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segunda-feira, 18 de março de 2019

Um charuto no Hof

Quando fui editor de livros, eu tinha de frequentar regularmente a Feira de Frankfurt, uma cidade meio sem charme da Alemanha, mas que tem um dos meus lugares favoritos no mundo: o bar do Steigenberger Frankfurter Hof. Ou, simplesmente o Hof - mais célebre hotel da cidade, reduto histórico onde se encontram jornalistas, editores e autores, todas as vezes que o circo do mercado livreiro faz sua parada na cidade.

No hotel tradicional, marcam-se encontros, alguns de trabalho, outros para conhecer pessoas e rever amigos. Por duas ou três noites, durante o período da feira, o hotel se ilumina não apenas com os velhos candelabros como o burburinho das discussões de negócios no salão principal, tão cheio de histórias que envolvem a própria história do livro.

Da primeira vez que fui, lembro de ficar ombro a ombro com uma jovem italiana que pedia no bar do jardim uma garrafa de água, enquanto eu tomava nas mãos uma flute de champanhe.

- Mas você só bebe água? - perguntei.

- Não - ela disse, com um sorriso. - Mas é melhor assim, porque tenho de estar sóbria, amanhã tenho um compromisso de trabalho com um editor logo cedo.

Qual não foi nossa surpresa, e diversão, quando no dia seguinte, pela manhã cedo, ao aparecer no salão dos agentes literários para a primeira da série de reuniões do dia, descobri que o encontro dela era... Comigo. Foi assim que conheci Giulia Mignani, que na época trabalhava na agência inglesa Numberg e depois se tornou editora em Milão, na Mondadori.

O bar do Hof: ilha na intolerância 
No Salão do Hof, comemorei junto com as moças da agência Balcells o Nobel concedido naquela mesma noite ao escritor peruano Mario Vargas Llosa. Uma noite especial também para mim.

Eu tinha acabado de entrar na editora, sabia que estava perdendo Llosa como autor para outra editora, com o vencimento de antigos contratos, que soubera desde a minha chegada que não seriam renovados. Naquela noite, graças a uma boa lábia, à champanhe e o entusiasmo das agentes, consegui manter algumas obras de Llosa na Saraiva-Benvirá, agora impulsionado pelo Nobel, por algum tempo mais.

O que eu mais gostava no Hof, porém, era de chegar cedo, nas horas de silêncio. lha no mar da intolerância na qual se podia fumar charutos à vontade, no bar do Hof sempre reina um silêncio reverencial. Lá, num poltrona de couro, reflexivamente, eu me sentia muito mais à vontade que em meio à alacridade dos encontros sociais.

Fiquei amigo dos garçons e gostava de passar ali um tempo, antes que o salão se enchesse de gente, pelo simples prazer de estar ali. E por me juntar a todas as almas que lá conviveram e fizeram da literatura não apenas o grande reino exploratório da alma humana como um lucrativo negócio.

Assim, distribuía minhas vitoriosas baforadas, satisfeito de deixar também nele lugar, como volutas que vão se tornando invisíveis, um pouco de mim.

terça-feira, 7 de março de 2017

Fotografias de um mundo sem futuro

“Você é o único aqui que não precisa de máquina para fazer fotografias”, diz a Mulher sem Nome, que, desde que nos separamos e tentou me proibir na Justiça de escrever seu nome, ficou sem nome - e me acostumei.

Estamos sentados no #Harry’s Bar, de Harry #Cipriani, celebrizador do carpaccio e do Bellini, onde já bebeu #Hemingway, em belas eras. É carnaval em Veneza e, desta vez, o bar está lotado de gente que entra da rua para o salão sóbrio e quente, acotovelando-se diante do balcão, entre os garçons de meticuloso paletó branco e gravata borboleta negra.

Entre os recém chegados, que amotinam o bar ao estilo naval, estão dois cavalheiros setecentistas de chapéu tricórnio, meias brancas até o joelho e paletó de asa. No meio deles, um sujeito com vestido balão (“lutador de sumô”, identifica a Mulher sem Nome), que ocupa, sozinho, o espaço de quatro pessoas e se movimenta boiando, enquanto rebate erraticamente entre os circunstantes.

Tomamos dois #Bellinis, acompanhados de azeitonas. É bom estar aqui, respirar novamente o ar de Hemingway, e estar com a mulher que entende exatamente o que estou falando. Viemos do palácio do Doge, decorados com cenas #de guerra e Netuno entregando a #Veneza a sua cornucópia, na representação de #Tiepolo. Andamos pela ponte Dei Sospiri, saindo da pompa dos salões venezianos, até a curta e claustrofóbica passagem sobre o canal que leva às frias e escuras masmorras do velho império.   

“É o que está acontecendo hoje”, diz ​a Mulher sem Nome, quando observa que o túnel entre os salões ricamente decorados e o claustro sombrio são aqueles vinte metros suspensos sobre o rio. 

Sim, no Brasil, hoje, os políticos que expoli​​aram o país, e empresários a eles associados, todos frequentadores dos melhores salões da república, navegantes de iates e passageiros de jatinhos particulares,​ estão indo para as imundas e superlotadas cadeias brasileiras. Entre eles, até mesmo #Eike Batista, que já foi o homem mais rico do Bras​i​l, destituído de sua fortuna, da liberdade – e de sua peruca italiana.

Tempo sem futuro, sem esperança, em que avanços recentes, não só no Brasil, como no mundo, se perderam. Nos Estados Unidos, Obama, com seu programa de saúde, seu olhar de ecumenismo político sobre as nações e o mundo, deu lugar a Trump: a volta à velha truculência do selvagem capitalismo americano.

Tempos do recrudescimento da ira, catapultada pelo poder digital, pela violência religiosa, ambos filhos da intolerância. Este é um mundo em que a tecnologia avança, mas ela apenas serve para melhor armar os homens e seus antigos barbarismos.

“Senhor, fotografar aqui dentro não pode”, adverte o maître do bar, firme e gentilmente.

Tarde demais. O retrato, como diz a Mulher Sem Nome, está feito. Veneza espera lá fora – a noite azul marinho, a cor de que mais gosto, nesta cidade que combina tanto com o caleidoscópio humano dos blocos nas ruas centenárias. O cheiro do mar, o estalo das gôndolas no cais, o trajeto pelas vielas estreitas, até a Chiesa San Vidal, onde, às 20h30, iremos a um concerto de violinos para ouvir As Quatro Estações de Vivaldi.

Talvez os tempos de Hemingway fossem mais sombrios ainda, tempos de guerra, embora mesmo a guerra naquela época fosse mais romântica. Estou aqui no Harry’s Bar, há vida e livros pela frente. Estou usando barba, por causa de Garibaldi, tema do romance que está saindo do forno, e muita gente diz que estou muito Hemingway. Sei apenas que, como eles, procuro viver até o limite, com ajuda do amor – amor que eu carregava pela mão na noite de festa e regozijo.

(Redação revisada para um texto escrito em Veneza, 26 de fevereiro de 2017, sábado de carnaval.)