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quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Por que Hefner continua importante

A morte do editor Hugh Hefner, que fundou a revista Playboy em 1953, pode parecer mais um marco do fim de uma era da imprensa e de certos costumes, enterrados na era digital. Não é. A grande virtude de Hefner, e o filão que ele descobriu e explorou, ainda estão aí e fazem pensar. Hefner foi embora, mas o que ele vislumbrou continua vivo.

Num mundo em que as feministas tomaram a voz e qualquer coisa que defenda os homens - seres humanos que também possuem direitos - é tachada como machismo, Hefner continua a ser revolucionário. Foi ele quem descobriu que uma revista podia defender o público masculino, não no sentido político, ou como um movimento, mas da única forma possível - estando ao seu lado, compreendendo, estimulando e sobretudo aliviando suas agruras, com um pouco de ironia sobre ele mesmo.

Homens estatisticamente possuem uma vida mais curta que as mulheres, sobretudo por conta de doenças cardiovasculares. Hoje, como nunca, suportam uma grande pressão financeira e social. Hefner foi o primeiro a perceber que precisavam de um local de descanso, onde a auto-indulgência lhes fosse permitida. Não é pouca coisa. Isso criou um fenômeno mundial. Dessa forma, Hefner institucionalizou um ícone de liberdade, a ponto das célebres orelhinhas serem uma marca mais conhecida no mundo que a Coca-cola.

Por isso, Hefner definia Playboy não como uma revista de mulheres nuas, e sim de estilo de vida. Trazia para a vida dos homens o mundo do sonho, em que não apenas se conseguia ver as mulheres mais deslumbrantes, como sonhar com a vida que contrastava com seu cotidiano: o chefe em cima do seu pescoço, o cuidado dos os filhos, as expectativas e exigências da mulher, a falta de perspectivas no trabalho e na carreira.

Playboy era o sonho: belas mulheres, grandes carros, maravilhosas viagens. Tudo isso com um humor fino, quase britânico, a mostrar que tudo aquilo era possível e mesmo assim não era grande coisa.

Resumir Playboy a uma revista de "mulher pelada" é uma forma fácil de escamotear o principal: rotulando-a como puro machismo, evitou-se falar sobre os problemas dos homens e suas necessidades. Hefner não teve medo de fazê-lo nem de ostentar isso publicamente. Entendia a necessidade de uma válvula de escape para uma vida aborrecida e de quem não pode nem mesmo reclamar. Serviu um instrumento de auto-indulgência e de liberdade. Um espaço irmanado por todos os homens do qual as mulheres não precisavam, nem deviam participar.

A era digital envelheceu o negócio revista, assim como o tempo envelheceu Hefner, que procurou fazer de si mesmo um símbolo desse espírito de auto-indulgência, do estilo de vida que procurava vender - não o sonho americano, e sim o sonho masculino, nutrido pelo homem médio, o trabalhador, o pai de família, sem rotas de fuga. Tornou-se um senhor meio excêntrico, que morava na mansão de Playboy, cercado de coelhinhas, com uma fila de ex-mulheress, exibindo-se sempre num robe de seda ou com um quepe de capitão. Ao se tornar um tanto caricato, favoreceu o enxovalhamento do que seu projeto tinha de melhor.

Não há mais Hefner, e tampouco futuro para as revistas impressas, especialmente masculinas, com a facilidade de reprodução digital. Os homens, porém, permanecem com os mesmos problemas e continuam sendo um grande mercado para veículos de estilo de vida interessados em colocar-se ao seu lado. Esse caminho, o achado empresarial onde Hefner se fez pioneiro, ainda é o mesmo. E nenhum discurso politicamente correto foi ou será capaz de fazê-lo desaparecer.

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Tales Alvarenga e o círculo secreto

Ontem, conversando com uma amiga, relembramos Tales Alvarenga, editor de Veja, falecido em 2006. Reproduzo o que escrevi na época, não apenas para relembrá-lo, como para preservar este arquivo, que já andava meio no limbo dos meus alfarrábios virtuais. E também para recordar alguns princípios do jornalismo, que é sempre bom ter presentes.


Nova York, 08 de Fevereiro de 2006


Às vezes eu tenho a sensação de pertencer a um círculo secreto de samurais, que um dia serviram a um certo senhor feudal, mas depois se espalharam pelo mundo - sendo que alguns deles, como eu, se tornaram um tanto renegados. Apesar do tempo e da distância, ainda dividimos os mesmos códigos, usamos as mesmas armas, falamos a mesma linguagem. Uns empregam seus poderes para o bem, como acredito que eu ainda o faça, outros foram atraídos para o mal. Não importa de que lado se esteja, quando um desses ronins tomba a gente fica sabendo e, mesmo longe, como eu aqui em Nova York, ouve aquela voz tonitruante, que vem dos céus e em inglês: "There will be only one..."

Esse foi o brado que me estremeceu ao saber que morreu na sexta-feira passada Tales Alvarenga, diretor de Veja e Exame, um jornalista com quem convivi muitos anos. Tales era um dos guardadores desse código de fraternidade, que de alguma forma implicava um certo espírito de renúncia, para a dedicação integral a um bem indefinível. Ou apenas definível para quem experimentou virar madrugadas trabalhando na revista Veja, sobretudo em épocas passadas, quando esse esforço chegava ao limite físico, o que nos dava um sentido ainda maior de missão.

Esse código de gente abnegada, que trabalhava à custa da saúde e da vida familiar, proibida de buscar os holofotes, incluía jamais aceitar favores, compactuar com governos, dar as costas para a verdade, em nome da defesa do povo brasileiro. E, por mais pretensioso que pareça, acreditávamos ter esse poder (mesmo separados, ainda acreditamos).

Tales pertenceu a esse grupo de justos, que eu vi no seu esplendor, reunido na década de 1980 dentro de Veja, na redação talvez mais brilhante que a revista já teve em todos os tempos, quando o Brasil ainda lutava pela abertura política e econômica, essencial para o progresso. Era uma outra Veja, alinhada com os interesses do leitor, uma publicação em franco crescimento. O diretor de redação era José Roberto Guzzo; o diretor adjunto, Elio Gaspari; a redatora-chefe, Dorrit Arazim; os editores executivos eram Henrique Caban e Tales Alvarenga, então responsável pela Vejinha, que se tornava o segundo maior sucesso comercial da Abril, logo depois da revista-mãe.

Dos editores, todos assumiriam mais tarde postos de comando dentro da revista, na Editora Abril ou fora dela: Antonio Machado de Barros (economia), Paulo Moreira Leite (Brasil), Fernando Pacheco Jordão (internacional), Eurípedes Alcântara (geral), Mario Sergio Conti (variedades), Paulo Nogueira (Vejinha). Dias Lopes faria história na imprensa ao abrir a revista Gula. E havia grandes repórteres em todo o país, que não cabem neste parágrafo.

Eu começava a carreira e aprendi muito com eles todos, satisfeito de ter a oportunidade, após muito "rolar na lama", como se dizia no jargão de Veja, de entrar para a irmandade. E foi pelas mãos desse grupo que me tornei editor de Brasil, a seção mais importante da revista e uma das mais importantes do jornalismo brasileiro, com apenas 24 anos de idade.

De todo aquele grupo, Tales não era o mais brilhante, mas com certeza tinha qualidades incomparáveis - e a tenacidade lhe daria seu momento. Muitos acusaram-no de ter se tornado arrogante depois de assumir o comando de Veja, em 1997, mas só pode dizer isso quem não o conheceu. Ele não era arrogante, exatamente. Apesar de ter estudado filosofia, Tales se caracterizava por um certo desprezo pelos intelectuais, em quem não via nada construtivo, e pelos que se achavam poderosos em geral. Era um partidário do cidadão comum. Essa era sua maior qualidade: um tipo ostensivo, assumido e um tanto desafiador de humildade.

Graças a essa mentalidade, Tales em geral sabia melhor o que interessava o maior número possível de pessoas. O leitor de Veja podia não conhecê-lo, mas Tales conhecia bem o leitor: era gente como ele. Dava-lhe o que queria ler. Estava em posição de defender seus interesses.

Quando a economia e a política se tornaram mais estáveis, deixando de produzir as notícias sensacionais que levantam as vendas nas bancas, e a revista teve que buscar outros caminhos, esse foi o grande trunfo de Tales para uma nova fase de sucesso em Veja, que perdurou muitos anos. Na época, eu recomeçava a trabalhar na revista como repórter especial, respondendo diretamente ao Tales. Discutimos muitas vezes o que fazer. Eu sustentava que naquele tempo o interesse individual se tornara mais importante que as grandes causas coletivas, visto o sucesso dos livros de auto-ajuda. Era nisso que a revista podia investir.

Tales sabia escutar. E, como autor do plano, mandou-me executá-lo. "Está bem, então você vai fazer", ele disse. Criou uma seção sem nome, uma espécie de segunda Geral, chefiada por mim. Aumentou o número de sucursais para doze, de modo a mostrar mais o Brasil para o brasileiro, e colocou-as todas sob o meu comando. Toque típico de Tales, mandou diminuir os textos, cujo tamanho na opinião dele causava cansaço no leitor comum (ironizava sua própria instrução dizendo que a reportagem ideal era o "pirulito", a notícia de uma coluna).

Assim surgiu uma Veja que colocava em sua capa reportagens sobre problemas conjugais, o poder do cérebro e viagens à Disney, mais enxuta, dinâmica e com mais assuntos. Ao mesmo tempo, não deixava de ser a Veja de sempre, que ainda se destacava pela reportagem de denúncia e investigação.

No início de sua gestão como diretor de redação, foi Tales quem ordenou uma capa sobre quem era o deputado Sérgio Naya, símbolo de um Brasil que literalmente matava a classe média sob os escombros dos prédios que construía: a reportagem foi redigida e fechada por mim, com relatórios da reportagem em Brasília e do Rio de Janeiro. Pouco depois, Veja deu uma entrevista exclusiva com o "maníaco do parque", trabalho brilhante e ousado da equipe da editora executiva Laura Capriglione, que infiltrou uma repórter na cadeia e ouviu a confissão do criminoso. Foi também a equipe de Laura que esperou meses a fio para dar no momento exato, como um grande furo de reportagem, uma descoberta da medicina que revolucionaria a vida de muita gente: o Viagra. Tudo isso consolidou um novo patamar de vendas para Veja e a posição de Tales à frente da revista.

Foi a fase culminante de uma carreira longe das luzes, mas hiperativa. Tales participou ativamente da história do Brasil, desde os tempos da ditadura militar, quando se caracterizou como um especialista em política. Porém, mais que um repórter, era um "fechador": aquele sujeito que põe a notícia trazida pelos repórteres no papel e faz a revista sair.

Em geral, o "fechador" tem menos gosto pelo trabalho da rua, mas é mais pensador. Essa era a arte de Tales, no silêncio de sua sala de vidro, escrevendo como um conspirador. Podia parecer arrogante, com seu jeito de levantar o queixo: mesmo sendo baixinho, produzia a sensação de que olhava para você de cima para baixo. Nesse gesto talvez inconsciente, havia também uma atitude perante o mundo.

Descrente da política e nos homens, desconfiava de tudo, especialmente da índole dos governantes, que se achavam em cima, mas para os quais ele também olhava de cima para baixo. Levava seu ceticismo cortante do jornalismo para as coisas comezinhas da vida e as grandes também. A frase que melhor o definia, como agnóstico e um exasperado com os males que se multiplicavam, era essa: "se Deus existe, ele não interfere".

Como Deus se omitia, pensava Tales, cabia aos jornalistas fazer o melhor possível: lutar pela democracia, vencer a pobreza, destruir os larápios e a corrupção. Era uma missão superior, instituição em Veja. Algo que no círculo dos cavaleiros suplantava até mesmo a importância do patrão, como homem de negócios às vezes mais sujeito a contemporizações. Como todos em Veja, Tales fazia essa distinção: o papel do patrão era um, o do jornalista era outro. E ambos sabiam disso.

Em minhas duas passagens por Veja, nas quais acumulei alguns anos de convivência direta com Tales, como subordinado e depois amigo, ele sempre teve comigo um certo ar paternal, talvez por termos o mesmo nome, com a diferença de um H (provocador, Guzzo nos dizia que eu só tinha essa letra a mais que o Tales - e era uma letra muda). Mesmo assim, não me poupava do pior trabalho nem de certas crueldades que reservava aos seus colaboradores quando eles achavam que sua vida andava fácil - ou pretendia destruir a oposição.

Para mim, mesmo sem motivo, dizia: "mude de nome ou de comportamento". Na reunião de pauta de Veja, na minha hora de expor as ideias para a capa da semana, ironizava os conselhos que ele próprio me pedira ao ser promovido à direção, tornando público algo que dividíramos em território particular: "Vamos agora ouvir o Guaracy, que veio me dizer o que fazer no meu emprego". Passava descomposturas sempre depois de convidar uma testemunha, algo que não o ajudou a se tornar mais popular.

Porém, nada disso o desmerece. A vida em Veja era de muita pressão, o que ajuda a explicar certos exageros de comportamento. Tales não se aborreceria por me ver contando essas coisas. Era a favor sempre de mostrar o "outro lado", parte do código samurai, segundo o qual mesmo dos bons não se pode deixar de mostrar o lado ruim, um princípio da credibilidade defendido a qualquer custo. 

Tales era a favor de não esconder nada, nada mesmo, ainda que às vezes isso parecesse cruel. Certa vez, ele me mandou incluir no texto de uma reportagem o fato de um entrevistado ter me recebido em sua casa pelado, para mostrar o corpo coberto de feridas, resultado de obesidade mórbida, de modo a obter a complacência da revista. Foi o que fiz. Além, é claro, de desfiar os negócios escusos que realizava.

Depois que saí de Veja, de modo a ganhar o tempo necessário para escrever meus romances - um projeto pessoal -, encontrei Tales em várias ocasiões. A última delas, em Campos do Jordão, foi num seminário de intelectuais que se propunham dar soluções para o Brasil. Ele circulava por ali anonimamente, assistindo a tudo, atento. Jantamos juntos: comemos, bebemos, rimos, contamos histórias e ele me explicou que estava ali em busca de elementos na sua incansável campanha para desancar os discursos vazios. 

Tinha espaço privilegiado para fazê-lo, na coluna que mantinha nas duas revistas cuja direção acumulava, as mais influentes do país: a própria Veja e Exame. Por trás do eterno ceticismo, acho que alimentava também ainda a esperança de um mundo um pouco melhor, além dos antigos ideais.

Problemas ainda não muito esclarecidos, decorrentes de dificuldades respiratórias, tiraram a vida de Tales Alvarenga, 61 anos, na sexta-feira, dia 3 de fevereiro de 2006. Talvez ele dissesse, sobre a própria morte, que Deus não interferiu - mais uma vez. Deveria tê-lo feito, para benefício dos amigos a quem subtraiu o seu convívio, e do Brasil, que perdeu um sincero, competente e honesto defensor.

domingo, 23 de agosto de 2015

A era da ignorância

Vejo na internet um vídeo com entrevista da minha agente literária, Luciana Villas Boas, na qual ela afirma que a literatura brasileira perdeu espaço de influência na cultura brasileira. É verdade, mas o que vemos hoje com as redes sociais é um fenômeno ainda mais amplo, em que não apenas a literatura como a leitura - matéria prima para as ideias - perdem seu espaço, numa era em que a informação nunca foi tão farta.

A internet trouxe para o mundo contemporâneo um grande paradoxo. A era da informação, contraditoriamente, é também a era da ignorância. Graças à internet, ficamos sabendo como a civilização ainda é pobre - ontem vi um vídeo, por exemplo, de uma gincana na França em que um concorrente, entre quatro alternativas, cravou que a Terra gira em torno da Lua. Quem tem visto filmes franceses sobre educação sabe que até no país mais culto do mundo ela anda em baixa.

As pessoas se acomodaram - é mais fácil ver um vídeo ou distrair-se com bobagens na internet do que aprender algo construtivo. A mesma facilidade com que se faz compras de supermercado por meia dúzia de cliques faz também com que o ser humano deixe de pensar, tanto quanto de sair de casa. Ambas as coisas são importantes para aprender.

Já ouvi muitos relatos sobre jornalistas que vivem atrás do computador. Não vão para a rua, não fazem reportagens, não conhecem pessoas.  Não têm, portanto, conexões nem experiência de vida. E esse é um capital essencial para quem quer escrever, seja informativa ou literariamente.

Há trinta anos eu escrevo todos os dias e me surpreendo com tantos novos "escritores" surgindo na internet. Fazem vídeos e dão entrevistas como se soubessem tudo sobre escrever, sobre o mercado, sobre a vida. Mesmo assim, quem começou a carreira na imprensa diária, no tempo da máquina de escrever, sabe que escrever é experiência e treino - exceto, talvez, na poesia. E isso falta, e muito, na literatura que surge no meio virtual.

Escritores da era digital tendem a tomar conta do mercado porque são jovens, geralmente não precisam sustentar família e têm mais tempo para fazer seu marketing virtual. Vão ocupando espaço e dando a impressão de que isso é a literatura contemporânea. O mesmo acontece em outras áreas da comunicação. A internet oferece espaço de manifestação para uma série de minorias que fazem muito barulho, porque ocupam espaço nas redes sociais. Com isso, dão a falsa impressão de que são maioria. Ou de que têm razão. Multiplicam-se os donos da verdade de tal maneira que a internet se torna enfadonha.

Lógico que se pode encontrar inteligência na internet, assim como espaços com informação relevante e confiável. Porém, a internet favorece o nivelamento por baixo em larga escala . A mediocridade tende a ganhar ainda mais espaço porque as pessoas até agora não têm dado devida importância ao fato de que informação de qualidade - incluindo  a literatura, que é informação para o desenvolvimento intelectual e emocional - precisa ser um serviço remunerado, como sempre foi. Os internautas em sua maioria ainda preferem o espaço onde está na verdade o lixo da informação, apenas porque ele é gratuito.

Os jornalistas tradicionais não aprenderam direito a fazer uso das novas mídias; ao contrário, são boicotados dentro delas, em movimentos promovidos por neo blogueiros para desacreditar o profissional da informação e ocupar o seu espaço, ou por gente financiada de forma escusa por interesses de outra maneira indefensáveis. Os profissionais precisam aprender a navegar como os neófitos e voltar a transformar a missão de escrever, seja de forma informativa como literária, de uma maneira que isso continue a ser de fato uma profissão, entendida como uma especialidade da qual alguém pode tirar seu ganha-pão.

A redução do hábito da leitura de jornais e livros impressos parece indicar que o terreno livre da internet representará uma nova seleção natural. Existirão os livros e veículos de informação digitais, mas as regras do que é bom não mudaram. Conteúdo de qualidade estimula a leitura e vice-versa. A reentrada dos profissionais no mercado pode ajudar a devolver qualidade à informação e a restabelecer a ordem das coisas: os neo blogueiros é que terão de se esforçar para aprender como esse negócio funciona, e os jabazeiros ficarão expostos, por contraste.

Está mais que na hora de isso começar. 




segunda-feira, 24 de novembro de 2014

A imprensa está de pé



Este ano, fui convidado pela segunda vez a participar do júri do Prêmio Esso de Jornalismo, agora em sua 59a. edição, uma ocasião especial para analisar e discutir o nível do jornalismo que se tem praticado no Brasil.

O Esso, patrocinado pela Exxon Mobil, que já não usa essa marca no mundo inteiro, exceto aqui no Brasil e exclusivamente no tradicional prêmio, ainda é o maior e mais prestigioso galardão do jornalismo do país, que eu já tive a oportunidade de receber, além de colaborar com outros ganhadores nas equipes que liderei. Uma fina elite da imprensa que teve a sorte de ter seu trabalho reconhecido dessa forma, como estímulo para continuar o seu trabalho.

Para mim, esta edição teve um prazer especial: conheci pessoalmente Paulo Sotero, correspondente do Estadão, uma respeitável e carimbada figura da imprensa brasileira. Quando comecei minha carreira no jornalismo, ele já era uma estrela. No jornal onde trabalhei pela primeira vez, a Gazeta Mercantil dos idos de 1.986, que tratava seus principais jornalistas como verdadeiros astros, Sotero era um semideus. Estagiário da seção de nacional, eu tinha como uma das minhas tarefas "pentear", entre outros, os textos de Sotero. Explica-se. Naquele tempo, os textos de sucursais e do correspondente vinham por telex, uma máquina que reproduzia o texto sem acentuação nenhuma - til, ponto final, cedilha. Aquilo tinha de ser colocado à mão. Eu não mexia nos textos de Sotero - nem pensar. Porém, tudo o que ele escrevia passava pela minha mão.

Mais tarde, tornei-me repórter de Nacional e comecei a escrever meus próprios textos. De lá para cá, foram quase 30 anos de jornalismo, em veículos como Veja, Exame, Estadão e, mais recentemente, o livro. Considerando o ponto em que comecei, é uma honra dividir a mesa dos jurados do Esso com Sotero, uma pessoa afável, um bom contador de histórias e um repórter incansável, que nas conversas ao redor do cafezinho fazia questão de dizer o assunto de sua coluna no jornal do dia seguinte. Para um jornalista, o assunto em que se empenha é sempre a coisa mais importante do mundo. Sotero viu a imprensa mudar, mas se conservou essencialmente jornalista, como deveria permanecer o jornalista em geral, independentemente da mídia onde atua, se digital ou em papel, ou do veículo.

Eu mudei nesses 30 anos, como a imprensa mudou, mas uma análise do material coletado para o prêmio mostra que, apesar da proliferação de conteúdo exclusivamente digital, o melhor jornalismo ainda é feito pelos veículos mais tradicionais da imprensa, que vêm da era do papel. São eles que mais investem em reportagem, em séries mais longas ou que demandam um esforço maior de investigação. Veículos como Zero Hora, O Globo e Estadão produziram excelente material, bem como outros veículos que, mesmo sem terem sido premiados, foram capazes de mostrar este ano que a imprensa, embora em busca de novos mecanismos financeiros, ainda é a maior fonte de informação confiável, profunda e independente da era contemporânea.

A internet deu grande liberdade de acesso à informação, mas produziu também muita margem para a deturpação, a difamação e o opinionismo. Tornou-se um vasto campo para difusão de versões e o conflito de interesses. Creio que isso só serve para acentuar a importância de veículos que buscam o bom jornalismo, na forma da reportagem - a informação exclusiva, de primeira mão, apurada e checada, com a máxima isenção possível, a serviço do leitor. Quanto mais se espalha a nuvem de dissimulações produzida pela rede virtual, mais e mais o público leitor percebe que a imprensa não deixou de ter o seu valor e que, não importa se em papel ou no meio virtual, é um bem imprenscidível, pelo qual se pode e se deve pagar.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Isto não é o fim da imprensa



A imprensa, um dos pilares essenciais da comunicação e da democracia, é uma indústria como todas as outras – com a única diferença de que seu produto é a notícia. Muito se tem especulado sobre o futuro da imprensa na internet, que tirou das grandes empresas o monopólio dos meios de distribuição. Porém, uma indústria não deixa de existir quando mudam os meios de consumo. Deixa de existir, isso sim, quando deixa de fazer o seu produto.

Um exemplo de como isso está acontecendo. Há duas semanas, um amigo meu veio com a informação de que a prefeitura de São Sebastião tinha aprovado um plano diretor pelo qual seria derrubado um bom pedaço de Mata Atlântica em área de proteção ambiental na praia de Maresias, em São Paulo. Procurei um grande jornal de São Paulo que pudesse se interessar pela notícia. Um editor com quem entrei em contato me forneceu o e-mail de um segundo editor do mesmo jornal. Este me respondeu, dizendo que esse assunto era com uma terceira pessoa. Escrevi para o terceiro profissional. Esse sequer me respondeu.

Esse episódio me lembrou outro, de quando eu era editor de assuntos nacionais na revista Veja e recebemos um telefonema anônimo, dando conta de que um soldado da base militar de Anápolis estava sendo torturado. Por dever de ofício, mesmo sem a identificação do denunciante, fomos apurar. Uma hora depois do telefonema, eu enviava para lá Celson Masson, então repórter da sucursal de Brasília.

Celso voltou de Anápolis sem encontrar nada. Na semana seguinte, ainda com aquela história na cabeça, pedi autorização da direção da revista para fazer nova despesa: mandei o repórter para Anápolis novamente. Dessa vez, num golpe de sorte, perguntando na rua, Celso Masson achou o soldado. Esperou sair do hospital, onde havia sido isolado pela aeronáutica até que se aliviassem as marcas da tortura. Com a publicação da história, os chefes da base aérea passaram por um tribunal militar e foram afastados e punidos. Idem os policiais da delegacia civil que tinha sido utilizada para a tortura. E, com aquela reportagem que mostrava a sobrevivência da tortura mesmo depois do fim da ditadura, Celson Masson ganhou o prêmio Esso de jornalismo daquele ano.

Tudo isso por que atendemos e demos a devida atenção a um simples telefonema.

Faço essa comparação para dizer que o jornalismo tem acabado não por culpa da internet, mas das empresas e seus jornalistas, muitos dos quais esqueceram qual é o seu trabalho. Ouço muito de colegas veteranos que hoje os repórteres não saem do computador. Não vão aos lugares onde as coisas acontecem nem conhecem seus entrevistados pessoalmente. Basicamente, se faz muito pouca reportagem. Em consequência, os jornalistas pouco têm a apresentar além do que qualquer blogueiro diletante.

A indústria da imprensa no Brasil também tem deixado a desejar na solução de problemas em outras áreas do negócio. Reclama-se que a internet não dá dinheiro, especialmente porque as pessoas não estariam dispostas a pagar por conteúdo exclusivo na internet. Vale lembrar outra história do passado. Há cinquenta anos, quando Roberto Civita entendeu que precisava de anunciantes para sustentar suas revistas, e para lhes garantir circulação devia ter um sistema de assinaturas, teve de montar uma rede de distribuição de revistas impressas por todo o país.

Mais: precisou convencer as pessoas a pagar adiantado por um produto que ainda não tinham visto, e só receberiam ao longo do ano. Diante do colossal esforço empreendido pela Editora Abril para criar o sistema de assinatura da revista impressa, que fez da empresa líder absoluta do mercado, não me parece tão difícil convencer hoje leitores a fazer uma assinatura de jornal pela internet, onde se tem o retorno imediato do serviço, acesso ao banco de dados completo e não é preciso esperar pelo caminhão de revistas ou o jornaleiro.

Outro mito que se desenhou sobre o destino da imprensa é que a multiplicação de fontes de informação aumentou a concorrência – onde antes se recorria apenas a dois ou três veículos, hoje se pode utilizar uma multiplicidade de fontes que, entre outras coisas, replicam o conteúdo dos jornais sem pagar por ele. Isso se enfrenta, por um lado, com o combate à pirataria, impondo sanções. Por outro, fazendo um jornalismo sério, que leva um leitor a ser fiel à sua fonte de informações, aquela em que acredita e com a qual pode se identificar. Sim, a internet tem muita coisa - mas tem pouco jornalismo de verdade.

Não se trata de saudosismo, ou de comparar momentos diferentes. Nem é caso de reinventar nada. Os tempos mudam, sim, e a mudança tecnológica destes nossos tempos representa uma enorme reviravolta na comunicação. Porém, os princípios que regem o interesse das pessoas, a necessidade de informação confiável e as bases profissionais do jornalismo não mudaram. É preciso apenas recolocar a imprensa num ambiente que, em última análise, apenas eliminou o papel e facilitou o acesso à informação, nacionalizando e mesmo internacionalizando todos os veículos – o que, em vez de diminuir, só aumentou seu potencial.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

O jornalismo à beira de um ataque de nervos



A demissão do jornalista Chico Sá da Folha de S. Paulo, que o teria proibido de escrever uma coluna apoiando a candidatura da presidente Dilma Rousseff, é um bom exemplo de um certo desvairio em que se encontra o mundo da comunicação na era digital. E não é o único.

Sá, que foi meu contemporâneo na revista Veja, num tempo em que ela era o mais prestigiado veículo nacional de imprensa, junto com o jornalismo da TV Globo, é um amigo, um homem correto e, acima de tudo, um sujeito divertido e agradável. Porém, parece que esqueceu, talvez atordoado pelos novos tempos, de velhas e conhecidas regras, consagradas entre os profissionais de imprensa: a busca da notícia, a isenção e o apartidarismo.

O mesmo tendencismo saiu como uma nota estridente na carreira da jornalista Laura Capriglione, também ex-colega minha em Veja, ex-repórter da Folha de S. Paulo, que em uma coluna anunciou o funeral de Marina Silva, por sua decisão de apoiar Aécio Neves no segundo turno. Como se Marina não tivesse o direito de escolher, bem como seus eleitores. Repórter sempre correta, brilhante apuradora, Laura até pode desvencilhar-se das regras do jornalismo, já que não está abrigada por um veículo de imprensa tradicional, e do princípio elementar de respeito à liberdade alheia. Porém, como profissional, perde o capital mais precioso do jornalista: a credibilidade.

Existem princípios que, mesmo com a mudança do papel impresso para o virtual, continuam válidos como esteio da profissão. Um profissional de imprensa não pode professar uma preferência política, assim como um cronista esportivo não deveria colocar à vista sua preferência por algum clube. Um jornalista se manifesta politicamente por meio do voto, que é secreto, como um cidadão qualquer.

A era da internet tem sufocado o bom jornalismo, e, pior, os bons jornalistas, que vêm confundindo seu dever de bem informar com o mar de opiniões erráticas e tendenciosas sobre tudo, que se dá com a possibilidade da “autopublicação” no mundo virtual. Hoje há na web tantos donos da verdade que se torna mais claro do que nunca o fato de que não há verdade, há somente versões sobre tudo. Especialmente quando até os profissionais de comunicação deixam de respeitar princípios elementares e a ética da profissão, talvez contaminados ou em competição com o comportamento geral.

Os veículos de imprensa se encontram em profunda crise, derivada da falência do antigo sistema de propagação. Antes detentores dos meios de produção, agora os jornais disputam espaço com qualquer um. Hoje, é possível acessar tanto um jornal que antes tinha grande circulação quanto o blog de um desconhecido, já que são ambos apenas uma página na internet, capturáveis na pesquisa randômica dos mecanismos de busca. Porém, não são ou não podem ser coisas iguais. O jornalismo se enfraquece ainda mais ao perder aquele que na realidade é seu bem mais precioso: a credibilidade, construída com a excelência e a postura de seus profissionais.

As redações de jornais e revistas diminuíram e hoje resta ali praticamente apenas o volume morto da imprensa. Boa parte dos bons profissionais saiu, sobretudo pelo fato de que os melhores em geral ganhavam também os maiores salários. A crise da imprensa ainda não terminou. Ela ainda não é capaz de se sustentar apenas com assinaturas pelo meio digital. E, enquanto não se sustentar por meio exclusivamente de seus leitores, a imprensa não é livre. E, se não é livre, igualmente tem dificuldade de se manter isenta. Quem a fortalece é o leitor. E o leitor tem preferido atirar na imprensa, em vez de contribuir.

Nos últimos tempos, multiplicaram-se em corrente aqueles que resolveram transformar os veículos de imprensa em saco de pancada. São os mesmos que agora glorificam o pedido de demissão de Xico, como um herói picaresco, porém sem entender bem o que está acontecendo. Veículos tradicionais, como a própria Veja, são abalroados cotidianamente por campanhas raivosas movidas com ajuda das redes virtuais.

Por mais erros que um veículo de imprensa possa cometer, incluindo dar espaço também para blogueiros tendenciosos, as pessoas parecem ter se esquecido de que foi em grande parte a essa instituição agora desprezada que se pode hoje desfrutar de tamanha liberdade. E que, se os meios de produção foram renovados, os princípios do jornalismo, cujo objetivo é oferecer informação isenta e de qualidade, no limite das possibilidades, ainda não são praticados em outro lugar.

A internet parece ser não o lugar da informação bem apurada, equilibrada e isenta, que ouve sempre o outro lado, e sim um espaço em que quer ganhar aquele que simplesmente grita mais. Para obter esse efeito tornou-se normal ofender e propagar mentiras, falsificações e ameaças. A ideia de que no futuro o ambiente da informação será apenas um cruzamento de opiniões, versões e interesses em disputa, um vale tudo da comunicação, sugere o fim do jornalismo. Mas não será, porque a resultante desse embate de opiniões é zero. Dele, nada sai de construtivo.

A eleição presidencial é um bom exemplo dessa algaravia em que todos são donos da verdade e se julgam no direito de constranger quem tem opiniões politicamente diversas. Ninguém muda realmente de opinião, mas sob a bandeira da liberdade proporcionada pelo meio digital instalou-se um patrulhamento jamais visto, superior ao da própria ditadura militar. Os patrulheiros querem ser os donos das receitas que salvarão o mundo, mas são, eles próprios, o mal maior.

A condenação pública da moça que xingou o goleiro na TV, e teve sua casa queimada, num processo de radicalização jamais visto, que beira a histeria coletiva, lembra que os jornalistas não podem se juntar à massa. Devem continuar cumprindo seu papel de apurar a notícia e informar de forma isenta. Se não existe a verdade, essa é a melhor forma de pelo menos nos aproximarmos dela. Os patrões da imprensa continuam no seu papel, e os conflitos entre jornalistas e os pontos de vista das empresas em que trabalham não são novidade. No final, acabaram sendo sempre salutares para a criação de uma imprensa melhor. O que não se pode é jogar fora o que une ambos: a defesa, acima de tudo, do interesse do leitor, o interesse público, que para o jornalista deve estar acima dos interesses, opiniões e mesmo convicções individuais.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Por que Bezos comprou o Post?



Jeff Bezos, dono da Amazon, comprou o Washington Post, um dos mais tradicionais jornais americanos. Pagou 250 milhões de dólares - pouco, se pensarmos no que valiam as empresas de mídia até pouco tempo atrás. Muito, talvez, para um modelo que vai tendo cada vez mais dificuldades com o avanço do meio digital sobre o impresso e suas consequências. Porém, não é o valor que chama a atenção nesse negócio. Por que Bezos, o visionário que entendeu antes de todo mundo o negócio de cauda longa na internet, e que demoliu o mercado convencional do livro e das livrarias no mercado americano com seu site de compras pela internet e o Kindle, compraria um velho jornal - e como pessoa física? Eis a questão.

Ao anunciar o negócio, os donos do Post, um jornalão dirigido há 80 anos pela mesma família, e que teve seus dias de glória décadas atrás, quando suas reportagens derrubaram o presidente Nixon, disseram que com a redução de custos sabiam que podiam manter o jornal por longo tempo. Porém, não viam como fazê-lo crescer novamente. E que, com Bezos, um ícone da imprensa americana teria maiores possibilidades. Ou seja, teria futuro. Um extraordinário realismo, ou desapego, demonstração de humildade? Talvez tenha sido, mais que tudo, a sensação de impotência de quem não é capaz de enxergar mais à frente.

Sabemos que a imprensa não pode nem vai desaparecer. A questão é como ela se amoldará a novos tempos e uma nova maneira de pensar. Uma era em que os leitores respondem ao veículo em tempo real, em que se pode saber o que eles querem realmente saber, além do que o editor quer dizer, e onde se pode ter acesso imediato à informação. Uma era em que o alcance de uma publicação não depende de haver uma banca de jornal nas redondezas, ou de um sistema de assinatura em que folhas de papel chegam pelo correio. Tudo isso está virando passado rapidamente.

Bezos deve ver um futuro para a imprensa, algo que não acontece com os editores tradicionais, muito acostumados aos velhos paradigmas. O próprio nome (imprensa) já não faz muito sentido para designar o negócio da informação. Mas ele não mudou muito em sua essência e não deverá mudar.

Se os antigos editores têm algo a aprender com os tycoons da era digital, esses também podem aproveitar o que o velho mundo tem a ensinar. Que a imprensa existe. Que ela depende de credibilidade, algo que o Post tem de sobra. Que a credibilidade depende da separação entre igreja e Estado - conteúdo editorial e publicidade. Que a informação gabaritada é essencial, formadora de opinião pública e um pilar da democracia e da própria sociedade onde vivemos. O que os velhos editores não sabem, apenas, é como financiar o mesmo serviço num ambiente em que a publicidade convencional se encontra em queda, o meio papel vai ficando caro, e as receitas são insuficientes para manter os mesmos custos de produção que davam no veículo impresso.

É muito provável que Bezos tenha uma ideia do que fazer a respeito, caso contrário não compraria o Post - seria como comprar uma fábrica de discos de vinil. Todos os editores buscam as respostas que ele provavelmente acha que tem na cabeça e devem estar ansiosos para ver o que um pioneiro do novo mundo fará com um negócio tido como decadente.

A primeira coisa que Bezos fez foi convidar os donos e principais editores do Post para continuar em suas cadeiras. Ele sabe que a imprensa depende ainda da mesma coisa: editores e repórteres com credibilidade. Foi isso o que ele comprou. E os próprios editores esperam que ele faça o negócio novamente crescer no ambiente onde ele enxerga coisas que eles não estão enxergando.

Ninguém tem a resposta muito certa sobre qual modelo fará a imprensa se reafirmar. Por mais que tenha uma visão a respeito, Bezos deve saber que não é mais do que uma visão. Só temos certeza sobre o que vai acontecer depois que tudo acontece e temos na mão o resultado. O mundo digital é muito mutante. Porém, alguns caminhos estão delineados.

É preciso manter a separação entre igreja e estado, mesmo num meio em que o dinheiro parece vir da possibilidade de monetizar tudo aquilo que se clica dentro de um computador. A saída certaemnte está na cobrança pelo serviço, um modelo de assinaturas que não é diferente de quando foram criadas as assinaturas para jornais e revistas, o que aconteceu no Barsil cerca de 40 anos atrás.

Nessa época, os editores se deparavam com as mesmas questões de hoje, no mercado impresso. Como ter uma receita maior e estável de publicidade? Garantindo um público permanente, ou seja, a circulação paga. Para isso, era preciso inventar um sistema sólido de assinaturas, o que não era um problema técnico, mas psicossocial: era preciso convencer as pessoas de que elas precisam pagar antes pela assinatura de um serviço que receberiam ao longo do tempo. E isso funcionou para revistas e jornais impressos, que chegavam em casa pelo correio.

Hoje o dilema é o mesmo, só que numa mídia diferente. É preciso convencer as pessoas de que, para ter um serviço de informação confiável, num ambiente cheio de informações inidôneas como a internet, o consumidor terá de pagar. Provavelmente os custos das empresas terão de se adequar a um novo patamar de receitas. E os publishers deverão ter conteúdo exclusivo e importante para que sua carteira de assinantes se mantenha ou venha a crescer num ambiente em que, em compensação, muito mais gente terá acesso à informação.

No Brasil, os jornais - mesmo os ditos ''nacionais'' - sempre foram regionais. Folha de S. Paulo, por exemplo, sempre circulou em grande parte em São Paulo; O Globo e Jornal do Brasil são publicações do Rio de Janeiro. Na internet, a possibilidade de ter um assinante em qualquer lugar do Brasil cresce exponencialmente para os veículos tradicionais. Em tese, isso pode compensar uma perda de receita com o declínio da venda avulsa em bancas e um valor mais baixo para o serviço de assinatura. E a publicidade, ainda que num patamar de valores também mais baixo, pode voltar.

Será certamente uma transição complicada para veículos tradicionais que ainda têm de bancar o papel e uma grande oportunidade para quem está começando do zero. Com certeza, Bezos quer estar lá do outro lado, depois que essa fase de transição acabar.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Civita e a importância de um editor

Entre as muitas lições deixadas por Roberto Civita, falecido em 26 de maio último, a que mais me fascinava era sua definição do que é um editor. Para Roberto, o editor era o homem que acreditava. Um homem de fé. Que acreditava não em Deus, mas que tinha pontos de vista, e acreditava neles, custasse o que custasse. O editor era o homem que achava que sabia o que as outras pessoas queriam, muitas vezes antes delas mesmas. Ou que reafirmava suas ideias e convicções de tal forma que influía de fato no que elas pensavam e queriam.

Nos últimos tempos, andaram dizendo que o editor está em vias de extinção. Hoje, mecanismos automáticos de busca como o Google parecem identificar o interesse das pessoas e seus grupos (as "redes sociais"), por meio de algoritmos que pesquisam palavras ou aglutinam gente por algum tipo de proximidade, pessoal ou profissional. Fariam de forma matemática, ou computacional, o que antes parecia, pelo menos aos olhos do editor, uma função que tinha muito de intuitiva. Porém, o editor continua insubstituível. Porque sua especialidade não é apenas reconhecer o que as pessoas querem; é dar a elas aquilo que ainda não sabem o que querem. Parte da tarefa do editor é, como observador e analista da sociedade, inventar o que as pessoas ainda vão gostar. E isso se faz a partir de suas próprias ideias, sua visão do mundo, do mercado, e de seus ideais.



Com Civita, foi assim. Não poucas vezes, ele produziu revistas para as quais o mercado brasileiro ainda não existia ou não estava preparado. Fez sua primeira revista de informação, Quatro Rodas, quando praticamente não havia estradas asfaltadas no país e a indústria automobilística estava apenas sendo implantada para o consumo de massa. Durante sete anos, a Editora Abril arcou com o prejuízo semanal de Veja, uma revista de informação que dependia de um sistema de vendas que ainda não existia - as assinaturas - para garantir circulação e, assim, a publicidade.

Civita percebeu que essas duas coisas - circulação e publicidade - é que garantiam a independência editorial e vice-versa. Essa independência financeira apoiada no mercado, e não em dinheiro ou favores de governo, era a condição essencial para o exercício da liberdade de expressão que ele identificava como algo fundamental para a democracia brasileira. E podia perenizar uma publicação, que se transformava assim em uma instituição brasileira em defesa da verdade, independente da cor dos diversos governos que se sucedem na história democrática.

Como editor, ele sustentou Veja, até dar certo, por acreditar - acreditava que o Brasil precisava da democracia, que a democracia precisava de uma revista independente, e que isso seria inevitável. Até que, sete anos depois, o inevitável chegou com a inversão da curva que levaria Veja a ser, como é hoje, a segunda maior revista semanal de informação do mundo, apenas atrás da americana Time.

É admirável como a visão de um fato que ainda não existe pode se transformar no próprio fato, apenas pelo trabalho do editor - o homem que acredita nas suas próprias ideias. Ao dar às pessoas aquilo que elas ainda nem sabiam o que queriam, Civita na realidade implantava o seu próprio ponto de vista, uma versão bastante particular e brasileira da verdade universal de que a democracia depende da imprensa livre. Com seu jeito um tanto blasé, ele chegava por vezes a minimizar a importância do papel de Veja, mas a revista contribuiu de maneira decisiva para transformações importantes no país: a construção de uma democracia sólida, pela qual Veja lutou, no processo de redemocratização; a formação de um capitalismo liberal, mais livre das amarras impostas no passado pelo Estado xenófobo e autoritário do regime militar; o combate à corrupção e aos descalabros no manejo do dinheiro público, no sentido de uma política mais ética e voltada para o interesse público; por fim, e não menos relevante, a formação de uma classe média mais educada e bem informada e com uma renda capaz de transformar o Brasil num mercado consumidor importante.

Por vezes, o editor está errado - coloca seu ponto de vista muito à frente do que pode, ou não enxerga o melhor caminho. Alguns dos produtos de Civita não deram certo, ou deram certo apenas por algum tempo, como a revista Realidade, uma publicação inovadora para sua época, mas que teve um prazo limitado de validade. Porém, a maioria das coisas em que Civita acreditou estavam certas, porque partiam de princípios mais que justos. Sua postura de colocar-se ao lado do leitor, de forma a lhe garantir uma publicação independente de outros interesses que não o compromisso jornalístico com a verdade, combinava perfeitamente com a liberdade de expressão, a defesa da democracia e a procura de uma sociedade mais justa.

Essas ideias e ideais não são apenas dele, mas Civita soube capitalizá-las em produtos que agregaram ao seu redor interesses muito poderosos, porque combinam com o próprio interesse do Brasil como Nação. É assim que se consolidam as instituições. Por isso, Civita, que nasceu em Milão e foi criado em Nova York, foi um brasileiro essencial para o bom caminho que o Brasil tem trilhado, com uma democracia voltada para a busca de uma sociedade mais livre e ao mesmo tempo justa, que busca a riqueza sem perder as preocupações sociais, e capaz de explorar racionalmente seu imenso potencial natural e de mercado. Cabe a todos nós que carregamos a mesma bandeira fazê-la tremular com o mesmo empenho, entusiasmo e coragem. Pois, como Civita mesmo dizia, a liberdade e a democracia dependem de um trabalho cotidiano de manutenção.









terça-feira, 28 de maio de 2013

O legado de Civita


Em 1999, o financista aposentado Geraldo Forbes estava na mesa que lhe era diariamente reservada no restaurante Fasano, em São Paulo, quando entrou no salão o editor Roberto Civita. Conhecidos de longa data, Geraldo chamou Roberto à sua mesa. Cumprimentou-o e apontou, almoçando à sua frente, a filha Alexandra Forbes, que trabalhava, na época, em VIP. A revista, que fazia pouco deixara de ser um suplemento de Exame, então andava explorando aspectos mais bizarros do sexo para chamar a atenção. Geraldo não gostava nada daquilo, embora Alexandra fizesse, na publicação, somente a função de crítica gastronômica. “Roberto, quero te apresentar minha filha Alexandra, que trabalha numa de suas revistas, a VIP” , disse ele. “E quero também te dizer uma coisa: eu tenho vergonha de dizer que ela trabalha na VIP!” Roberto não se fez de rogado. Abriu seu sorriso de sempre e, com o sotaque levemente americano que o caracterizava, disse, simplesmente: “Se você tem vergonha de dizer que ela trabalha nessa revista, imagine então eu, que sou o dono dessa revista!”

Panache é uma maneira elegante e espirituosa de sair de situações difíceis ou delicadas. Ela define o homem, porque vem não somente da educação como de uma atitude perante o mundo. É um refinamento do verdadeiro cavalheiro, ao qual poucos chegam. Este pode até passar por apuros, mas não deixa de encarar a vida com certa leveza. É digno e, na vida prática, creio que funciona melhor. Roberto Civita tinha panache. Aparecia nas diversas situações que tinha de enfrentar, muitas como editor, especialmente em Veja. Não fosse isso, provavelmente teria muitas vezes deixado de lado suas convicções. Roberto sustentava corajosamente pontos de vista, mesmo quando pareciam ser os mais quixotescos, como se não fosse nada. “Os leitores que gostam compram”, disse certa vez, ao discorrer sobre a necessidade do editor de mostrar claramente o seu ponto de vista nas capas de Veja. “Os que não gostam, passam para ler outra coisa.”

Esse mesmo espírito aparecia nas decisões empresariais. Quando a Abril passava por uma séria crise financeira, em meados dos anos 1990, os consultores contratados pelo próprio Roberto diziam que era preciso cortar gastos, começando pelo overhead – os executivos e jornalistas que pertenciam à cúpula da empresa. Numa reunião, onde estes se encontravam todos presentes, ao chegar ao assunto dos cortes na diretoria, Roberto se levantou da mesa. “Eu vou embora, e vocês resolvem aí quem é que vai sair”, disse ele. “Eu simplesmente não consigo me livrar dos meus idiotas de estimação.” E saiu mesmo, deixando uns olhando para os outros, em silenciosa perplexidade.

Um dos que se tornaram ex-executivos da Abril, o jornalista Antonio Machado, lhe mandou um e-mail quando a Abril vendeu para a Folha da Manhã sua participação no UOL por um bom dinheiro, em 2001. Antonio lembrava que Roberto era descrente dos negócios da internet, e que ele, Antonio, levara adiante a primeira incursão da empresa no mundo virtual (o "Brasil Online, BOL), de forma que naquele momento podia colher o resultado. “A minha participação nessa venda eu deixo a você como doação”, escreveu Antonio. Roberto lhe enviou uma resposta, dando-lhe toda razão, reconhecendo o fato de Antonio ter insistido com ele para levar adiante o portal na internet. Assinava, no final, “Roberto”. Embaixo, um PS: “E muito obrigado pela sua doação!”

Roberto Civita faleceu no dia 26 de maio último. Assim como Ruy Mesquita, de O Estado de S. Paulo, falecido pouco antes, deixa no ar a sensação de que uma certa era da imprensa vai indo embora junto com seus ícones. Porém, Roberto deixa um legado importante para a imprensa, além do conjunto de seus negócios, que se espalham pelo meio do livro, da revista, da TV e dos veículos digitais. É algo mais impalpável, porém mais duradouro: o respeito à verdade, a coragem, o compromisso com o Brasil e com o leitor, que é o brasileiro. Deixa um modelo de imprensa exemplar e também de comportamento, que me lembra que mesmo para mover montanhas é bom ter um sorriso no rosto e algumas palavras gentis.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

O melhor do Brasil


Há alguns anos, escrevi para uma revista da Editora Abril um perfil de Gabriela Duarte, a atriz da TV Globo, que entrevistei no estúdio de seu marido, o fotógrafo Jairo Goldflus. Fiquei fascinado pela ampliações de retratos de gente famosa que ele fotografara e formavam uma enorme galeria - poucos brasileiros conhecidos não passaram por ali. Mais interessante, entre elas havia muitas fotos inéditas, que ele fazia somente para si mesmo e guardava como uma espécie de coleção de arte particular.

Não esqueci desse dia e, para minha surpresa, Jairo também não esqueceu. Sempre disse que havia gostado muito do que eu escrevera sobre sua mulher e que se tornara um leitor regular do que eu fazia. Escrever sobre gente exige certa perspicácia para entender rapidamente o ser humano, alcançar profundidade e evitar aquele tom de bajulação para o qual muitos se inclinam diante de gente considerada importante. É uma tarefa tão difícil quanto tirar algo de especial de um retrato às vezes simples, em que apenas se enquadra o rosto do personagem. Creio que, quando se trata de produzir uma obra que envolve ao mesmo tempo informação objetiva e um pouco de arte, eu e Jairo temos o mesmo desafio e a mesma abordagem.

Recentemente, Jairo me procurou, dizendo que decidira trazer à luz o seu tesouro até hoje reservado a poucos olhos. E que andava fazendo fotos exclusivas para publicar tudo em um livro. Queria que eu escrevesse a introdução, o que fiz com prazer. E o resultado é uma bela obra, intitulada "Público", que começa a chegar de forma seletiva às livrarias. Além do seu trabalho para a imprensa, que lhe permite galvanizar celebridades, Jairo empenhou-se em capturar figurinhas carimbadas, como Sebastião Salgado, mais acostumado a estar atrás das lentes que diante delas. E nos apresenta uma galeria de gente que faz o Brasil se tornar um país mais rico, interessante e importante. Um trabalho de arte que é, também, um registro histórico dos nossos tempos pelo que tem de melhor: as pessoas.

"Público" revela um talento singular: Jairo faz retratos simples se tornarem complexos, ao mesmo tempo em que, quando cria poses e interpretações, faz com que as coisas mais bizarras pareçam absolutamente simples, até naturais. Faz pensar sobre a natureza do ser humano e nosso capital fundamental, que o da mudança por meio da imaginação. Alguns podem dizer que, como autor da introdução do livro, eu tenda também ao tom bajulatório ou à falência da objetividade. Mas é difícil não ver o bem de um trabalho com arte pela arte - sobretudo em tempos nos quais o brasileiro e a sua cultura, tão dissolvidos no imenso redemoinho da indústria de massa global, carecem tanto de valorização.

terça-feira, 23 de junho de 2009

Os bons princípios da redação


Escrever bem nunca foi tão importante como agora

O crescimento da internet como meio de informação e também de manifestação do indivíduo aumentou a necessidade e a oportunidade de ler e, sobretudo, de escrever. Com isso, aumentou também muito o interesse pela prática da boa redação. Escrever é importante em nossa vida pessoal como um meio de plena expressão. E é fundamental no exercício de qualquer profissão, sobretudo o jornalismo.


Não importa se alimentamos um blog, redigimos um e-mail, fazemos um paper para uma reunião de diretoria ou escrevemos um texto para internet, jornal ou revista. Os princípios de uma boa redação são sempre os mesmos, não importa o tamanho e a finalidade do texto ou onde ele será veiculado.

Escrever bem não é meramente uma questão técnica. Implica não só no trabalho de redigir o texto, como tudo o que está por trás dessa tarefa - da qualidade do conteúdo à maneira como se conquista a atenção e o interesse do leitor.

Não é possível se transferir a alguém o dom ou a faculdade de escrever bem. O que se pode mostrar é a maneira mais correta de escrever. O tempo, a dedicação e o talento individual completam o trabalho.

Mesmo para aqueles que não desejam escrever profissionalmente, é possível escrever textos gramaticalmente corretos, interessantes do ponto de vista estilístico e importantes pelo seu conteúdo. De um simples bilhete a uma tese de doutorado, o essencial para superar as dificuldades normais da pessoa que escreve é encontrar o foco do texto, desenvolvê-lo e terminá-lo de maneira memorável.

Na imprensa, o esforço cotidiano de escrever não chega ao seu melhor sem outro ingrediente: um certo idealismo, tanto mais necessário quanto menos se dissemina no mundo contemporâneo. É preciso estimular de modo permanente um jornalismo no qual não se abandona os ideais da imprensa diante das pressões inerentes à atividade. Deve-se com o mesmo empenho sustentar a qualidade diante da inércia e da rotina.

A busca pela informação correta e sua transmissão de forma transparente pede um trabalho diligente e incansável. A credibilidade, princípio fundamental da independência jornalística, é o maior patrimônio de um veículo de comunicação e seus profissionais. Para construí-la e manter a confiança do público é necessária uma série de pequenas ações cotidianas ao longo do tempo. Para perdê-la, basta um único deslize.

Essa escola, que vem na tradição da grande imprensa livre mundial, sobretudo depois do seu período de profissionalização, finca-se na idéia de que o patrão do veículo de comunicação é o leitor. É para ele que trabalham o jornalista e o editor. Na busca pelo serviço prestado a cada indíviduo, há também um compromisso permanente com a sociedade democrática.

Mesmo para aqueles que não desejam seguir a carreira jornalística, é bom ter claro estes princípios, ainda mais agora, em que não se exige mais o diploma específico para o exercício do jornalismo, numa decisão infeliz do Supremo Tribunal Federal.

Talvez a disseminação desses bons princípios ajude a nortear aqueles que desejam se aventurar no mundo da informação qualificada. E ganhar leitores com o mesmo receituário com que a imprensa tradicional fez sua História: uma leitura clara, instigante, com conteúdo importante, surpreendente e de credibilidade.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Lição para o futuro


O fim de um jornal melhor que os seus donos

A imprensa anda de luto pela Gazeta Mercantil, o jornal que estertorou nas mãos da CBM, Companhia Brasileira de Multimídia, de Nelson Tanure. Seu fim não se dá pela crise da imprensa, que vai abalando grandes jornais do mundo, a começar pelo New York Times, nos Estados Unidos, com a prevalência crescente da internet sobre a mídia impressa. É apenas um caso de má administração e incompreensão da natureza de um negócio. Com a Gazeta, vai se encerrando parte da história do jornalismo brasileiro, mas ela ainda nos dá uma lição, sua última contribuição para o futuro.

Comecei a trabalhar na Gazeta em 1986, recém-saído da faculdade, depois de rápido estágio na TV Bandeirantes. Instalada num edifício da rua Major Quedinho, a Gazeta era um jornal venerável, considerado leitura obrigatória no mundo profissional. Sua circulação era menor que a da Folha de S. Paulo e de O Estado de S. Paulo, porém seu público era mais qualificado.

Possuía também um braço na TV, o programa Crítica e Autocrítica, capitaneado pelo seu diretor editorial, Roberto Muller, que ia ao ar no domingo à noite. Era uma alternativa para o público que queria ver uma conversa mais séria, ainda que às vezes meio sonolenta, em lugar das mesas redondas de futebol.
Na redação do jornal, havia uma constelação de estrelas do jornalismo, a começar pelo seu diretor, Matias Molina, o secretário de redação, Alexandre Gambirasio, e um time de repórteres tratados como primas-donas: Celso Pinto, José Casado, Getúlio Bittencourt, entre outros - todos premiados e com vasta folha de serviços prestados ao jornalismo brasileiro.
A Gazeta era não apenas um grande jornal de negócios, como uma escola de jornalismo. Isso incluía princípios como a imparcialidade e a honestidade absolutas; a obsessão pela informação correta, segundo elemento essencial para a credibilidade; a busca incansável pela notícia exclusiva, que fazia a diferença.
A disputa aberta e estimulada entre os repórteres pelo espaço da primeira página era uma forma de garantir a perseguição permanente pela qualidade, num mercado em que ainda não havia concorrentes importantes. A Gazeta valorizava o jornalista, que assinava todas as suas reportagens e era tratado como patrimônio da casa, a própria essência do negócio.
Parecia uma fortaleza inexpugnável, e teria sido, não fossem os seus proprietários: a familia Levy, cujo patrono, o deputado federal Herbert Levy, deixara a administração do jornal ao filho Luiz Fernando para cuidar de suas atividades políticas. A gestão fez da Gazeta Mercantil o único órgão de imprensa em que trabalhei a atrasar salário. Porto seguro para a publicidade de bancos e outras empresas que tinham no jornal um veículo perfeito, o uso dos recursos fazia com que volta e meia a empresa entrasse em dificuldades.
Por sorte, naquela época, havia um grupo de empresários que, nos momentos mais difíceis, socorriam o jornal. Sabiam que ele era melhor que os seus donos. Agiam não por amizade, compromisso, ou mesmo medo, mas pelo entendimento de que o serviço prestado pela Gazeta era importante e insubstituível para a comunidade de negócios e o país.
Assim, o jornal prosseguiu não por causa de seus criadores, mas apesar deles; pertencia não a uma família, mas à sociedade. Sempre foi respeitado muito graças ao espírito de corpo dos jornalistas que nele trabalhavam, enquanto seus proprietários eram tratados com reserva.
Lembro de certa tarde em que eu, ainda um repórter principiante, fui fazer uma entrevista com o então diretor do Banco Central, Wadico Bucchi, em São Paulo. Encontrei Luiz Fernando Levy já na ante-sala, à espera de uma audiência. Levy continuou esperando, enquanto eu entrei na sua frente, atendido primeiro.
Para Bucchi, o repórter principiante merecia preferência em relação ao dono do próprio jornal onde trabalhava. Ele sabia que eu estava ali em busca de notícia, fazendo meu serviço para uma publicação de prestígio. Levy estava lá para pedir alguma coisa.
Quando o mercado se torna mais difícil, uma má gestão fica mais evidente e faz a diferença, sempre para pior. Surgiu o Valor Econômico, um concorrente que tomou da Gazeta boa parte de seu principal ativo: os jornalistas. A empresa mergulhou em dívidas e mesmo os seus mais antigos defensores desistiram de salvá-la. Acossado pelos credores, Levy entregou o título a Nelson Tanure, empresário do ramo de transportes, que resolveu investir em comunicação e cobriu-lhe dívidas.
Tanure não tem a mesma familiaridade com as qualidades que fizeram da Gazeta um grande veículo e poderiam recuperá-la. E anunciou que fecharia o jornal por conta da cobrança na Justiça de dívidas trabalhistas anteriores à sua gestão e que, segundo explicou no próprio jornal, não lhe dizem respeito.
Há hoje uma onda de empresários que arriscam tornar-se editores sem compreender a dependência desse negócio de sua matéria-prima essencial – gente. A Gazeta teve seus quadros reduzidos, os salários aviltados. A qualidade do jornal era até miraculosa, dadas as condições de trabalho.
O que assusta hoje na imprensa não é a mudança da mídia impressa para a digital. A verdadeira ameaça ao negócio é a entrada de gente com dinheiro e ousadia, mas sem conhecimento do riscado – sobretudo, da importância da separação entre Igreja e Estado. Para mercadores vindos de outras áreas, é difícil aceitar que não se barganha conteúdo jornalístico por dinheiro, e que a credibilidade, que exige o sacrifício do ganho fácil, é a fonte do sucesso duradouro nesse tipo de negócio.
A Gazeta virará agora uma embrulhada jurídica para que se saiba quem pagará as contas, se Levy ou se Tanure – um tipo de disputa à qual ambos, por sinal, estão habituados. Esse, porém, não é o verdadeiro fim da história. Jornal que sempre analisou em suas reportagens as causas do sucesso e do fracasso empresarial, a Gazeta fez de sua própria trajetória uma parábola do assunto que explorava.
Em sua agonia, a Gazeta deixa como ensinamento o que é capaz de levantar e também derrubar um negócio de comunicação, não importa qual seja sua plataforma – o papel, a TV ou o mundo virtual. E, nesses tempos tão cheios de dúvidas sobre o futuro do negócio da informação, reafirma a convicção de que, enquanto os bons princípios do jornalismo forem praticados, sempre haverá uma imprensa livre e economicamente forte para proteger a sua e a nossa liberdade.