terça-feira, 23 de maio de 2023

Desencontos - 1: "Radiografia de um instante"

Eram três horas da tarde e Tirso estranhava o silêncio, parecia que ninguém pegava o metrô em Washington, a plataforma estava deserta, tão deserta que ao caminhar seus passos ecoavam pela estação.

Encostou-se na parede, à espera do trem. Gostava, queria, precisava daquela solidão. Meia hora antes, estava com a mulher, Silvia, em um apartamento de classe média na capital americana, aquilo que ela achava perfeito. Sandra, melhor amiga de sua mulher, casada com George, militar americano, os recebera e fizera um belo almoço; os dois maridos, que se viam pela primeira vez, esforçavam-se para ser simpáticos um com o outro.

Elas se conheciam desde a adolescência, eles há pouco minutos; Sandra se esmerou na comida, Mark em abrir uma garrafa de vinho premiada; contou-lhes do barco que tinha ancorado no Potomac, na primavera ele o tirava para passear, gostavam de velejar no rio, especialmente aos domingos.

Esforçava-se em querer mostrar que os americanos não eram tão aborrecidos para brasileiros como se pensava: a vida ali era boa, eles eram felizes, a melhor amiga de Silvia estava feliz e satisfeita, mesmo longe da família, do país, do feijão com arroz.

As duas mulheres tagarelavam, tirando o atraso da conversa naquele reencontro, proporcionado por uma esticada de Nova York a Washington que Tirso concordara em fazer só para aquilo.

Faziam planos para mais tarde. Tirso e Silvia estavam hospedados em um hotel em Cristal City, com seus prédios envidraçados e aquelas galerias internas que permitiam caminhar longas distâncias fugindo do frio congelante do inverno na rua. George e Sandra poderiam mais tarde buscá-los de carro. Iriam a um lugar para dançar, havia um que ficava no edifício de um antigo banco, a pista era dentro de um cofre, com aquelas portas de chumbo, uma grande roda girando sobre pesados gonzos.

Estava tudo perfeito, a comida, o vinho, as promessas de diversão, mas Tirso olhava para George já sem escutar, distante e imerso, peixe num aquário. Disse que achava melhor deixarem as mulheres conversar, matar a saudade, colocar a conversa em dia; não queria atrapalhar, poderia aproveitar a hora. Tinha curiosidade de visitar a biblioteca do Congresso, algo que Silvia não gostaria de fazer; aproveitaria que ela estava em boa companhia para dar uma volta e conhecer o Capitólio.

George também achou boa ideia; sugeriu que visitassem outro dia, com as  mulheres, o Smithsonian Museum, o Lincoln Memorial e o que mais quisessem.

Silvia adorou tudo, na verdade não se importava, queria apenas estar com a amiga, acenou com a cabeça e assim ele saiu, com breves despedidas. George disse que na esquina havia uma estação do metrô, por ele chegaria ao Capitólio, era simples e rápido.

Quando a porta do lar americano bateu às suas costas, Tirso sentiu-se repentinamente livre,  ou aliviado: ao descer o elevador, passar o hall de entrada e ver-se na calçada ensolarada, era como se tomasse sol pela primeira vez na vida.

Não foi difícil achar a estação, comprou o bilhete, desceu a escadaria até a plataforma: vazia, aquele silêncio, tudo confortador, como se tivesse escapado de uma guerra para um esconderijo seguro.

Não sabia direito o que havia de errado com o que deixara para trás. Talvez a resposta estivesse à frente: a biblioteca, os livros, o mundo interior onde ele navegava, e que Sílvia via com certo desdém. "Você pensa demais", ela dizia.

Agora ela ficava para trás e ele ia em direção a uma biblioteca, uma das maiores bibliotecas do mundo, no Congresso americano, sede do Iluminismo ocidental, onde a república tinha sido proclamada antes mesmo da revolução francesa, berço das ideias e dos ideais contemporâneos de liberdade, igualdade e tolerância.

Havia um certo efeito analgésico naquele túnel deserto, uma estação em silêncio, toda para ele; nesse instante, ouviu o barulho do trem chegando, a luz se insinuando na penumbra, até que ele passou, aquele borrão horizontal, na plataforma contrária ao sentido em que ele ia; viu a composição brecar aos poucos, com um guincho estertorante, até a imobilidade total.

Assim como a plataforma, o trem estava vazio: era tarde, ou era um momento mágico, Tirso não sabia, mas olhava os vagões desertos como num sonho. Foi então que viu a mulher, sentada à janela, sozinha no vagão inteiro, no trem inteiro. Olhava para baixo, debruçada sobre um livro. Um livro.

Por um instante ele pensou que poderia estar ali a mulher da sua vida, e o que aconteceria se ela olhasse para ele, os dois sozinhos naquela estação. Olhava para a mulher distraída, com o livro na mão, só os dois naquela estação, e não precisava saber mais nada sobre ela.

Lembrou-se de Silvia; pedira para a mulher ler o livro que tentava escrever, mas ela, cansada, deixara o calhamaço torturado de folhas na cabeceira, dia após dia; qualquer hora veria aquilo, daria opinião. Tirso passou a ter aquela vontade, então, de ir a algum lugar. Não era Washington, não era Nova York, era um lugar de encontro com ele mesmo, onde havia estantes, livros, e uma mulher, com um livro na mão.

Na plataforma oposta, as portas da composição se abriram, para ninguém; houve um instante de expectativa, Tirso não sabia por que, já que ninguém ia entrar. A mulher com o livro continuava a leitura, imóvel; pensou se ela sabia que ele estava ali, pressentia que ele olhava para ela. Imaginava agora outra vida, que não era a dele, ou melhor, era a dele, mas uma vida que não tinha com ninguém. As portas do trem se fecharam; o cheiro de metal queimado passou pelas narinas de Tirso, quando a máquina acordou, as engrenagens lentamente se moveram, e a composição começou a andar.

Nesse momento, a mulher do livro levantou a cabeça. Era uma bela mulher. Viu Tirso encostado na parede, olhando o trem ir embora, distanciando-se em velocidade cada vez maior. Apenas um momento, e, enquanto se afastava, com o livro aberto nas mãos, enquanto o trem a levava para nunca mais, pela janela ela sorriu.

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