sábado, 26 de outubro de 2019

Na "China"

Mais um trecho do meu próximo livro, capitulinho intitulado..."Na China".
Em quarenta anos, poucas vezes fui à Liberdade; mas quis mostrar o lugar onde nasci a André. Levo meu filho para visitar a feira de domingo; ele tem pouco mais de três anos. Vamos de metrô, que tomamos na estação Sumaré; trocamos de trem na Sé e descemos na Liberdade. É a primeira vez que ele anda de metrô; os vagões estão vazios, mas ele prefere ir em pé, para ter a sensação da velocidade.
A ladeira da Rua dos Estudantes, onde ficava o prédio onde nasci, era um território perigoso, cheio de mendigos e bandidos, onde não se podia ir nem à luz do dia; a parte alta, porém, vibrava com os turistas de fim de semana, que enchiam as ruas decoradas com lanternas vermelhas.
Andamos pela feira de artesanato, na praça da Liberdade; coloco ele em meus ombros, para enxergar por cima da multidão. Andamos entre barracas de frituras, bonsais, bijuterias e objetos de bambu.
Almoçamos num restaurante de pernas cruzadas sobre o bandô; ele adora yakissoba, porque como bom italianinho aceita qualquer tipo de macarrão. E vai comigo ver o jardim japonês na ilha rodeada por carpas coloridas que enfeita um lado do salão..
Expliquei-lhe a certa altura que tinha nascido e vivido ali quando tinha a idade dele.
- Você então nasceu na China?
Tento esclarecer que era apenas o bairro japonês, mas ele, maravilhado, continua achando que está em outro país.
Depois de uma curta caminhada, com a preguiça das horas de digestão, decidimos para casa de táxi. Quando o taxista acelera, André pergunta, sentado no banco traseiro, ao lado da mãe:

- Vamos voltar para o Brasil?




quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Por que escrevo


Estou terminando de escrever um livro, que deve ser meu próximo, o mais difícil (para mim mesmo) que já escrevi. Divido ou antecipo aqui um pequeno trecho, que fala sobre a própria dificuldade de escrevê-lo. (E esse aí da foto sou eu mesmo, piqueno, objeto dessa obra).

"Deveria ser fácil, mas assumir os erros e enfrentar a nós mesmos para mudar e melhorar é uma tarefa ainda mais difícil que enfrentar os outros. Mudar é doloroso, pois no caminho temos de encarar quem somos, nossos medos, nossas falhas.

Precisamos de humildade para aceitar que não sabemos tudo, que temos problemas e que nossa felicidade depende dos outros. Isso fica muito evidente quando temos filhos. É por eles, até mais do que por nós mesmos, que devemos tentar ser melhores.

Aprendi a duras penas. O exercício de escrever é um processo de reflexão, do qual acabamos dependentes. Escrevemos não por vaidade, ou por exibicionismo, ou para ficar na posteridade, mas para viver. Seja como autor de livros de ficção como de não ficção, eu me obrigo primeiro a quebrar a casca da ostra, a encarar a verdade interior.

Depois, aceito o que nunca faço: me expor. Escancarar as portas da alma, sem segredos, é uma forma de mudar, superar a dificuldade de estabelecer uma ponte para o mundo. Ao escrever, ajudamos a nós mesmos; ao publicar o que escrevemos, a intenção é ajudar também os outros na mesma situação. O que vemos nos livros pode ser informação, ciência ou arte, mas em última análise é o aprendizado com a experiência humana, que dividimos uns com os outros.

Aquele que abre o coração expia seu sofrimento em busca de redenção. Dá o primeiro passo para a admissão de que é um ser humano. E descobre, ao abrir os braços, que os outros o acolhem. Saber que não estamos sozinhos no mundo e receber esse retorno, tanto quanto dá-lo, traz um grande alívio."

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

O futebol e os garotos

Leão na bola: bom, briguento e vaidoso
O futebol sempre foi mais que o futebol. Nele se encontram os grandes sentimentos do homem, suas virtudes, suas falhas, num laboratório cercado por quatro linhas de cal.

O esporte me ensinou muito sobre vitórias e derrotas e também que a presença é o maior bem que podemos ter. Papai ia ao futebol com vovô e uma de suas memórias mais caras de infância foi um jogo da Copa do Mundo de 1954 - um Itália e Argentina em que o goleiro portenho, chamado Vaca, fez inesquecíveis milagres.

Eu gostava de sentar com ele na arquibancada do Pacaembu, num canto da arquibancada que não custava muito caro, e o futebol era sempre pretexto para conversas e algumas horas de companheirismo despreocupado. Um tempo que tinha algo de cumplicidade entre homens, mesmo sendo eu apenas um menino, o que fazia eu me sentir muito importante.

Naquele tempo em que o Palmeiras tinha a poderosa "academia", derrotas eram raras – o time ficou dois anos invicto, entre 1973 e 1974, quando foi bicampeão brasileiro. O torcedor tinha mais mais liberdade, especialmente dentro do Parque Antártica, o antigo estádio do Palmeiras. No intervalo do jogo, mudávamos de lado na arquibancada, para ficar mais perto do campo de ataque. Como o Palmeiras sempre dominava a bola, a maior parte do jogo acontecia no campo do adversário.

Eram todos grandes jogadores, mas eu, desde cedo, admirava e tinha como ídolo Leão: o audaz, esbelto e briguento goleiro do Palmeiras. Não gostava de perder de jeito nenhum. E era vaidoso. Até então, os goleiros usavam uma roupa cinza ou preta, como a dos juízes. A regra diz que o goleiro precisa ter um uniforme diferente do time, não necessariamente preto. Leão aproveitou-se disso para envergar uma camisa azul, que se tornaria tradicional no clube por longo tempo.

Tive uma camisa daquelas, de algodão, com o escudo do Palmeiras sobre o plexo solar. Numa loja de esportes da Líbero Badaró, meu pai comprou para mim também luvas emborrachadas de goleiro, meio grandes para minhas mãos pequenas. Posso sentir até hoje o cheiro do couro e borracha.

Passava horas sozinho, chutando a bola contra a parede, e saltando para pegá-la de volta. Não há sensação mais maravilhosa do que voar na bola, fazendo a “ponte” – a defesa mais plástica do futebol, em que o goleiro se estica completamente no ar. Defender uma bola com a “ponte” era como fazer um gol.

Mais tarde, ao jogar na Casa Verde, ia sempre para o gol. Meu primo, que tinha seis anos mais que eu, estava sempre nas peladas da rua, do colégio Nossa Senhora das Dores e, depois no Matarazzo, o time do bairro, que jogava no antigo campo do antigo Guarani da Casa Verde, na várzea do Tietê. Como eram meninos mais velhos, para não me machucarem, ele me mandava sempre para o gol.

Aqueles eram outros tempos do futebol; havia ainda algo romântico no esporte. Lembro das difíceis partidas contra o Juventus de Milton Buzzetto, um técnico especialista em retrancas, que nos faziam sofrer – e algumas vezes, perder a cabeça.

Num jogo assim, uma briga se transformou numa batalha campal. Foram expulsos todos os jogadores do Palmeiras, menos, salvo engano, o olímpico Ademir da Guia. O juiz deu vermelho até para Leão, que estava no gol, longe da confusão, mas correu metade do campo para entrar na briga. Na partida seguinte, com a suspensão dos titulares, o Palmeiras entrou em campo somente com reservas; no lugar de Leão, jogou um goleiro com nome de astro de cinema: Raul Marcel.

Torcidas podiam levar bandeiras aos estádios e torcedores de times diferentes conviviam lado a lado, de forma mais ou menos civilizada.
Não havia tanto dinheiro no futebol, e os jogadores que iam para a Europa, uma economia mais forte, onde os atletas passaram a conseguir contratos milionários, eram mais raros. Os craques do Brasil jogavam no próprio país e havia grandes partidas, tanto nos campeonatos estaduais, onde os times do interior eram fortes, quanto no Campeonato Brasileiro.

Poucos jogos passavam na televisão, e os jogos da cidade não eram transmitidos ao vivo, já que não havia a TV a cabo; com sorte, à noite se podia ver o “videotape” da partida. Por isso, ir ao estádio era mais barato, frequente, e importante.

Embora o Palmeiras da minha infância fosse um time vitorioso, não importava o resultado da partida, desde que eu e meu pai estivéssemos juntos. Essa era a essência do futebol. Com o esporte, aprendemos a suportar melhor, até com bom humor, os maus resultados. Todos os torcedores se rendem a um certo saudosismo, a pensar que o futebol de sua infância era melhor, porque está misturado a nossas melhores lembranças.

Pode ser que as crianças de hoje achem o mesmo no futuro e este tenha sido para elas o melhor tempo do futebol. De todo modo, com os escândalos de corrupção, derivados das fortunas que correm nos jogos de azar agora feitos por redes virtuais, as tentações do demônio são maiores, ainda que a índole do ser humano sempre tenha sido a mesma.

Hoje, meus heróis continuam a ser os mesmos de antigamente; não sou capaz de enxergar novos ídolos, mas sou fiel aos mesmos, diante dos quais, ainda, me sinto criança. 

Ave, Leão.