A longa escadaria em espiral, até a porta que dava para o quarto, aberta para um grande sótão: a cama de casal num mezanino baixo, uma cozinha com um balcão, uma sala de estar com uma escrivaninha de trabalho; à esquerda, a passagem para o quarto amplo, com uma banheira ao centro, a cama de madeira escura, diante da grande lareira de mármore.
Teresa achou graça na porta de madeira, baixa e pesada, que dava acesso ao banheiro, de teto inclinado pela água do telhado, como uma masmorra. Passeou os dedos pelos móveis antigos, a cadeira Luis XIV, a cama pesada de cabeceira alta, que servira sabe a quantos, testemunha de muitas vidas e horas inconfessáveis.
As malas nem foram desfeitas: mergulharam entre os lençóis flutuantes, os travesseiros de penas, a pele morena de Teresa sobre o algodão branco, os cabelos espalhados, ondulando sobre as dobras do edredom.
O cheiro dos corpos misturados, a vontade primitiva, os desejos como presente saindo da caixa. Depois, Teresa adormecida ao seu lado, enfim serena e apaziguada; ele a olhava na penumbra, como joia viva no colchão.
Pela janela medieval se avistava os telhados do casario de Paris, mas para eles Paris estava ali dentro, à luz de do abajur art déco, sombra, luz e movimento, languidez e paixão. Dormiam e acordavam enlaçados, dois amantes num refúgio do amor, esconderijo de tudo: da vida lá fora, do passado e deles mesmos.
Tinham saído de São Paulo, sem dizer a ninguém onde iam, com quem iam, nem a razão. Deixaram para trás as vidas anteriores, sem saber ao certo o que os movia, exceto que, fosse como fosse, a vida levava um para o outro.
Teresa embarcou no aeroporto sem malas, livre de tudo, o avião apenas como ponte para ele, que já a esperava. O momento de um para o outro, única coisa de que precisavam, única destinação.
Deixaram para trás a vida anterior, os filhos, e o medo. Havia apenas a sombra do exame de Teresa, o tumor que havia sido descoberto pouco antes da partida, um indicador que dava 1000, quando não podia dar mais que 20, e eles não sabiam o que era, o quão grave, nada: só na volta saberiam melhor, enquanto isso mergulhavam juntos na escuridão.
Sabiam que o passado pesava, que a vida anterior os minara, também com um câncer: penetrava na pele, misturado às células. A tristeza é somática, contra ela o corpo sofrido se rebela, e a alma também.
A sombra da doença pairava, mas eles se refugiavam do medo nos braços um do outro, sem comida, sem ver a luz. Passavam o dia enlaçados, imersos em sussurros e planos e depois ele lavava os cabelos dela, um ritual sensual, longo e solene, na banheira feita de palco dentro do quarto. Depois elas secava as melenas no espelho antigo, usando ao mesmo tempo dois secadores, como uma dança mágica ao vento, e ele olhava por gostar de olhá-la, cada movimento era beleza e amor.
Saíam do quarto pela primeira vez ao dia às quatro horas da tarde, apenas porque não podiam ficar sem comer. Paris no Natal estava frio, Paris chovia, e só havia conforto em voltar, subir aquela escadaria, esconder-se no sótão, sua nova casa. Moravam agora ali, dentro de um quarto, e naquele quarto um dentro do outro; dali, venceriam tudo.
Às vezes, nessas parcas horas, um breve passeio. Uma caminhada no fim da tarde, quando o sol se abriu, como mensagem divina; atravessaram a ponte dos cadeados, onde tanta gente deixava aquela lembrança de amor.
Ele a fotograva, usando a boina dele e calça xadrez, a musa que ele mesmo inventou. Caminharam assim, entre risos, pela quai do Sena; passaram por um mendigo, adormecido sob a ponte e entraram nas Tulherias, pisando o cascalho, entre o esqueleto das árvores invernais. O sol súbito caiu sobre uma fonte, iluminando o momento: Teresa acordou de repente, e perguntou, onde estamos?
Uma noite para sair: depois o restaurante japonês, invenções sobre um prato, cruzaram o canal sobre o Sena; juntaram-se a centenas de pessoas, cujos passos ressoavam no frio da noite, olhando ao longe a tenda iluminada do Cirque du Soleil, como uma esplendorosa nave alienígena, pousada ao lado do rio.
Corteo: espetáculo da vida assistindo a morte, ou a morte assistindo a vida; a felicidade vive sob uma espada. Algo tão igual ao momento deles, em que vida e morte, tristeza e alegria, tantos opostos se encontravam tão misturados. No fim, ele pensou, era isto: uma bicicleta sobre a corda, rumando ao céu, imagem da vida, a sua beleza, e tudo o que podemos pedir.
O dia de Natal, o mais temido de todos, o primeiro longe das famílias: receio da opressão da saudade, de ter estragado tudo, do sofrimento próprio e dos outros, pelo que se deixa atrás para nunca mais ser o mesmo. Mas havia o futuro, para a vida e para eles, não do jeito que buscavam, ou que queriam, e sim do jeito que eram, eles mesmos afinal em estado verdadeiro e puro.
Enquanto pelo mundo crianças recebiam os presentes de Natal, as famílias estalavam copos e talheres em festa, eles anestesiavam a alma na plateia da Opera de Paris. No intervalo do espetáculo, uma taça de champanhe na sacada, o brinde de Natal, feito como juramento: nós dois juntos contra o mundo e venceremos; acreditamos no futuro, vamos consertar tudo, reconstruir, ou construir o certo, tudo pode o amor, quando é a força maior.
Saíram caminhando abraçados, entraram no Café del'Opera, entre as mesas vazias da meia noite natalina: a cidade estava suspensa naquele momento, o coração batia forte, era possível ouvir a própria pulsação, mas eles estavam mais leves, voltava o sorriso, passara o mais dificil e eles se deixavam embalar pelo mel de um dia inteiro de cumplicidade e amor.
Breves momentos do dia lá fora: O Pensador, no Museu Rodin ("já vi isto aqui", disse Teresa); madeleines num café acolhedor; o silêncio sagrado do velho templo de Saint Germain. Imagens que ficaram na memória, sem começo, sem fim: só fotografias, tiradas com os olhos, gravados no arquivo invisível do coração.
Mas nada era como subir aquela escada, voltar ao quarto, a eles mesmos, sentindo o conforto de quem entra dentro de casa, a primeira casa deles, de muitas que teriam mais. O frio ficava do lado de fora, de fora ficavam o medo e o passado de desamor. Eles não precisam de mais nada, Paris era ali, mas seria em qualquer lugar; bastava terem um ao outro: viveriam, sobreviveriam, e teriam a felicidade mais pura, reunindo novamente a todos, para outros natais, contagiados por aquele amor, que eles levariam de Paris, a transbordar.
*
Marcel olha as antigas fotos, abre o navegador e pesquisa: Hotel del' Université.
Há um passeio virtual; ele sobe a escadaria, usando o dedo indicador sobre o laptop, e chega ao último andar. O texto informa que o hotel passou por uma renovação em 2011. O antigo sótão, onde ficava o quarto Saint Germain, foi dividido em três quartos diferentes, modernos, com mobiliário de design, paredes brancas calafetadas. Ainda há janelas para o casario de Paris, mas a grande lareira de mármore, a banheira, tudo desapareceu.
Remexendo nas lembranças, ele recorda de ter estado uma vez ali, muitos anos antes, mesmo daquela semana em Paris, para passar a noite de Natal.
Tinha pouco mais de vinte anos, entrou no hotel para conhecer, porque ambicionava ser escritor e sabia que Hemingway, quando estava na cidade se hospedava ali. Subiu ao quarto do último andar, levado pelo funcionário, parou diante da janela, e pensou: um dia vou escritor, terei dinheiro e trarei para cá alguém especial, para ter uma história de amor, aqui.
Marcel examina novamente o site. Não há mais nenhuma referência a Hemingway. Teresa vive, mas não está com ele. As pessoas apagam o passado, apagam as pessoas, testemunhas de um tempo e um lugar que, dessa forma, já não existem.
Pensa que não é mais também o homem daquele quarto em Paris. É novamente o rapaz magro e imberbe que andava no inverno parisiense de capa de chuva, sem dinheiro para comprar um casaco de verdade, passando fome e frio, mas procurando os caminhos de Hemingway.
E que queria viver intensamente os seus sonhos, transformados em realidade, vividos, ao menos, uma vez. E escrever, colocar em papel as histórias, para fazer com que, dessa forma, eles não acabassem mais.
Não existe o quarto, não existe Teresa, mas existe, ainda o sonho: a justificava para a entrega sem receio, a única coisa que faz a vida valer a pena, mesmo outros o joguem fora, mesmo atropelado pela maldade alheia. E existe a história, essa ferramenta abstrata, que faz com os sonhos sejam revividos e, mesmo abstratos, nunca desmanchem no ar.