segunda-feira, 22 de maio de 2023

Amis e o Valhala dos escritores

Eu tinha 16 anos de idade e viajava de mochila nas costas ao lado de meu pai, Alípio, numa jornada até Machu Picchu, no Peru.  

Estávamos parados, conversando, na borda da cidade perdida, de onde se avistava majestosamente o Huayna Picchu, batido pelo vento  que dá uma misteriosa atmosfera às construções de pedra nos píncaros da selva. Então, um sujeito ao lado, com chapéu de Indiana Jones, nos abordou, em inglês.

- Que língua vocês estão falando? - perguntou.

Explicamos que era português.

- Que língua forte -, disse ele.

- O que você está fazendo aqui? - perguntei, observando que se encontrava sozinho.

- Estou trabalhando - disse ele, para minha surpresa.

- E o que você faz?

- Sou escritor.

Fiquei, claro, imediatamente entusiasmado.

- E que livros você escreveu? - perguntei.

- Ainda nenhum - disse ele. - Estou fazendo o primeiro.

Murchei de desapontamento. Achei estranho alguém se dizer "escritor", sem ter um livro publicado, embora ele parecesse bastante convencido.

- E o que você está escrevendo? Algum romance de aventura, ambientado na selva peruana?

- Não - disse ele - Estou escrevendo sobre Londres.

Eu e meu pai nos entreolhamos: devia ser maluco. Conversamos mais um pouco e nos despedimos, dizendo , meio incrédulos, que aguardaríamos notícias da publicação da obra.

Passaram-se alguns anos e eu já tinha quase esquecido daquilo. Um dia, lendo o jornal (ainda impresso), dou com o lançamento de Campos de Londres, de Martin Amis. Olhei a foto do autor. Espanto: eu estava certo de que era o escritor da selva peruana. 

Mostrei-o a meu pai, eufórico com o achado.

- Será? - disse ele, ainda duvidando.

Era ele, sem o chapéu, claro. E um romance sobre... Londres? Só podia ser.

Passaram-se mais trinta anos. Martim Amis morreu no último dia 19 de maio, vitimado por um câncer esofágico. Para mim, porém, mais do que os livros, ficou uma estranha influência daquele episódio.

Primeiro, ele me ensinou que o escritor não é o que publica livros, mas aquele que acredita que está escrevendo e faz disso sua vida, não importa o que os outros pensem - ainda que jamais venha a publicar um único livro. É um estilo e um propósito de vida, não um resultado.

Ser um escritor não se trata de ter um editor, de vender livros ou ser conhecido. É uma convicção. Escritores não desistem e continuam sendo escritores, não importa onde estejam, ou o que tenham publicado.

Essa ideia me ajudou a escrever o meu primeiro romance, publicado dez anos depois de Campos de Londres. Naquela época, me parecia algo impossível. Mas não desisti.

Amis fez uma carreira de sucesso, com outros livros importantes, muito embora o único que realmente me interessou tenha sido  aquele romance sobre uma das mais cosmopolitas cidades do planeta, para o qual ele buscava inspiração numa aventura muito longe dali.

Tenho por ele um certo sentido de agradecimento, por entender daquela história que escrever não depende de mais nada nem ninguém, a não ser de nós mesmos.

Ao rapaz de chapéu naquele momento improvável, devo muito: mudou minha vida. Para mim, ele está vivo, talvez escrevendo em algum lugar, no Valhala da literatura, ao vento das paragens aventurescas onde nós, escritores, devemos ter nosso lugar, não sei se no céu ou no inferno.

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