domingo, 16 de julho de 2023

A imprensa que todo mundo conhece

Era novembro de 1996 e eu trabalhava como editor da revista VIP, então ainda um suplemento de Exame, onde tinha uma coluna de assuntos "masculinos" - assim, me interessei pela capa da revista Esquire daquele mês, que falava sobre uma jovem, bela e fulgurante estrela em ascensão em Hollywood, chamada Allegra Coleman - "Dream girl", era a chamada de capa.

O exemplar que me chegou às mãos foi enviado numa assinatura em nome de Thomaz Souto Correa, vice-presidente da Abril (no selinho da remessa, está TS Correa), e encaminhado a mim pelo escritório da Abril em Nova York. Seria fácil apenas dar uma nota, reproduzindo a revista, mas, como eu sou jornalista da gema, mesmo num tempo em que chamada internacional era cara e difícil, liguei para o editor da revista, Edward Kosner, para checar informações e saber algo mais sobre a tal estrela.

Ele a princípio não me atendeu, mas, diante de uma certa insistência, na terceira ou quarta tentativa a secretária passou a ligação. Kosner então me explicou que Allegra simplesmente não existia: era uma invenção da revista, usando uma modelo, apenas para mostrar que Esquire era capaz de criar uma estrela, do nada, que todo mundo acreditaria. E realmente não dava para saber que aquilo era invenção, apesar do subtítulo malicioso da capa: "A Allegra Coleman que ninguém conhece".

Claro, a minha nota não foi sobre Allegra, mas sobre a história da capa inventada de Esquire. De fato, a suposta "brincadeira" acabou chamando a atenção. A modelo, Ali Larter, então com vinte anos, conheceu aí seu agente e fez alguns filmes de sucesso, começando por hits de terror até Legalmente Loira.

Ficou para mim, no entanto, a questão ética: até que ponto um órgão de imprensa mentir propositadamente tinha sido uma boa ideia? Em uma entrevista posterior, Larter disse que era muito jovem para avaliar essa questão na época e Kosner divertira-se com a "pegadinha". (Ver "Ali Larter on Her Secret Identity: Hollywood Starlet Allegra Coleman", Julia Black, Esquire, 11 de outubro de 2015)

Da nossa conversa ao telefone, porém, lembro que Kosner se mostrava um pouco constrangido em ter que esclarecer a situação a um outro jornalista. E dava sinais de que preferia encerrar aquele assunto e, com sorte, deixá-lo no passado.

A autora, Martha Sherrill, talvez para sustentar que não havia com que se embaraçar, ainda fez dois livros sobre "Allegra Coleman". Ainda tentou ganhar algum dinheiro extra sobre uma mentira.

Para mim, nestes tempos de fake news, essa historinha serve para lembrar que não são de hoje as invencionices de veiculos de imprensa, com prejuízo para sua credibilidade. Os factóides não se resumem à política, aventurando-se em atingir outras finalidades que, a meu ver, ferem a ética do jornalismo e são mau uso do "quarto poder", além de, no final, se tornarem contraproducentes.









quinta-feira, 13 de julho de 2023

O Céu de Kundera


Meu primeiro editor, Pedro Paulo Sena Madureira, fez também os primeiros livros no Brasil de Milan Kundera e tornou-se seu amigo. Contava de uma visita que lhe fizera, em sua casa, na França, quando ele já sofria de depressão aguda. Sentado na cozinha, Kundera  apontava os móveis, que ele mesmo tinha feito, usando a marcenaria como terapia ocupacional.

 - Já não me interessa a literatura - ironizava. - Meu negócio agora é o "bricolage".

Eu gostei muito de A Insustentável Leveza do Ser, quando li o romance pela primeira vez. A história do homem que levava a vida com leveza e da mulher que arrastava raízes pelo chão, ou de como o amor pode juntar gente tão diferente, me pareceu uma espécie de romance filosófico, que trazia o melhor de uma literatura existencialista do passado, mas sem a amargura de Camus, Sartre e Beauvoir.

O tempo passou, gostei menos do livro, cansativo na segunda vez em que o li, e achei o filme melhor que a obra literária, algo raro. Concluí que ela não era tão boa como eu acreditava, ficou datada - ou eu simplesmente fiquei mais velho.

A história de Kundera na cozinha reforçou minha impressão de que sonhamos e queremos muito escrever livros e, quando o fazemos, isso deixa de ter a antiga importância. Nesse momento, há algo na vida que desaba sobre nós, como um pesado céu.

Chamo a este efeito de "Céu de Kundera", e penso nele toda vez que me dá vontade de fazer outra coisa, qualquer coisa, como virar pescador, plantador de cebolas, estivador, ou quem sabe guia do deserto.

Mas um dia chega o descanso, e o Céu de Kundera agora é de paz.

sábado, 1 de julho de 2023

A morte de um livro

Como pessoas, os livros nascem - e também morrem, cumprido seu tempo e papel. É o caso de meu primeiro livro, Liberdade para Todos, publicado pela primeira vez pela Moderna em 1996, cuja vida chega ao fim, 27 anos depois, com mais de 200 mil exemplares vendidos ao longo do tempo.

Vai aqui seu breve obituário, cheio de alegrias. Quando escrevi essa história, como sempre, tentava ajeitar sentimentos que eram meus. Com o livro - sobre um pai, um filho e um passarinho -, não imaginei fazer tantos leitores, tocando em assuntos delicados com crianças: responsabilidade,  liberdade  e, sobretudo, como lidar com a morte.










O melhor foi na época em que ainda se enviavam cartas. Vinham quilos, de lugares tão diversos como Canoas, no Rio Grande do Sul, e Parintins, no Amazonas. Eram de professores, mães e crianças, entre 8 a 9 anos. Vinham fotos, desenhos, convites, beijos impressos, poemas, histórias, palavras carinhosas, de agradecimento,  de incentivo - um adorável turbilhão de amor.

Houve também incidentes. Certa vez, o pai de um aluno do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, tentou proibir a adoção do livro pelos professores. Alegou que trabalhava no IBAMA e achava inapropriada uma obra que falava de um passarinho preso na gaiola. A editora me ligou, perguntando que justificativa eu teria a dar a esse pai. Respondi que ele lesse do livro pelo menos o título, que já indicava do que a obra era a favor.

Esse foi, no entanto,  um prenúncio do fim. Já não há passarinhos em gaiolas, ou pelo menos não é algo próximo da realidade da maioria das crianças hoje. O livro envelheceu. E agora, depois dessa longa vida, concluímos, eu e a Editora, que seu ciclo está terminando e a atual será sua última reimpressão.

Aqui fica meu obrigado a Walcyr Carrasco, que me indicou a Maristela Petrili, e a Maristela, editora que acreditou na obra e sempre me tratou com a correção, a gentileza e a elegância que me fizeram seu admirador.

Agradeço também a todos meus milhares de pequenos leitores, hoje a maioria já adultos, que me deram a maior recompensa destinada a um autor: um lugar, por algum tempo, na sua vida.