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sábado, 6 de agosto de 2022

No mundo do criador. Meu perfil de Jô Soares, para VIP, novembro de 1995

Embora fosse o entrevistador mais célebre do Brasil, o showman Jô Soares raramente concedia entrevistas. Em 1995, abriu-se a janela para uma delas, quando ele promovia o lançamento de seu primeiro romance, o policial satírico O Xangô de Baker Street. Em seu apartamento no bairro de Higienópolis, Jô recebeu a mim e ao diretor de redação de Vip na época, Marco Antônio Rezende, com a condição de que somente poderíamos publicar a reportagem depois que passasse pela sua leitura. No início, pensei ser algo inaceitável na imprensa. Hoje, vejo o pedido dele mais como uma gentileza entre colegas de profissão.

Jô concordou em falar sobre tudo, até mesmo seu filho Rafa, sobre quem sempre deu poucas declarações. Posou de bom grado para uma sessão de fotografias, com o tradicional terno e gravata borboleta, conjunto ao qual fez questão de acrescentar um charuto. Muito cioso e experiente no controle da própria imagem, queria surgir no seu coté mais intelectual.

Voltamos à casa de Jô uma segunda vez com o texto pronto, para o momento delicado da leitura por parte do personagem.

– “Luzinhas piscam”? – disse ele, repetindo em voz alta a primeira frase, com uma careta. – É assim que começa?

– É – respondi.

Jô seguiu em frente e o resultado pareceu agradá-lo. Não fez qualquer reparo ou pedido de modificação do texto, nem sobre as tais luzinhas. Eu e Marco Antonio voltamos para a redação aliviados. Tínhamos a capa da revista, sem brigar com o Jô.

O texto original da revista foi publicado num livro de perfis de pessoas célebres, que publiquei pela editora Saraiva (Eles me disseram). Jô virou amigo. Fui entrevistado por ele duas vezes em seu programa, a última delas em 2015, quando lancei A Conquista do Brasil. Eventualmente conversávamos. Jantávamos no Jardim de Nápoli, porque, lá, ele não pagava a conta. E eu aceitava, para pegar carona  na gentileza do dono da casa. Eram jantares sempre divertidos, em que gostávamos especialmente de trocar histórias sobre gente de imprensa - ele conhecia muitas, e era uma delícia ouvi-lo contar.

Estranho que o texto termine falando de uma certa aristocracia que só acabaria junto com Jô. Ele acaba de falecer, para tristeza geral, e, tantos anos depois, continuo pensando a mesma coisa. E este perfil, construído no seu auge intelectual e criativo, ainda me parece o melhor Jô. 

 

(texto)

No mundo do criador

Luzinhas piscam como vaga- lumes eletrônicos na escuridão. Jô Soares acende a luz e aparece a grande biblioteca de seu apartamento, em Higienópolis  São Paulo. Nas estantes de madeira patinada, sob inspiração do arquiteto Sig Bergamin, acomoda-se 2000 livros, a maioria encadernados —sem contar os que há em sua casa de Petrópolis. Como o comandante de uma espaçonave, Jô instala-se na mesa em semicírculo ao fundo do salão. Sobre ela, o elemento mais proeminente é uma elegante caixa umidificadora de charutos, de rádica. De um conjunto de som, faíscam as luzinhas sequenciais. À direita, um poderoso microcomputador Pentium, tela gigante, um aprelho de TV Philips, e a janela onde pousam duas corujas espanta-pombos , de cerâmica, com vista para o bairro arborizado.

            Na parede do outro lado repousa um quadro a óleo em estilo pop de autoria do próprio Jô. É uma caricatura dele mesmo, gostosamente refestelado numa poltrona, com a roupa do Super—Homem e chinelas. Dorme segurando os classificados de um jornal, ao pé do retrato emoldurado de um sujeito bigodudo. “O nome do quadro é O retrato de Nietzsche na casa de seu filho”, explica.

            Não é só auto-ironia que quebra a perfeita organização do ambiente. Pelos cantos, há algumas pilhas do livro que Jó lançou recentemente: O Xangô de Baker Street, sua estréia como romancista. A história, um policial protagonizado pelo legendário detetive Sherlok Holmes no Rio de Janeiro do Segundo Império, é claramente algo com a marca de Jô. Na trama, personagens reais e fictícios se misturam com a naturalidade que ele imprime às suas mais finas criações. Para quem se espantou ao ver Jô romancista,diga-se que o livro já era um sucesso no lançamento.  Nas primeiras três semanas, foram vendidos cerca de 130 000 exemplares de Xangô. Nesse pouco tempo, ele quase alcançou a marca final de Agosto, último romance de um especialista no ramo, o escritor Rubem Fonseca( 160 000exemplares vendidos). E aproximou-se a passos rápidos dos recordistas da sua editora, a Companhia das Letras( Estorvo, de Chico Buarque, e Paratii, de Amyr Klink, com 200 000 exemplares). “Este vai ser o nosso melhor ano”, proclama o normalmente comedido editor Luiz Schwarcz.

            O Jô romancista cavalga com desenvoltura um sucesso do mesmo tamanho do Jô da TV. Mas a nova encarnação de Jô, literato, explodiu de modo um tanto inesperado, até para o editor Schwarcz, que ao lhe pedir um livro sugerira um compêndio sobre a história da televisão brasileira. “Não sei porque estranharam que eu tivesse escrito um romance”, diz Jô, enquanto solicita uma ajudante doméstica, ainda fardada para o seu plantão noturno, uísque com gelo para os seus convidados. Para ele mesmo pede um imbatível guaraná diet- bebida predileta dentre as que se permite. “Isso é um prolongamento da atividade do artista”, prossegue. “Se eu fosse engenheiro ou neurocirurgião , aí talvez se justificasse algum espanto”.

            Não se pode dizer , também, que Jô seja um neófito nas pretinhas, como os jornalistas costumavam chamar a máquina de escrever na era pré- computador. “Eu trbalhei pela primeira vez em jornal em 1961, quando escrevia uma coluna diária no Última Hora”, conta Jô, entre goladas de guaraná. “Era uma coluna com pessoas, artistas e espetáculos.” Na época, como era costume entre a elite do jornalismo paulistano, ficava até altas horas da madrugada em debates boêmios no velho restaurante Gigetto com os colegas da redação .

            De certa forma, nem mesmo os oito anos em que Jô confirmou-se como o melhor entrevistador da televisão brasileira, no seu tradicional programa Onze e Meia, ou escrevendo na coluna semanal na revista Veja, foram suficientes para encobrir sua imagem como humorista e homem de TV e teatro, onde ainda atrai multidões com seu one- man- show Um gordo em Concerto. Até porque ele faz questão de dizer que como jornalista seu principal elemento é também o humor.

            Pode-se ver muita coisa do Jô intelectual em Xangô. Persiste no seu livro a graça com que ele coloca um clássico personagem dos romances policiais, o detetive Sherlock Holmes, e seu amigo, o doutor Watson, a investigar uma série de crimes no Rio de Janeiro do Imperador Pedro II. Ao recriar os personagens a seu modo, inventar outros e ainda entronizar uma participação especial de personagens históricos, como a atriz Sarah Bernhardt e o próprio Dom Pedro, ele se diverte misturando ficção ao documento minucioso da época, o que imprime ao livro uma interessante mistura de graça e erudição.

            Com seus dedinhos , JÔ saca um Hoyo de Monterrey, doble corona, fura a ponta e o acende com prazerosas fumaradas. Diz que este é um velho hábito seu, embora só tenha vindo a aparecer publicamente empunhando charutos agora que está lançando o livro, na condição de entrevistado, e não na de entrevistador. Jô entende de imagens como poucos—e quer mostrar seu lado sério para que não levem seu livro na brincadeira. “Gosto muito de charutos, embora não tenha preferência por nenhum”, ele diz. “Fumo cubanos, porque eles realmente são algo diferente. É como vinho francês e pastel e sanduíche de botequim. O sanduíche em casa nunca é igual ao do bar. Faltam os germes, as bactérias e a mão suja de quem faz”.

            Entre uma e outra baforada, ele se entrega com evidente prazer à tarefa de recompor seu percurso profissional e intelectual. Lembra que em 1965 chegou a passar um dia prestando depoimento no Dops por participar de reunião de intelectuais de apoio à classe teatral, quando esteve entre os integrantes da mesa. Diverte-se ao lembrar: “O policial que me interrogou me perguntou, com grande seriedade: “O senhor sabe que intelectual é palavra inventada pelos comunistas?”

                                                                                                                                    De uma gaveta bem à mão, JÔ saca uma pasta com cópia de sua ficha nos récem – abertos arquivos do Dops paulista, retirada por um amigo. Põe-se a ler, quase embaraçado pela estupidez de uma era passada e obscura: “Elemento  nomeado ministro extraordinário da eucaristia, formado por Dom Helder Câmara...”Explica: “Eu fazia espetáculo no Brasil todo e ajudava na eucaristia. Achava que o leigo deveria participar mais da Igreja e fiz curso em São Paulo com Dom Lucas Moreira Neves. Estive com Dom Helder apenas quando fiz um show no Recife”.

Ele assesta os óculos e prossegue na leitura: “Autor da música Liberdade, proibida pelo Dops”... Nova explicação: “Fiz para o Ari Toledo. A letra dizia que ele queria morar na Liberdade (o bairro de São Paulo), que a rua tal e tal ia dar na Liberdade, mas que a Brasil e a Estados Unidos não iam dar na Liberdade... Claro que a gente fazia oposição como podia”. Jô chegou a ser processado quando trabalhou no Pasquim, naqueles tempos brabos, por causa de um artigo chamado “A cama”. “Dizia que a cama chamava-se cama por causa de seu suposto inventor, um homossexual assumido e famoso chamado Giovanni Cama”, explica Jô. “Daí a frase: Crie fama e deite-se no Cama”. Ri. “Não tinha nada demais, mas era o Pasquim, e qualquer coisa servia de pretexto para censurar a esquerda e podar a livre criação.”

 Talvez Jô acabasse conquistando fama no jornalismo se não tivesse iniciado a carreira de ator no filme “O homem do Sputnik”, em 1958, e começado a trabalhar na TV Rio na mesma época. Depois, foi convidado para a TV Globo pelo amigo Max Nunes, cardiologista que nas horas vagas tornou-se um dos mais talentosos autores de rádio e televisão do país. O mesmo Max Nunes, agora com 73 anos, aposentado da Medicina, com quem Jô ainda faz parceria – é seu co-autor na TV, em caráter de exclusividade. “Fizemos o Faça Humor, Não faça Guerra, ele escrevendo, eu escrevendo e fazendo personagens”, diz. Ele olha para o seu Pentium e lamentou que ainda não estivesse à sua disposição naquela época. “Escrever naquelas máquinas era um trabalho estivador”, diz Jô. “Principalmente a Família Trapo, um programa semanal de 2 horas. E ainda tínhamos de escrever tudo naquelas folhas de mimeógrafo. Ao final, estávamos completamente azuis”. Mas não se pense que o Pentium escreve sozinho. “O ato de escrever”, diz o novo romancista, “é como parir sem ser mãe”.

Jô fez incursões variadas também por outras searas artísticas, nem sempre com o mesmo sucesso, diga-se. Foi o caso, por exemplo, de seu único filme como diretor: “O pai do povo”, de 1975. “Foi uma frustração ter feito um filme que ninguém viu. Pelo menos, virou um cult às avessas”, disse. O Jô artista plástico participou em 1967 da 9ª. Bienal de Artes Plásticas de São Paulo, que ficou conhecida como a Bienal da Pop Art .

O ecletismo de Jô na área artística encontrou correspondência em outros aspectos de sua vida. Declara descaradamente que prefere um gorduroso cheeseburger às iguarias dos melhores restaurantes, embora tenha as de sua predileção, como o boeuf bourguignone do restaurante Daniel e o hambúrguer do P.J. Clark’s, em Nova York, ou o chucrute da Mansion d ‘Alsace, em Paris.

No Rio, Jô aprecia o cardápio do Hipopótamus e a carne seca e desfiada do Pantagruel. Em São Paulo, gosta do Massimo e é fã do polpettone al sugo de pomodoro do Jardim de Nápoli, que oferece a vantagem adicional de ser perto de sua casa. Jô é consumidor voraz também de livros. Entre suas leituras prediletas, relaciona clássicos como Eça de Queiroz, Ernest Hemingway e Dostoiévski, mas também escritores marginais. Como Frederic Brown, autor de contos curtos que ele degusta com prazer, e de um romance intitulado “Os Marcianos Se divertem”. Trata-se da narrativa de uma invasão de “marcianinhos verdes super cafajestes”, descreve Jô, que perseguem as pessoas em toda parte, inclusive na cama.

“Brow tem um humor ferino de que gosto muito”, diz ele. “Acho que os gremlins são fruto direto dos marcianinhos dele.” Para provar que está falando sério, Jô se dirige ao Pentium e tenta puxar o nome do escritor nos arquivos da Enciclopédia Britânica em versão CD—ROM. Nada. “Ele é tão marginal que nem na Britânica está”, diz. Depois, olhou para os livros em sua estante, levanta e busca um volume em francês onde consta uma brevíssima biografia de Brow. “Está vendo?”

Ao passar da bancada do entrevistador para o entrevistado, na esteira do romance, descobre-se um Jô Soares um pouco diferente daquele que todos acham conhecer da televisão. A começar pelas idéias, que muitas vezes deixa filtrar no seu programa, mas que só então aparecem inteiramente explicitadas.  Sua declarada posição ideológica, por exemplo: “Eu sou o anarquista que todo artista deveria ser”, diz. “Preservo a capacidade de criticar a quem quiser.” Essa profissão de fé tem seu lado muito prático. Jô, por exemplo, foi uma das primeiras - e poucas - personalidades a disparar contra o presidente Fernando Henrique Cardoso, uma unanimidade entre seus pares no mundo intelectualizado, ainda antes das eleições para a presidência da República, em 1993, quando decidiu aliar-se ao PFL: “Sou um democrata enraizado”, diz. “Essa aliança com o PFL incomodou todo mundo. E não era necessária”.

Ele também tem opiniões bastante singulares sobre o seu próprio meio. Acha bobagem, por exemplo, a conversa muito freqüente segundo a qual a TV imbeciliza o povo. “A função dela é pegar coisa de fora e levar para dentro da sua casa. Se você não ligar o aparelho , não será nociva, mas também não trará nenhum benefício - nem notícias, entretenimento, filmes. Nada. Na verdade, ela democratizou a informação, que antes era elitizada de modo indiscutível. Tenho empregados que às vezes estão mais bem informados do que eu sobre o que está acontecendo na economia.”

Casado pela terceira vez, com Flávia, Jô cultiva a discrição em relação à sua vida particular. Nas últimas semanas, expondo-se na nova faceta de escritor, acabou tendo de falar de assuntos que antes tenderiam a permanecer no terreno estritamente privado, como religião. Declara-se devoto de Santa Rita de Cássia, de quem tem uma imagem de meio metro de altura bem ali, em seu escritório. Diz que é assim desde criança, por influência da mãe. “Acho que Santa Rita me protege”, afirma. “Como tudo que é irracional, não tem muita explicação.”

Durante um programa Roda Viva, da TV Cultura, o momento mais emotivo foi aquele em que respondeu à pergunta de um telespectador sobre se tinha filhos. “Eu tenho um, hoje com 31 anos, o Rafael”, diz Jô. Rafael, que mora com a mãe, Tereza Austregésilo, com quem Jô se casou aos 21 anos, tem problemas semelhantes aos do personagem autista interpretado por Dustin Hoffman no filme “Rain Man”, embora ele evite mencionar o nome médico para o assunto. “O Rafinha tem um talento enorme para a música, toca piano e compõe”, disse no programa. “Mas ao mesmo tempo não consegue fechar sozinho o botão da camisa.” Alguns dias depois, entrevistado por Marília Gabriela, disse que para ele o problema de Rafinha era “bem resolvido até onde pode ser bem resolvido. Ter filhos com dificuldades é algo difícil de administrar. Mas eu não gostaria de ter outro filho  que não fosse o Rafa”.

Boa parte do dia, Jô passa ali no escritório mesmo, seu reino encantado, onde se sente muito à vontade. Acorda às 11 horas da manhã e dorme às 4 da madrugada. “Leio, vejo vídeos”, relata ele. Às segundas e terças, grava o Onze e Meia. Faz entrevistas também para os demais dias da semana. Grava ainda um programa de rádio, “Jô Soares Jam Session”, e de sexta a domingo apresenta no teatro “Um Gordo em Concerto”. Tira férias da metade de dezembro até março e procura não manter horários rígidos. “Tenho um problema com a pontualidade”, disse.

Nas férias, vai com freqüência a Nova York, onde se hospeda em flats alugados. Da última vez, em janeiro do ano anterior, acabou trabalhando na confecção de Xangô. “Quando estava escrevendo, fui ao Argosy, um sebo fantástico, com computador, na Rua 59, entre a Lexington e a Park Avenue”, disse ele. Lá, comprou a coleção completa dos livros de Sherlock Holmes. “Mas sou cliente fiel da Barnes & Noble, na Broadway com 83”, emenda. Em Manhattan, freqüenta cinema e teatro. “Aqui no Brasil, as salas são pequenas. A shopping não dá para ir, porque quando apareço começa aquela algazarra. Mas não fujo das pessoas, ao contrário, porque sou exibido à beça. Em viagem, ao contrário de muitos artistas que adoram o anonimato, eu fico carente. Sinto falta das pessoas que cruzam comigo sorrindo e me cumprimentando. Fico pensando: o que será que eu fiz de errado?”

Como se veste um escritor grande como Jô Soares? Ele usa jeans feito na Exss, que fabrica jeans de lycra, stone washed, especialmente para ele. Faz seus ternos com a VR. Depois, por amizade ao falecido Rafael Minelli, que confeccionava suas roupas desde a década de 1960, continuou freguês da alfaiataria paulista que leva seu nome. Gosta de gravata borboleta de dar laço — “nunca pinga nada nela” — e cultiva com gosto hábitos europeus, algo muito apropriado para quem estudou na Suíça até a adolescência. “Em Paris, vou à Brasserie Lipp”, diz. “Era amigo do antigo proprietário, falecido monsieur Casè, um fumante de charuto que proibia fumar cachimbo, dizendo que atrapalhava o apetite alheio com aquele ‘perfume adocicado’. Mas ele deixava os charuteiros completamente à vontade” diz Jô, e ri deliciado.


 Mesmo sendo amante de charutos, ele afirma que não tema outras grandes manias, como a de procurar “aquele” charuto. “Eu invejo as pessoas que não têm a menor fixação por objetos, como o Max Nunes”, afirma. “Uma vez lhe perguntei qual a cor de carro de que ele mais gostava. Sabe o que ele respondeu? Nenhuma, eu vou dentro.” Jô gosta de objetos bonitos, mas não faz questão de quantidade. Adora relógios, mas só tem três - o preferido era um Cartier modelo Pachá, de ouro maciço. Carros, também possui três: um Jaguar, um BMW 750 “longo” e um Mercedes conversível. “Tinha uma paixão pelas motos Harley que, como toda paixão, era patológica”, diz. Ela acabou depois de um par de tombos que deixou algumas seqüelas. Jô se levanta, vai até uma parede e empurra o braço contra ela, até conseguir alçá-lo apontando para o alto, único jeito de fazer movimento. Na primeira queda de moto, quebrou um braço. Na segunda, quebrou os dois. “O Max diz que motocicleta, por ter duas rodas, foi inventada para cair”, diz. “Um dia, ela te vence”.

O ar enfumaçado pelo charuto favorece temas mais profundos, de maneira que mudamos de assunto, para falar sobre seu método de criação. Talvez a principal característica de Jô seja a capacidade de reciclar o que vê à sua volta, transformando tudo sob sua ótica bem-humorada, como fazia com seus personagens da TV — alguns extraídos da realidade. Era o caso do português que exclamava “Q’ erias !”, um bordão que ao seu tempo se tornou muito famoso. “Eu estava com papai e mamãe numa estação de águas na Itália, num hotel deslumbrante”, conta Jô. “Havia lá um português grossíssimo e engraçado. Certa vez, vi uma bela italiana ralhando com ele: ‘Farabutto! Mascalzone!’ Era uma daquelas moçoilas que ficavam no hotel à caça dos ricaços que andavam por ali e cobravam 20 000 liras por serviço prestados.” Nesse ponto, Jô imita a reação do português: “’Q’erias! Q’erias vinte, zero é o que vales. Dei-te cinco, lucraste cinco. Q’erias!’  Contei essa história para o Max Nunes e ele achou que tínhamos ali um tipo já pronto”.

Essa característica de Jô também está presente em Xangô, além de um certo romantismo, pela maneira com que ele retrata o Brasil monárquico - cheio de nódoas sociais, mas também dotado de uma adorável leveza. Jô trata de monarquia como um tempo despreocupado e propício a uma boemia na qual se esbarra com figuras como o poeta Olavo Bilac numa mesa de bar ou Ernesto Nazareth ao piano num sarau chique.

Passa da meia-noite. Jô nos acompanha até a porta. Na parede do hall, há um grande painel de João Câmara de um lado e, de outro, a gigantesca estátua de um negro, com um grande sorriso no rosto, usando casaca decorada de estrelinhas e chapéu-coco, como os personagens que abriam a porta dos antigos teatros americanos. Estende a mão enluvada, e alguém deixou ali uma nota de 1 dólar. “Um amigo americano passou aqui em casa e deixou a nota aí”, diz Jô, divertido. “Eu gostei e colei”.

A história lembra outra, contada por Jô na mesma noite. Certa vez, acompanhado do compositor Jorge Mautner, ele discutiu com um negro na Washington Square, em Nova York, em meio a uma passeata de protesto contra os brancos. Tentava prova a ele que compreendia muito bem a situação dos negros nos Estados Unidos, porque, sendo de um país de Terceiro Mundo, também sentia-se discriminado. O negro americano, entretanto, fez pouco caso da conversa daquele brasileiro cordial. “Você é branco”, fuzilou ele, antes de lançar alguns impropérios e seguir na sua marcha. Jô não se conformava que o racismo pudesse ser superior àquela tentativa de aproximação.

De certa forma, em uma fértil maturidade, Jô é o tipo do homem que estaria apto a viver num mundo, passado ou futuro, onde o instrumento da moda fosse o violino, o francês a língua oficial e o fair play a regra de conduta. Infelizmente, o mundo é hoje bastante diferente – mas penso que sempre haverá algo dessa alegre aristocracia enquanto Jô estiver no nosso convívio.