quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Inteligência artificial, ou morte cerebral

A inteligência artificial, desenvolvida para substituir capacidades humanas, com mais eficácia, é dessas grandes soluções tecnológicas que se tornam também uma ameaça à vida, lançando a pergunta sobre o que será da humanidade quando mais nada tiver a fazer. Igualmente ameaçadora, porém, a meu ver, é a transformação da inteligência humana numa inteligência artificial, como já ocorre, com um efeito muito danoso para a sociedade e o futuro da espécie à qual pertencemos. Desculpem a conclusão antes da demonstração, mas quero dar aqui um exemplo para que entendam do que estou falando. Recentemente, vi no Youtube uma entrevista com um auto-denominado crítico literário, que atende pelo pseudônimo de Décio Machado, fazendo graça com a ideia de menoscabar o trabalho alheio. O link me foi enviado pelo Alessandro Thomé, brilhante autor que, por sinal, escapou das machadadas do suposto crítico, por seu romance Perto dos Olhos de Deus, ao qual "Machado" faz muitos elogios. Esta ferramenta da inteligência nacional detecta com muita razão que hoje a crítica literária, como de resto a sociedade, avalia não apenas a obra, mas o escritor, como se autor e obra fossem uma coisa só. Por isso, não se poderia mais fazer a avaliação de uma obra, sem fazer também uma checagem da vida pessoal do autor, para saber se ele tem (ou teve) um bom comportamento. Daí tentativas de “cancelamento” de gente como Kafka, por exemplo. Ora, não faltam autores brilhantes de comportamento discutível, aos olhos de ontem, como de hoje. Bukowski era um bêbado. Zelda Fitzgerald, louca. Jack London, um marginal. Martha Gelhorn, amante de Hemingway, uma vagabunda oportunista. A lista é imensa. Por uma miríade de razões, escritores que nem vivos mais estão continuam sendo perseguidos. Monteiro Lobato, que foi para a cadeia no Estado Novo, hoje para muitos deve ser execrado porque escreveu num livro para crianças que Tia Nastácia era “beiçuda”, entre outras coisas. Lewis Carroll escreveu Alice no País das Maravilhas porque era pedófilo. Gabriel Garcia Márquez era um assediador de mulheres e um porco chauvinista. E muita gente nem entende qual a relação entre a psiquê de Kafka e Metamorfose, mas já vai cancelando autor junto com a obra porque seria um putanheiro. Acontece que a própria criação está frequentemente ligada a psiquês turbulentas, comportamentos desviantes e biografias tumultuadas. Essa relação por sinal foi muito bem analisada por um importante psicanalista, o doutor Anthony Storr, num brilhante livro, que aponta a relação entre a criatividade e uma conturbada vida pessoal de gente considerada muito criativa, intitulado "A Dinâmica da Criação". Chancelar um escritor por "bom comportamento" na vida pessoal, o que elimina do mapa a maior parte da literatura mundial, é inteligência artificial, porque parece inteligente, mas desumaniza o entendimento. Grande parte dos autores, especialmente de ficção, escrevem justamente por causa de sua tumultuada psiquê. E isso não fala mal sobre o autor, ao contrário. Por vezes, escrever um livro é uma forma de auto análise a céu aberto, por parte de um ser humano que assim aprende e dessa forma evita cometer novamente os mesmos erros. Muitas vezes, um autor busca no exercício literário justamente purgar sentimentos, refletir, corrigir, e melhorar a própria vida. Essa experiência é justamente o que bem serve ao futuro leitor. Essa é a grande contribuição da literatura e o que separa o autor de sua obra. O autor pode levar uma vida condenável ou miserável e sofrer o julgamento de seu tempo (e de tempos posteriores), por razões as mais variadas. Sade é um grande exemplo. Euclides da Cunha tentou matar o amante da mulher - e morreu. Alvarenga Peixoto era um sonegador de impostos. Tomás Antonio Gonzaga terminou Marília de Dirceu na cadeia. Dostoiévski também foi preso – e registrou a experiência em Recordações da Casa dos Mortos. Não adianta estar de um lado ou outro, porque a perseguição varia de lado. Dalton Trumbo foi boicotado no marcartismo pela pecha de ser comunista. Soljenítsin foi para um Gulag por se opor ao comunismo. E por aí vai. Mas não faz sentido jogar fora a obra literária, confundido-a com o autor, que morre, mas ela, com as reflexões que provoca, fica. Como autor, sei bem o valor da literatura como um exercício de auto conhecimento, reflexão e uma forma de melhorar a vida – a nossa e possivelmente de alguém. É essa experiência humana, ofertada de forma generosa e às vezes arriscada, que tem um valor inestimável e eterno para futuros leitores, que podem assim olhar para si mesmos, descobrir e resolver até mesmo as piores mazelas. Como diz o Caetano, olhado de perto, ninguém é normal. Por trás de todo cidadão com dedo em riste, ou querendo cancelar alguma coisa, há um hipócrita querendo ocultar o próprio comportamento. Na maior parte dos casos, aqueles que acusam os outros estão apenas acobertando seus próprios erros – ou não os aceitam, porque não sabem lidar com eles. Incomoda tudo aquilo que lhes diz respeito mas é estranho ou mal visto neles mesmos, por eles mesmos. Em geral, olhados de perto, os moralistas são os maiores corruptos, pervertidos e imorais. Não há maior moralização da sociedade que pela liberdade. Lê um livro quem quer. Até o Mein Kampf. O que não pode haver é a destruição da reputação e dos seres humanos, vivos e mortos, e sobretudo a censura, isto é, impedir que uma obra venha a público, com a intenção de evitar que outras pessoas façam seu próprio juízo. Ter acesso a tudo e formar opinião própria é um direito de todos. Infelizmente a inteligência artificial, cheia de falsa moral e falsas verdades, está se disseminando - não nos robôs, mas nos seres humanos. A literatura e a liberdade são o único remédio contra a mecanização da inteligência. A disseminação dessa forma de inteligência por lobotomizadores só pode visar o fim da liberdade, controlando a cultura e, por ela, o cidadão. Não podemos ser robôs. E a literatura é o grande antídoto contra a morte cerebral da sociedade.

domingo, 18 de fevereiro de 2024

O Canto de Nassau

Sempre fui fascinado pela figura de Maurício de Nassau. Agora que escrevo uma versão em poema de meus livros de história, posso expressar algo do que ele representa para mim. Saiu, a ser incluso nesse futuro livro, um trecho que por enquanto chamo de Canto de Nassau. 

É uma parte daquilo em que o ChatGpt não conseguiu me ajudar. Então, lá vou eu, fazendo sem pressa, mas sem perder tempo.

Diz assim:


CANTO DE NASSAU

 

Quando ao zarpar me perguntaram
porque em vez de mais soldados eu levava
ao Brasil pintores, escritores e cientistas
e em vez de mais armas carregava sábios e artistas
para a guerra inofensivos
eu me perguntava para que servem à maioria
o astrolábio e os livros
e com isto eu me ria

Para o bom governo das empreitadas
de longo alcance em missão tão importante
não se faz bastante a mão
de ferro nem a visão
do mais ousado governante
é preciso saber usar espadas
mas para ficar em algum lugar
é preciso bem administrar
saber mudar com o quadrante
num mundo que se expande
onde só a arte mostra e ensina
está por trás e contamina
faz pensar melhor - e grande

Só a arte mostra o belo
lhe dá valor e dimensão
e a ciência pode fazê-lo
realiza o sonho com a razão

Arte e ciência são a fonte
de toda e qualquer sabedoria
e quando me perguntavam por que ria
ao zarpar olhando o horizonte
é por que sei como serão
grandes os homens que o futuro farão
como o homem do passado já fazia