passou a saber quem era Danilo Miranda.

O grande diretor do Sesc, falecido ontem, não apenas tinha uma verba maior que a dos poderes públicos para abrigar, promover e fazer prosperar a arte. Era um gestor exemplar, que, além de tudo, tratava a todos os artistas com respeito e, até mesmo, admiração. Não importava quem.

Danilo foi maior que o poder público não apenas na verba, como na conscientização. Abriu o Sesc, uma entidade de lazer para comerciários, ao público em geral, usando a verba de que dispunha para ampliar seu alcance - e seu benefício. Foi mais do que precisava ser, não só porque podia, mas porque queria e porque sabia.

Foi do erudito à arte popular. Criou centros culturais, promoveu o teatro, as artes plásticas, a música, o cinema, a literatura. De forma geral, fez mais pelas artes, pelo entretenimento e pela cultura que a maioria dos ministros e secretários que passaram pela área ao longo das décadas de seu trabalho.

A despedida meio tribal de Danilo, no Sesc Pompeia, com gente cantando e dançando ao redor de um caixão, serviu para mostrar que o trabalho com inteligência e amor à arte não morre, é festejado. Não devia sê-lo apenas pela tribo artística, mas por todos os brasileiros para quem não é preciso ser político, na pior acepção da palavra, para dirigir alguma coisa no Brasil. Ao menos da maneira como se deve, no esforço que parece às vezes inglório, de levar este país a um outro patamar.


terça-feira, 24 de outubro de 2023

O que há no fundo de nós

Lanço agora em novembro, pela Assírio & Alvim, Além da Memória - talvez o livro mais difícil que já escrevi,  por diversas razões. Primeiro, é extremamente íntimo, o que me fez retardar por muito tempo a sua publicação. Segundo, por ter sido parte de um esforço profundo de auto conhecimento - e de entendimento do ser humano, creio - literalmente desde o berço.

Comecei a escrevê-lo, de certa forma, quando meu filho nasceu, 17 anos atrás. Ao observá-lo, pude acompanhar de perto o desenvolvimento da vida em todas as suas fases - e isso trazia lembranças, evocações, da minha própria infância, além do que eu achava que era capaz de lembrar. 

Comecei a investigar obscuras memórias, o "tempo sem palavras", em que ainda nem aprendemos a falar - e, portanto, a racionalizar. É o período mais marcante da vida, e do qual menos lembramos ou conhecemos. Ainda mais no meu caso, porque, devido a um diagnóstico médico, o prognóstico era de que eu jamais poderia andar - um drama que afetou a vida da família e a minha mesmo, de um jeito que só hoje eu sei o quanto.

Com o nascimento do meu filho, descobri muitas  coisas, sobre ele, as crianças e sobre mim. Algumas delas, por conta do nascimento de seu primeiro neto, minha própria mãe me contou.

Uma dessas descobertas foi que ela jamais me amamentou. Quando me disse isso, pensava não em mim, mas na diferença entre as gerações, com certa pena dela mesma. Convalesceu um mês  no hospital, depois da cesariana, uma cirurgia que naquela época deixava um corte vertical na mulher e era bem mais tosca que hoje em dia. 

No primeiro dia em que se levantou,  teve ir para o trabalho. Professora primária, foi cuidar de outras crianças, para ganhar dinheiro e enfrentar o imprevisível sustento de um filho que saíra torto.

Naquele tempo, e eu falo de 1964, não havia licença-maternidade nas empresas. A indústria fazia muita propaganda do leite em pó, especialmente o Ninho, que diziam ser muito melhor – além de mais prático – do que o leite materno. Bobagem, como se sabe hoje, mas é o que se acreditava naquela época.

Fazia-se muitas outras coisas estúpidas com as crianças, então muito normais, como embrulhá-las em cueiros. Naquele tempo não havia ainda a fralda descartável. Os nenês usavam a fralda de pano e depois eram enrolados naquele algodão mais grosso, até virar um charuto. 

A função do cueiro era tolher os movimentos, conforme a antiga crença de que isso ajudava a conformar as pernas. Só pude andar depois dos dois anos de idade.

Quando meu próprio filho saiu andando, da mesinha de centro até o sofá, uma distância de meio metro metro, aos oitos meses de idade, chorei - e ninguém entendeu. Nem eu.

Quarenta e quatro anos depois do meu nascimento, quando minha mãe morreu e revirei sua caixa de fotografias, vi que ela me tomava no colo com aqueles olhos de amor da mãe. Lamentei não lembrar daquilo.

Somente quando meu filho nasceu, pude saber melhor como é esse amor, por vê-lo nos olhos da mãe dele. Pensei em quantas coisas não me lembrava a respeito de mim mesmo, porque pertencem ao tempo do qual realmente não nos lembramos. Ou melhor, não sabemos como lembrar.

Com um mês de vida, estou certo de que meu filho já me reconhecia, bem como à mãe, e sabia quem dele cuidava. É a fase humana do maior aprendizado, porque saímos do zero para um mundo imenso e ainda essencialmente emocional, não verbal, como forma de cognição.

Eu me perguntava onde paravam as lembranças desse primeiro contato com o mundo, a memória dessa fase que, mesmo sem ser traduzida em palavras, não deixa de ser a base da nossa personalidade, e da inteligência, eminentemente intuitiva.

O que chamamos de memória é a memória racional, construída com imagens e palavras. Os psicanalistas que consultei consideram que a memória, entendida como tal, começa a partir das primeiras palavras. Estou certo, porém, de que existe uma memória anterior, do tempo em que não falávamos, mas sentíamos e tomávamos contato com o mundo desta maneira sensorial.

Para descrever isto, primeiro tentei a prosa, mas não estava satisfeito. Compreendi que a única linguagem que mais se aproxima desse mundo sensorial da criança é a do poema. A poesia, que fala mais pelo que deixa entre as palavras, mais sugere do que descreve, flertando com o sentimento mais puro, ou a "não-palavra", é o que achei para usar.

Essa memória feita de luz e de sombra, de toque, de cheiros e estímulos como dor, incômodo, carinho e  tudo o que podemos reconhecer sensorialmente, incluindo o amor, é ainda mais importante porque não a compreendemos direito. Nos acostumamos a usar para isto o instrumento de reconhecimento errado, que é o verbal e racional. Porém, essa inteligência sensorial e indefinível só porque ser compreendida no seu próprio campo, e vive por trás do que somos, não apenas na infância, como no resto da vida - ou, como digo no poema, no adulto "artificialmente construído". 

Não compreendemos as mensagens desse aprendizado primordial porque elas estão no campo do sentimento puro, do aprendizado não verbal, intuitivo, quase instintivo. Às vezes, agimos sem saber por quê, ou reagimos  a algo, sem saber a razão, ou até mesmo contra ela, por algum impulso aparentemente inexplicável. Acredito hoje que se trata da manifestação dessa memória afetiva, que nos faz reagir segundo um aprendizado anterior à memória racional.

Algo mais antigo ou profundo e que não somos capazes de compreender e resolver bem porque nos acostumamos a traduzir nossos sentimentos em palavras.

Ao ver meu filho, tão pequeno e já com personalidade tão definida, capaz de reagir a estímulos como um beijo e um carinho, um barulho, um grito ou a música clássica, entendi que essa memória sensorial e afetiva só pode ser compreendida e manifestada também sensorial e emocionalmente. Colocada em segundo plano quando se usa apenas a razão, está por trás de muito do nosso comportamento e muitas vezes aflora e tomas as rédeas da vida, sem sabermos por que.

A maior influência na vida do ser humano não é percebida, pois é em grande parte inata. Na maternidade, a enfermeira que trouxe meu filho de madrugada, para mamar pela primeira vez, disse: “Ele é muito calmo, mas quando fica bravo, fica muito bravo”. 

Em uma frase, com poucas horas de observação, acabou de defini-lo como ele é hoje, dezesseis anos depois, e provavelmente como será a vida inteira.

A personalidade inata de cada criança faz com que ela reaja de maneira própria aos primeiros estímulos externos. Uma criança pode receber uma reprimenda com indiferença ou compreensão, enquanto outra, diante da mesma severidade, pode ficar magoada ou abalada pela vida inteira. Cada indivíduo se molda de forma diferente a como o mundo nos trata, quando caímos dentro dele.

Por meu filho, observando como ele tomava conhecimento da vida, e criando com ele nosso relacionamento mudo, mas cheio de afeto e significado, imaginei que eu poderia penetrar nessa caixa preta emocional, entender muito do que sou, fazer uma investigação da memória afetiva até encontrar não apenas essa conexão com ele, como a minha própria personalidade essencial.

Poderia entender a raiz do meu comportamento e também de alguns dos meus problemas - enfim, daquilo que me levou a ser o que eu sou, para o bem e para o mal.

Uma investigação ao começo, ou ao fundo de mim mesmo, algo em que penso cada vez mais, estranhamente na medida em que vou ficando mais velho, como se o tempo nos levasse de volta a nós mesmos - nós que estamos lá, ainda, naquela criança.

Isto é, acredite, Além da Memória - um onírico mergulho no universo interior e, talvez, de umas vidas passadas.

sexta-feira, 6 de outubro de 2023

A mais VIP das revistas

 Na década de 1990, dirigi durante seis anos a revista VIP, então chamada de VIP Exame, quando era ainda um suplemento de EXAME, publicado mensalmente - EXAME era quinzenal, e VIP alternava as quinzenas com Informática EXAMe, que também mais tarde se tornaria independente, com o nome de Info. Primeiro, sob a supervisão do jornalista Antonio Machado, então diretor de EXAME, e depois de José Roberto Guzzo, que me dava completa liberdade para trabalhar (conversávamos apenas sobre as capas, a única coisa que ele queria ver quando eu fechava).


Foi uma experiência rica para mim e significativa para um mercado então emergente, que seguia na esteira da abertura das importações promovida por Fernando Collor. Depois de três décadas de ditadura e xenofobia econômica, num país onde antes somente se saía com um punhado de dólares enfiados no bolso porque nem havia cartão de crédito internacional, o Brasil começava a se integrar ao resto do mundo - e a elite estava na ponta desse processo.


VIP era um suplemento, mas fazia um grande esforço de jornalismo. Algumas de suas capas se tornaram célebres. Foi VIP quem primeiro fez um perfil de Paulo Coelho, quando ele apenas começava a se tornar o "mago" (ainda antes da minha gestão, quando a revista era dirgida pelo jornalista José Ruy Gandra). Ali Coelho firmou seu marketing, dizendo que podia voar e fazia chover, entre outras mágicas literárias.

Foi também a primeira a entrevistar e perfilar um então jovem empresário chamado Eike Batista. Pela primeira vez, uma publicação contava a história de como Eike fizera fortuna nos garimpos da Amazônia, abria empresas a passos rápidos e causava furor ao se casar com a bomshell do momento, Luma de Oliveira, num rumoroso caso de abandono duplo dos ex-noivos de ambos, que fervia nas colunas sociais.

Eike, que me recebeu da primeira vez com uma pistola sobre a mesa num escritório no Flamengo, queria mostrar como havia se tornado campeão em competições de superlanchas nos Estados Unidos, com um barco na época invencível - o "Espírito do Amazonas". Mais tarde, me receberia com Luma no iate clube e passou uma tarde fotografando para a capa da revista em um de seus barcos de corrida. E desapareceria da mídia por mais de uma década.

Em VIP, mostramos quem eram os novos donos do dinheiro - não mais os antigos pioneiros, e sim jovens empresários advindos da classe média, que tinham curso superior, e criavam novas fortunas rapidamente. E que davam valor não apenas ao trabalho suado, código dos velhos pioneiros do empreendedorismo, como a um outro tipo de bem que dava mais status do que a simples demonstração de riqueza: a educação e o refinamento.

Provocadora, a revista promovia encontros impossíveis. Alguns eram divertidos, como o bate papo transcrito do encontro entre o maestro Eleazar de Carvalho e o roqueiro Supla. Alguns desses encontros, no entanto, chegaram a ser realmente importantes, como o que promovemos entre o então presidente da Fiesp, Mario Amato, e o líder sindical Vicentinho, que recebeu uma menção honrosa dos jurados do prêmio Abril daquele ano.

O mais importante é que VIP foi uma revista antenada com seu tempo. Ao promover um concurso de receitas, com o patrocínio do empresário Otávio Piva, importador de vinhos e da marca italiana Barilla, VIP descortinou uma novidade comportamental da época. Ao descobrir que os homens cozinhavam, e as pessoas de forma geral procuravam se sofisticar, alinhou-se com o crescimento do mercado do luxo no Brasil. O concurso, que teve como vencedor Fernando Altério, então dono do Palace, a maior casa de espetáculos de São Paulo, com o prato "farfalle impazzite", foi o início de uma nova era.

VIP mostrou que os homens, em especial os qualificados leitores de EXAME, se organizavam em confrarias gastronômicas e enológicas. A chamada "Confraria de Babette", homenagem ao filme que celebrava os prazeres da mesa, tornou-se então famosa.

Graças aos concurso, Piva firmou Barilla, um macarrão popular na Itália, como um produto de primeira classe no Brasil. E não apenas catapultou suas vendas de vinhos importados como abriu o Emporio Santa Maria, um supermercado onde o destaque eram os produtos importados, e mostrou o caminho a sua irmã, Eliana Tranchesi, fundadora da Daslu, outro ícone do luxo nessa fase.

Não se falava em VIP apenas de comida e viagens. Havia cinema, arte, litratura. Como um guia de São Paulo, falávamos de artes plásticas. Tínhamos grandes colaboradores, em especial jornalistas consagrados, como Ruy Castro, que entre outras coisas escreveu sobre a história da caneta Parker, e nomes como Casimiro Xavier de Mendonça e João Candido Galvão (artes plásgticas) e Leo Gilson Ribeiro (literatura), que tiveram colunas em VIP até o final da vida.

Havia, também, escritores consagrados. Lembro com carinho de uma série especial da seção "Viagem Inteligente", com o relato de escritores sobre seus lugares favoritos no mundo. Lygia Fagundes Telles escreveu sobre Gotemburgo; Antonio Callado, sobre Roma; Nélida Piñon, sobre Barcelona; Luís Fernando Veríssimo, sobre Paris.

Os empresários do setor de luxo tornaram-se ao mesmo tempo personagens e parceiros: despontou toda uma nova geraão para o mundo dos negócios que tinha na revista seu espelho, como André Brett, na moda, e Rogério Fasano (restaurantes e hotelaria). E passaram pela capa de VIP gete tão diferente quanto a então bela hstess do Plaza em Nova York, a brasileira Celita Jackson, quanto os entãos reis da festa Rcardo Amaral e José Victor Oliva, o cardiologista Adib Jatene, o escritor José Saramago e Tom Jobim.

Alguns personagens em VIP foram furos de reportagem, como a capa sobre Chico Buarque, explicando por que ele passara a escrever romances - uma entrevista inédita na Editora Abril, com quem Chico tinha uma velha rixa, por suas aversão à principal publicação da casa, a revista Veja. E o perfil com entrevista então inéditos de um magnata da fé, o então ascendente bispo da Universal Edir Macedo, que jamais tinha recebido antes alguém da imprensa - tive a oportunidade de entrevistá-lo pessoalmente.  

Com o crescimento da revista, VIP se tornou uma publicação independente de EXAME, em 1997. Reestilizou o seu antigo logo, esguio e sofisticado: ficou um logo mais pesado, destinado a causar impacto, criado pelo então diretor de arte de EXAME, Píndaro Camarinha. E passou a colocar mulheres na capa, de modo a aumentar sua venda em bancas, da qual passou a depender com a saída da nave-mãe. Porém, mantém desde então seu espírito de servir ao bem estar masculino e ser um guia de sofisticação e bem viver.

























O concurso Barilla: marco no comportamento masculino

terça-feira, 8 de agosto de 2023

Amor e Tempestade e a picardia

Em Amor e Tempestade, escrevi  sobre um soldado que persegue a Coluna Prestes pelo Brasil, encontra personagens célebres país afora, numa guerra que nunca tem sequer uma batalha. Como na tradição clássica do romance picaresco brasileiro, meu personagem nasce e sai de Minas Gerais, o que talvez tenha a ver com o jeito mineiro de ser.

No cinema, o herói picaresco mais conhecido é Forrest Gump, um sujeito meio imbecilizado que corre o mundo, participa involuntariamente de grandes episódios históricos, dos quais acaba fazendo parte decisiva, embora sem querer. É a natureza do herói pícaro.

Em Amor e Tempestade, o meu Coracy - qualquer semelhança no nome deve ser coincidência - entra involuntariamente entre os 18 de Forte de Copacabana (que eram 19...), conhece o padre Cícero, Lampião, Rondon, Oswald de Andrade, e e por aí vai. Acaba sendo o personagem central da história brasileira. Infelizmente, ninguém o reconhece!

 A literatura pícara sempre teve poucos autores no Brasil, embora se apreste com perfeição ao nosso tropicalismo cultural. Para quem não conhece bem o gênero, recomendo algumas leituras.

O maior clássico da literatura picaresca brasileira é Manoel Antônio de Almeida, com seu Memórias de Um Sargento de Milícias. Temos também o Fernado Sabino de O Grande Mentecapto; Chico Buarque, cujos romances navegam todos nesse gênero, especialmente Estorvo; e José Roberto Torero, brilhante romancista histórico-picaresco, de quem recomendo o sardônico O Chalaça, o obscuro ajudante de D. Pedro I, de quem Torero faz o verdadeiro e insuspeitado patrono da independência brasileira.

O romance picaresco nasceu como o antípoda dos grandes heróis românticos dos folhetins medievais, ironizando-os. A grande obra que elevou o gênero aos maiores clássicos foi Dom Quixote. Na minha opinião, é a maior obra literária de todos os tempos, justamente por mostrar como vivemos sonhos de grandeza, na pequeneza do que somos: a grande contradição do ser humano.

Por muito tempo considerado literatura menor, o gênero picaresco, na tradição do Dom Quixote, talvez seja o maior, assim como seu personagem, porque o contrário também é verdadeiro: na nossa pequeneza, lutando contra a miséria humana, no fim, nós somos grandes.

Melhor ainda, trata disso com certa leveza, uma auto ironia, que não por acaso gerou esta palavra para mim tão cara: a picardia. Designa uma forma de enfrentar as dificuldades da vida, aceitar com naturalidade o erro, a derrota, o azar. Sobretudo, é uma forma de lidar com as pequenas e grandes traições da vida, como a indiferença, a ingratidão e o desamor, que não merecem de nós mais que a ironia.

segunda-feira, 7 de agosto de 2023

A heroína sem direção

“Perla Stuart, a ex-mulher”, do autor, ator e produtor teatral Dionisio Neto, é um roman à clef, ou “romance à chave”, expressão francesa para obras que tratam de pessoas de verdade, apenas com nomes inventados. Explica-se a discrição com as identidades, pois assim Dionisio aproveita a possibilidade de escrever mais livremente. É a função da  literatura. Como ficção, nos permitimos falar com franqueza da realidade. Na mentira, estão as maiores verdades.

A forma também se adequa às pessoas que Dionisio procura descrever. Deliberadamente, ele segue uma tradição literária, cujo vértice é o Dom Quixote, de Cervantes. "Perla Stuart" é um romance picaresco, isto é, que mostra a vida de gente com grandes propósitos, ou em busca de feitos heroicos, porém sempre de forma meio desastrada.

O herói pícaro, um espertalhão sempre metido em enrascadas, é a síntese e o centro desse gênero. Como um Dom Quixote moderno, e cheia de desejos femininos, Perla é uma anti-heroína, assim como seu amigo Adônis – nome fictício, referência ao efebo que era o modelo de beleza masculina na mitologia grega, e que só suporia vaidade maior se fosse Narciso.

Fiel ao romance picaresco na sua concepção e na forma, com títulos de capítulos que lembram os do antigo folhetim, Dionisio apenas quebra um pouco a tradição por transportar a história para São Paulo, nos dias que chegam até hoje, e não Minas Gerais, como na vertente clássica da literatura picaresca brasileira.

Em "Perla Stuart", desfia as aventuras de sua personagem principal, recheadas de sexo e filosofia barata. A Perla de Dionísio conhece e frequenta a cama e a conta bancária de gente rica e famosa, mas ela mesma não tem nada.

Circula por todos os lugares, apanha, rala o joelho, transa com mendigos, toma drogas, experimenta da vida tudo o que ela oferece, sem pensar duas vezes, e de imediato. Mesmo com toda essa intensidade desesperada, não deixa de viver no mais profundo vazio. Ele se resume na constatação da personagem de que viver é “acordar, comer e dormir” até um dia parar “no caixão”.

"Perla" anda por todos os lugares, com todo tipo de gente, mas parece não ter, ela mesma, direção. É promíscua, leviana e inconsequente, no que diz respeito à sua vida e dos outros também. Passa como um terremoto pela vida alheia, incluindo a de um marido, que a certa altura, com um filho, faz com que passe a sustentá-la depois da separação.

Assim, todas as aventuras de Perla para ser alguém extraordinário no final se resumem a isso: uma mulher vivendo da pensão do ex-marido, como muitas outras. Ela, enfim, encontra-se como atriz de uma única personagem: a da ex-mulher. E, como o romance sardonicamente expressa, “ex é para sempre”. É Dom Quixote, fora do seu delírio.

Pode-se pensar que o livro, como seu personagem, não tem também um caminho, um ensinamento, uma solução. Porém, é também de se pensar se a vida não é mesmo isto, um passeio preferível com festas, drogas, bebedeiras e esquecimento. Aqueles que acham estar fazendo alguma coisa construtiva, nesse caso, apenas estariam perdendo seu tempo, ou uma certa diversão.

Gostoso de ler, “Perla Stuart – a ex mulher”, no final, dá um certo medo. Para quem entra no seu mundo, como quem lê o Livro da Sabedoria - a história de Salomão, na Bíblia -, fica a sensação de começar a acreditar, com “Perla”, que tudo é apenas vaidade.

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Poetas em flagrante delitro

Nos últimos tempos, tenho me dedicado a reunir poemas e construir toda uma nova obra para mim, o que consome boa parte do meu tempo. Não fossem as exigências práticas, possivelmente eu não faria outra coisa. Isso me faz entender perfeitamente a obsessão que tomou conta de Fernando Pessoa, contribuindo, creio eu, para lhe apressar o fim da vida. Ou foi o fim da vida que apressou a obsessão pela poesia.

A história é boa. Um dia, Carlos Queirós mostrou a sua tia, Ofélia, uma fotografia enviada a ele por Fernando. Estava tomando uma taça de vinho no bar de Abel Pereira da Fonseca, em Lisboa. Ofélia era o único amor conhecido de Fernando, mas estavam afastados já algum tempo. Aquela fotografia, contudo, os reaproximou.

Ela pediu uma cópia da imagem, que Fernando lhe mandou, com uma espirituosa dedicatória: "Fernando Pessoa, em flagrante delitro". Era 1929. Eles voltaram a se relacionar, mas ele a advertiu que já não era "o mesmo". Estava tão concentrado no trabalho, que receava agora ter pouco tempo para dedicar a uma mulher.

"Recomeçamos então o namoro", lembrou Ofélia. "O Fernando estava diferente. Não só fisicamente, pois tinha engordado bastante, mas, e principalmente, na sua maneira de ser. Sempre nervoso, vivia obcecado com a sua obra. Muitas vezes dizia que tinha medo de não me fazer feliz, devido ao tempo que tinha de dedicar a essa obra."

Disse a Ofélia, certo dia: "Durmo pouco e com um papel e uma caneta à cabeceira. Acordo durante a noite e escrevo, tenho que escrever, e é uma maçada porque depois o Bebé não pode dormir descansado."

Bebé era ela, Ofélia, para quem ele receava não poder dar o nível de vida ao qual ela estava habituada.

"Ele não queria ir trabalhar todos os dias, porque queria dias só para si, para a sua vida, que era a sua obra", escreveu Ofélia. "Vivia com o essencial. Todo o resto lhe era indiferente. Não era um ambicioso nem vaidoso. Era simples e leal. Dizia-me: 'Nunca digas a ninguém que sou poeta. Quanto muito, faço versos.' "

A certa altura, de fato, sobretudo quando sabemos o que importa para nós, todo o resto parece tomar um precioso tempo. Ficamos somente no que interessa. É a obsessão poética, que Fernando conheceu e aproveitou o quanto pôde.









domingo, 16 de julho de 2023

A imprensa que todo mundo conhece

Era novembro de 1996 e eu trabalhava como editor da revista VIP, então ainda um suplemento de Exame, onde tinha uma coluna de assuntos "masculinos" - assim, me interessei pela capa da revista Esquire daquele mês, que falava sobre uma jovem, bela e fulgurante estrela em ascensão em Hollywood, chamada Allegra Coleman - "Dream girl", era a chamada de capa.

O exemplar que me chegou às mãos foi enviado numa assinatura em nome de Thomaz Souto Correa, vice-presidente da Abril (no selinho da remessa, está TS Correa), e encaminhado a mim pelo escritório da Abril em Nova York. Seria fácil apenas dar uma nota, reproduzindo a revista, mas, como eu sou jornalista da gema, mesmo num tempo em que chamada internacional era cara e difícil, liguei para o editor da revista, Edward Kosner, para checar informações e saber algo mais sobre a tal estrela.

Ele a princípio não me atendeu, mas, diante de uma certa insistência, na terceira ou quarta tentativa a secretária passou a ligação. Kosner então me explicou que Allegra simplesmente não existia: era uma invenção da revista, usando uma modelo, apenas para mostrar que Esquire era capaz de criar uma estrela, do nada, que todo mundo acreditaria. E realmente não dava para saber que aquilo era invenção, apesar do subtítulo malicioso da capa: "A Allegra Coleman que ninguém conhece".

Claro, a minha nota não foi sobre Allegra, mas sobre a história da capa inventada de Esquire. De fato, a suposta "brincadeira" acabou chamando a atenção. A modelo, Ali Larter, então com vinte anos, conheceu aí seu agente e fez alguns filmes de sucesso, começando por hits de terror até Legalmente Loira.

Ficou para mim, no entanto, a questão ética: até que ponto um órgão de imprensa mentir propositadamente tinha sido uma boa ideia? Em uma entrevista posterior, Larter disse que era muito jovem para avaliar essa questão na época e Kosner divertira-se com a "pegadinha". (Ver "Ali Larter on Her Secret Identity: Hollywood Starlet Allegra Coleman", Julia Black, Esquire, 11 de outubro de 2015)

Da nossa conversa ao telefone, porém, lembro que Kosner se mostrava um pouco constrangido em ter que esclarecer a situação a um outro jornalista. E dava sinais de que preferia encerrar aquele assunto e, com sorte, deixá-lo no passado.

A autora, Martha Sherrill, talvez para sustentar que não havia com que se embaraçar, ainda fez dois livros sobre "Allegra Coleman". Ainda tentou ganhar algum dinheiro extra sobre uma mentira.

Para mim, nestes tempos de fake news, essa historinha serve para lembrar que não são de hoje as invencionices de veiculos de imprensa, com prejuízo para sua credibilidade. Os factóides não se resumem à política, aventurando-se em atingir outras finalidades que, a meu ver, ferem a ética do jornalismo e são mau uso do "quarto poder", além de, no final, se tornarem contraproducentes.









quinta-feira, 13 de julho de 2023

O Céu de Kundera


Meu primeiro editor, Pedro Paulo Sena Madureira, fez também os primeiros livros no Brasil de Milan Kundera e tornou-se seu amigo. Contava de uma visita que lhe fizera, em sua casa, na França, quando ele já sofria de depressão aguda. Sentado na cozinha, Kundera  apontava os móveis, que ele mesmo tinha feito, usando a marcenaria como terapia ocupacional.

 - Já não me interessa a literatura - ironizava. - Meu negócio agora é o "bricolage".

Eu gostei muito de A Insustentável Leveza do Ser, quando li o romance pela primeira vez. A história do homem que levava a vida com leveza e da mulher que arrastava raízes pelo chão, ou de como o amor pode juntar gente tão diferente, me pareceu uma espécie de romance filosófico, que trazia o melhor de uma literatura existencialista do passado, mas sem a amargura de Camus, Sartre e Beauvoir.

O tempo passou, gostei menos do livro, cansativo na segunda vez em que o li, e achei o filme melhor que a obra literária, algo raro. Concluí que ela não era tão boa como eu acreditava, ficou datada - ou eu simplesmente fiquei mais velho.

A história de Kundera na cozinha reforçou minha impressão de que sonhamos e queremos muito escrever livros e, quando o fazemos, isso deixa de ter a antiga importância. Nesse momento, há algo na vida que desaba sobre nós, como um pesado céu.

Chamo a este efeito de "Céu de Kundera", e penso nele toda vez que me dá vontade de fazer outra coisa, qualquer coisa, como virar pescador, plantador de cebolas, estivador, ou quem sabe guia do deserto.

Mas um dia chega o descanso, e o Céu de Kundera agora é de paz.

sábado, 1 de julho de 2023

A morte de um livro

Como pessoas, os livros nascem - e também morrem, cumprido seu tempo e papel. É o caso de meu primeiro livro, Liberdade para Todos, publicado pela primeira vez pela Moderna em 1996, cuja vida chega ao fim, 27 anos depois, com mais de 200 mil exemplares vendidos ao longo do tempo.

Vai aqui seu breve obituário, cheio de alegrias. Quando escrevi essa história, como sempre, tentava ajeitar sentimentos que eram meus. Com o livro - sobre um pai, um filho e um passarinho -, não imaginei fazer tantos leitores, tocando em assuntos delicados com crianças: responsabilidade,  liberdade  e, sobretudo, como lidar com a morte.










O melhor foi na época em que ainda se enviavam cartas. Vinham quilos, de lugares tão diversos como Canoas, no Rio Grande do Sul, e Parintins, no Amazonas. Eram de professores, mães e crianças, entre 8 a 9 anos. Vinham fotos, desenhos, convites, beijos impressos, poemas, histórias, palavras carinhosas, de agradecimento,  de incentivo - um adorável turbilhão de amor.

Houve também incidentes. Certa vez, o pai de um aluno do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, tentou proibir a adoção do livro pelos professores. Alegou que trabalhava no IBAMA e achava inapropriada uma obra que falava de um passarinho preso na gaiola. A editora me ligou, perguntando que justificativa eu teria a dar a esse pai. Respondi que ele lesse do livro pelo menos o título, que já indicava do que a obra era a favor.

Esse foi, no entanto,  um prenúncio do fim. Já não há passarinhos em gaiolas, ou pelo menos não é algo próximo da realidade da maioria das crianças hoje. O livro envelheceu. E agora, depois dessa longa vida, concluímos, eu e a Editora, que seu ciclo está terminando e a atual será sua última reimpressão.

Aqui fica meu obrigado a Walcyr Carrasco, que me indicou a Maristela Petrili, e a Maristela, editora que acreditou na obra e sempre me tratou com a correção, a gentileza e a elegância que me fizeram seu admirador.

Agradeço também a todos meus milhares de pequenos leitores, hoje a maioria já adultos, que me deram a maior recompensa destinada a um autor: um lugar, por algum tempo, na sua vida.

quarta-feira, 24 de maio de 2023

Desencontos -2: um quarto de hotel em Paris

 A longa escadaria em espiral, até o último andar, uma só porta e o quarto. Ocupava, inteiro, um grande sótão: a cama de casal num mezanino baixo, uma cozinha com um balcão, uma sala de estar com uma escrivaninha de trabalho; à esquerda, a passagem para o segundo quarto, amplo, com uma banheira ao centro; a cama de madeira escura, diante da grande lareira de granito branco.

Teresa achou graça na porta de masmorra, baixa e pesada, que dava acesso ao banheiro, de teto inclinado pela meia água. Passeou os olhos pelos móveis antigos: o baú do tempo das diligências, o mobiliário Luis XV, a cama pesada de cabeceira alta, cenário de vidas e horas inconfessáveis.

As malas nem foram desfeitas: Teresa e Marcel mergulharam nos lençóis flutuantes, entre os travesseiros de penas, a pele morena dela na tela de branco alvíssimo, os cabelos de graúna  espalhados, ondulando sobre as dobras do algodão indiano.

O cheiro dos corpos misturados, a vontade primitiva, a matrioska dos desejos, desvelados um atrás do outro. Mesmo cansado de viagem, Marcel não dormiu: preferiu ver Teresa na penumbra, adormecida ao seu lado, enfim serena e apaziguada, joia viva sobre o colchão.

Pela janela medieval se avistava os telhados do casario, mas para eles Paris estava ali dentro, à luz de do abajur art déco: languidez e lassidão. Dormiam e acordavam enlaçados, amantes num refúgio, esconderijo de tudo: da vida lá fora, do passado, deles mesmos, da luz e da escuridão.

Tinham saído do Rio de Janeiro, sem dizer a ninguém onde iam, com quem iam, nem a razão. Eles mesmos não sabiam ao certo o que os movia, exceto que, fosse como fosse, a vida levava um para o outro. E só.

Teresa embarcou no aeroporto sem malas, livre de tudo, o avião apenas como ponte para ele, que já a esperava. O momento de um para o outro, única coisa de que precisavam, única destinação.

Deixaram para trás a vida anterior, os filhos, o medo. Não, o medo, não. Pairava a sombra do exame de Teresa, um indicador que não podia dar mais que 20, e dava 1000. Eles não sabiam o quão grave podia ser, qual era o tumor, nada, só aquele número: na volta, com mais exames, saberiam melhor. 

A dúvida pode ser o inferno da alma e eles sabiam que o passado pesava: a vida anterior os minara. A tristeza é somática, domina o ânimo, depois penetra nas células, corrói os tecidos. Contra ela o corpo sofrido se rebela, avisa, ordena a revolta.

O futuro ninguém sabia, mas eles se refugiavam na certeza dos braços um do outro, sem outros pensamentos, sem outro sentido, sem outra razão. Passavam o dia enlaçados, imersos em sussurros e planos, as coisas em comum: o amor à palavra,  a necessidade de leitura, não dos livros, mas dos sentimentos, penúria de que tinha vivido no deserto dos outros, o mundo onde você sempre serve à vaidade de alguém e sempre acaba sozinho.

As conversas sussurradas traziam o amor de volta, brigado, mordido, suado, até que tinham de trocar de cama, tão molhados ficavam os lençóis. Depois ele lavava os cabelos dela, um ritual lento, longo e solene, teatro de amor, na banheira feita de palco.

Ela secava as melenas no espelho antigo, usando ao mesmo tempo dois secadores, uma dança mágica de cabelos ao vento; ele ria e admirava a destreza, cada movimento de Teresa era graça, beleza e arte.

Saíram do quarto pela primeira vez no dia seguinte, depois das quatro da tarde, e só porque precisavam comer.

Paris no Natal estava frio, Paris chovia, e a melhor hora era voltar, subir aquela escadaria, esconder-se  no sótão, sua nova casa. Moravam agora dentro de um quarto e, naquele quarto, um dentro do outro.

No dia seguinte, fim de tarde,  breve interlúdio: atravessaram a ponte Solferino, dos cadeados, onde tanta gente deixava sua promessa de amor, e seguiram pela quai da Rive Droite. Ele a fotografava, usando a boina dele e calça xadrez - musa de uma belle époque que ele mesmo inventou. 

Passaram pelo mendigo adormecido sob a Pont du Carrousel; saíram da margem e entraram nas Tulherias, pisando o cascalho entre os esqueletos das árvores invernais. 

O sol súbito caiu sobre a água da Grand Bassin Ronde, a piscina que separa o palácio do Louvre de seu imenso jardim. Momento iluminado, ou mensagem divina, Teresa despertou de repente - que bonito, onde estamos, perguntou.

As luzes da Saint Chapelle, pausa para uma oração. A noite para sair: o restaurante japonês, invenções sobre um prato; cruzaram o canal sobre o Sena e centenas de pessoas foram se juntando a eles pelo caminho, passos ressoando na calçada, em meio ao frio da noite.

Da passarela em arco, avistavam ao longe a tenda iluminada do Cirque du Soleil, nave  esplendorosa brilhando branca na noite, ao lado do rio.

Corteo: espetáculo da vida assistindo a morte, ou da morte assistindo a vida. Algo tão igual ao momento deles, tristeza e alegria, esperança e medo, misturados em turbilhão. Era isto, a vida: uma bicicleta sobre a corda, rumando ao céu; a beleza de viver até o fim, seja quando e onde for, arriscando tudo. 

Por fim chegou a véspera do Natal, o dia receado, que ambos passariam longe das famílias: receio da opressão da saudade, de ter estragado tudo; a carga do sofrimento próprio e dos outros; o abismo entre onde estavam e o que ficou para trás. Porém, o futuro eles iam construir juntos, para viver não como outros queriam, mas como eles mesmos, do jeito que eram, em estado verdadeiro e puro e claro.

Enquanto pelo mundo crianças recebiam os presentes de Natal, famílias estalavam copos e talheres em festa, eles anestesiavam a alma na plateia da Opera de Paris. O balé Onéguine: uma tragédia de amor. 

Todo grande amor tem algo de trágico: assim era também o amor deles, grande, feito de dor por muitos lados, mas era também o que os unia. Transmutariam a tristeza em felicidade, contagiaram a todos com aquele amor, que transbordava para ser dividido, dando a todos esperança, sonho de final feliz.

No intervalo do espetáculo, uma taça de champanhe na sacada, o brinde de Natal, feito como juramento: nós dois consertaremos tudo; mesmo contra tudo, tudo podemos juntos, esta é a força maior.

Saíram caminhando abraçados pela ruas enfeitadas de luzes vermelhas; entraram no Café del' Opera, para uma taça de vinho, entre as mesas vazias da meia noite natalina. A cidade estava suspensa, mas eles sorriam, mais leves. Passara o mais difícil e eles se deixavam embalar pelo mel de um dia inteiro de cumplicidades.

Breves impressões da vida lá fora: O Pensador, no Museu Rodin ("já vi isto aqui", disse Teresa); madeleines num café acolhedor; o silêncio sagrado do velho templo de Saint-Germain-des-Prés. Por fim subir de novo a escada, a sensação de voltar ao abrigo do quarto, a eles mesmos, sua primeira casa, das muitas que teriam depois. 

O frio ficava do lado de fora, de fora ficava até mesmo o medo, com o passado de desilusão. Eles não precisavam de mais nada, Paris era ali, mas seria em qualquer lugar: viveriam, sobreviveriam, Marcel salvaria Teresa do câncer, da tristeza, do abandono, que também era seu. 

Teriam a felicidade mais pura, reunindo novamente a todos, para outros natais, contagiados por aquela Paris que eles levariam para sempre, onde fossem, transbordantes de amor.

*

Marcel olha as fotos antigas, abre o navegador e pesquisa: Hotel del' Université. 

Há um passeio virtual; ele sobe a escadaria, usando o dedo indicador sobre o laptop, e chega ao último andar.

O antigo sótão, onde ficava o quarto Saint Germain, foi dividido em quartos diferentes, com paredes brancas e mobiliário contemporâneo. Ainda há janelas para o casario de Paris, mas a grande lareira de mármore, a banheira, a história, tudo desapareceu.

O texto informa que o hotel passou por uma renovação. Remexendo lembranças, ele se dá conta de ter estado ali uma vez anterior, muito tempo antes daquela semana de Natal em Paris.

Tinha pouco mais de vinte anos quando, passando ao acaso na rua, entrou no hotel, para conhecer. Queria ser escritor e soube que Hemingway, quando estava na cidade, se hospedava ali. Subiu ao quarto do último andar, levado por um camareiro, com a chave na mão, para ver onde ele se hospedara. 

Olhou o grande sótão, com jeito de casa no céu; parou diante da janela, e pensou: um dia vou publicar livros, terei dinheiro e trarei para cá alguém especial, para a minha melhor história de amor.

Depois, esqueceu tudo, ou quase: escolheu aquele hotel por lembrar vagamente que um dia quisera hospedar-se ali. Uma mensagem no tempo, para o dia em que, amadurecido, cumprisse a antiga promessa, sem saber.

Marcel faz uma busca pelo site. Não há mais qualquer referência  a Hemingway. Teresa vive, mas não está com ele. Depois de tantas casas, nas buscas de quem nunca achou algo o bastante, nunca parou: espelho na impermanência, na inquietação. Os carentes de um amor que não existe, ou sempre muda de lugar: destruidores de corações.

Nao a reconheceria se a visse na rua: aprendera que se pode sentir luto por alguem ainda vivo, mas que nao erea quem se pensava, como se tivesse morrido, ou ainda pior, nunca existido. Já não existe o quarto, não mais existe Teresa de Marcel, mas ele é o mesmo. Não só o homem daquele Natal em Paris. É o rapaz magro e imberbe que andava no inverno parisiense de capa de chuva, sem dinheiro para comprar um casaco de verdade, passando fome e frio, sonhando com a vida de Hemingway.  

Sim, isso ficou: sonho. A entrega sem receio, a vontade de amar, de sempre experimentar a vida intensamente, e escrever. 

Ainda.