quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Um grande ano

Para mim, 2021 foi um ano maravilhoso.

Lancei dois livros para mim muito importantes. Xal, a história da menina de rua que vira líder de rebelião no presídio, é um livro chocante e, para mim, grande parábola dos desafios de hoje. A história de Adriana é um triste Brasil que o Brasil tem de resolver. E isso começa pela nossa conscientização.

A Era da Intolerância fala de outra das minhas grandes preocupações: a influência do mundo global sobre o nosso mundo particular. Fala das grandes transformações da nossa era.
Talvez seja um livro para ser lido daqui a vinte anos, mas, ao estudar para escrevê-lo, aprendi muito. 

Ele mudou minha maneira de ver a era contemporânea. E reafirma os valores da liberdade e da igualdade, minha razão de viver.

2021 foi também um ano de grandes encontros. Fiz um espetáculo de poesia e música no Porto. Em Portugal, fechei um negócio que me abre novas perspectivas. Conheci lugares e pessoas sensacionais. 

Viajei longe, no mundo e para dentro de mim mesmo.

Sobretudo, 2021 foi para mim um ano de amadurecimento extraordinário. Resultado de experiências nem sempre fáceis, descobri um novo e instigante caminho, que me faz ver de novo o futuro com alegria e entusiasmo.

O aprendizado e o auto conhecimento, que trazem a possibilidade de mudar tudo e construir um futuro melhor, fizeram de 2021 um ano revelador e, como consequência, de extraordinário impulso criativo. 

Escrevi mais dois livros, que me descortinam uma nova etapa da vida, e sobre os quais poderei falar em breve.

Dessa forma, estou muito otimista em relação a 2022. Não só por mim, mas pelo exemplo de que, às vezes depois de grande sofrimento, e apesar de perdas e decepções que deixam marcas fundas na vida, podem existir tempos ainda melhores.

Essa mudança só depende de nós. Não se pode esperar pelo que acontece em Brasília ou o que não depende da gente. O Brasil e o mundo começam por cada um.

Claro que ninguém faz nada sozinho. Por isso, quero agradecer aos muitos amigos e pessoas queridas que acompanharam de perto essa minha transformação e me deram um fundamental apoio este ano. Tiveram paciência comigo, me deram comida, me deram carinho, me deram abrigo e me deram o seu bem mais importante, que é a presença.

É bom ainda ter gente em que se possa confiar. É bom ter gente verdadeiramente ao seu lado. Não precisarei nomear ninguém aqui, pois essas pessoas sabem quem são. A elas um especial muito obrigado.

E a todos os meus votos de que em 2022 tenhamos um ano de realização de sonhos, com saúde e mais harmonia, duas preciosidades da vida que urgentemente precisamos resgatar.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Britânico lembra o Brasil do que é Brasil


O Brasil anda pra baixo, em crise econômica e de ânimo, desacreditado de si. Foi preciso um britânico para lembrar o Brasil do Brasil.

Lewis Hamilton, 7 vezes campeão mundial, teve neste neste domingo passado (13.nov.2021) o seu dia de Ayrton Senna. E o Brasil teve de volta o seu dia de Brasil.

Há vitórias que definem os melhores. Há vitórias que criam as lendas. Ontem, Hamilton foi Ayrton e foi o início da sua própria lenda.

Tomou punições, teve de largar em 20º no treino, acabou em 5º; punido de novo, largou em 10º e ganhou a corrida. Pegou a bandeira brasileira e levou-a tremulando na volta do triunfo, depois ao pódio. Emocionante, especialmente para quem já viu essa “cena” no passado, a começar por ele mesmo.

Foi preciso um piloto britânico de uma equipe alemã para lembrar o Brasil do que é o Brasil. Ou o que pode ser o Brasil.

O país de Ayrton, das vitórias impossíveis, o país do homem que não desiste, o país do homem que sai das cinzas e mantém acesa a esperança. Ontem o britânico Hamilton, pulsante como um brasileiro, foi Ayrton –e, repito, foi Brasil. Resta ao Brasil ser ele mesmo.

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Garibaldi, Anita e uma cidade




Quando Giuseppe Garibaldi tomou Bolonha, na campanha de reunificação da Itália, entrou nas catedrais em pata de cavalo, contava meu avô José, por ouvir assim a história pelo pai dele, Mauro. 

Revirou as igrejas e nelas teria encontrado poços - pozzo razzore, dizia meu avô - com facas, cheios de ossos, todos de moças, que sumiam sem se saber até então onde iam parar.

Essa história, contada no meu romance Filhos da terra, sobre a imigração italiana no Brasil, pode ser ou não verdadeira, mas é no que os bolonheses daquele tempo acreditavam. 

O que explica muitas coisas: o anticlericalismo do bolonhês, sua forte politização e tendência para o anarquismo e o comunismo, ligados ao ateísmo, sua defesa da liberdade - a palavra que está junto ao leão no brasão da cidade - e seu amor a Garibaldi.

A figura de Garibaldi está presente em todas as cidades italianas, mas as histórias de meu avô me fizeram muito próximo desse personagem extraordinário, talvez o mais extraordinário da história, e eu sempre o associei a Bolonha. 

Garibaldi está também no meu romance Anita. E aqui, nessa estátua em Bolonha, que para mim tem um significado especial, porque é a cidade das histórias de família. Por coincidência, o primeiro lugar onde fiquei em Bolonha, hospedado a trabalho, foi no hotel logo atrás do monumento, o Tre Vecchi.

Em Bolonha, os Fiorini como meu avô locupletam as placas que homenageiam os partigiani mortos na segunda guerra. Estão no campo, onde lavraram a terra, na comida, que me fala da infância, na história.

Aqui, por tudo isso, eu fico muito sentimental. Especialmente quando sento à mesa, em qualquer restaurante, e me sinto de volta à cozinha de minha avó Dileta. #anitaoromance #filhosdaterra #livros #lendo

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Escrever é como fazer amor

Quando entregava um livro aos editores, Monteiro Lobato costumava colocar, antes do texto, um recado aos revisores: avisava quais eram os sinais utilizados na língua portuguesa. E os mandava colocar no texto, aonde quisessem.

Escrever não é saber pontuação, nem mesmo saber português. Escrever é pensar no teclado, imprimir as ideias. O trabalho é ter a informação e as ideias e desenvolvê-las.  As ideias se propagam de muitas maneiras, mas a mais elegante, eficaz, perene e influente é escrevendo.

Eu uso isso, verdade, como desculpa para todos os erros que cometo, num atentado não deliberado, mas não muito arrependido, ao bom português. Troco onde por aonde e vice-versa. Esqueço o "em" antes do "que". E por aí vai.

Conheço as regras, mas no fluxo acelerado do pensamento muitas vezes elas vão ficando para trás. E como sempre vem ideia atrás de ideia, o tempo para a revisão vai ficando para trás.

Talvez alguns estranhem a comparação, ou a achem de mau gosto, mas escrever é como fazer amor. Se você ficar pensando na parte mecânica do ato, como um engenheiro, e não um amante, a coisa não sai.

Escrever, fazer amor e dançar têm isso em comum. Fred Astaire certamente nunca pronunciou as palavras "dois pra cá, dois pra lá".

Se a ortografia não é minha arte, prezo ainda menos pela datilografia. Escrever não é datilografar. Cato milho com dois dedos de cada mão há mais de trinta anos trabalhando em jornalismo e escrevendo romances de 500 páginas. A
 invenção do corretor ortográfico é uma benção mas não resolve tudo.

Sei que minha estenografia digital é irritante, talvez deselegante para com a língua pátria, e uma complicação. O ideal é entregar o serviço perfeito, limpo, profissional. Porém, o cuidado com a língua é mais próprio do revisor, do professor ou do acadêmico.

E uma coisa é certa: quando o dançarino é talentoso, trabalhador, ou ambas as coisas, e as ideias fazem efeito, como o amor do bom amante, sempre aparece alguém disposto a ajudar.

sábado, 23 de outubro de 2021

Escrever, ou: o teatro de nós mesmos

O exercício de escrever é um processo de reflexão, do qual acabamos dependentes. Escrevemos não por vaidade, ou por exibicionismo, ou para ficar na posteridade, mas para viver. Seja como autor de livros de ficção como de não ficção, eu me obrigo primeiro a quebrar a casca da ostra, a encarar a verdade interior.  Sem isso, mergulho na tormenta.

Escrevendo, aceito da forma mais escancarada o que pessoalmente nunca faço: me expor. Escancarar as portas da alma, sem segredos, é uma forma de mudar, superar a dificuldade de estabelecer uma ponte para o mundo.

Ao escrever, ajudamos a nós mesmos; ao publicar o que escrevemos, a intenção é ajudar também os outros na mesma situação. O que vemos nos livros pode ser informação, ciência ou arte, mas em última análise é o aprendizado com a experiência humana, que dividimos uns com os outros. Ficção é assim também, com a diferença de que tratamos da matéria humana.

Aquele que abre o coração expia seu sofrimento em busca de redenção. Dá o primeiro passo para a admissão de que é um ser humano. Descobri, escrevendo, que, ao abrir os braços, em vez de nos rejeitar, os outros nos acolhem. Saber que não estamos sozinhos no mundo e receber esse retorno, tanto quanto dá-lo, traz um grande alívio.

Cedo ou tarde, perdemos a inocência; descobrimos que o amor pode trazer a dor e naveguei desde muito cedo em um mundo cheio de  ambiguidades, paradoxos e contradições. Vejo como o bem traz consigo também o mal, assim como mal pode trazer o bem; a realidade é uma comédia trágica. Escrever reflete tudo isso, é teatro: como ficção ou não, encenamos a nós mesmos, nossa perdição e nosso resgate.

 

Marília Gabriela: corações expostos

- Ai, ai.

Sim, era verdade: Marília Gabriela, 40 anos de prática no jornalismo (“que horror”, disse ela, ao fazer essa conta), estava com medo de uma entrevista.

É verdade que não era uma entrevista qualquer. Primeiro, porque ela - em maio de 2009 - estaria do outro lado do balcão, não como entrevistadora, mas como entrevistada. Segundo, seria uma entrevista ao vivo diante da plateia do Autores e Ideias, que acontecia uma vez por mês no auditório envidraçado da Livraria da Vila, no Shopping Cidade Jardim.

Além das perguntas do moderador – eu –, as pessoas poderiam fazer suas próprias perguntas. Ao ver o salão abarrotado, com os 100 lugares completos, mais uma porção de gente em pé, ela titubeou, mas só por um instante.

- Vamos lá -, cutuquei.

Sentada elegantemente diante da plateia, Marília começou me colocando contra a parede. depois de uma longa e complicada pergunta, disse, para espanto da plateia:

- Não entendi nada da sua pergunta.

Diabinha. Virei para a plateia, duzentas pessoas na expectativa do meu vexame.

- Alguém aí entendeu alguma coisa do que eu disse? Levante a mão.

Gargalhadas. E reformulei a questão.

Marília se impôs, primeiro graças ao traquejo profissional, depois com sua simpatia natural, quando ficou mais à vontade. Provocou o entrevistador (pobre de mim), respondeu a perguntas que envolvem o lançamento de seu livro e não fugiu das questões mais delicadas, nem mesmo as mais pessoais. Disse que escreveu Eu Que Amo Tanto da mesma forma que se interessa por todos os seus entrevistados, ou os personagens que faz no teatro ou em novelas – procurando respostas para si mesma.

Apenas pelo tema escolhido por ela, Eu Que Amo Tanto já era bastante revelador. Coleção de relatos em primeira pessoa de mulheres que sofrem por amor a um ponto patológico, que as leva a perguntar o que há de errado com elas mesmas e sua vida, o livro indicava por onde andavam as especulações íntimas de Marília.

Ela recolheu seus depoimentos entre as integrantes do MADA, um grupo de mulheres que se encontravam para discutir seus problemas da mesma forma que fazem os alcoólicos anônimos - vítimas de um vício que não conseguem controlar e que destrói suas vidas. Porém, não desistiram de lutar.

Cada relato era quase um conto, lido com prazer, sempre com um enfoque um pouco diferente do anterior, e um elemento de drama reforçado pelas fotografias do português Jordi Burch, que soube captar em imagem a alma de cada texto.

Aos 60 anos, Marília admitiu identificar-se com a frase de uma entrevistada para o livro: “há algo de errado comigo, mas não sei bem o quê”. Recém separada do ator Reinaldo Gianecchini, de seu segundo marido, com quem teve dois filhos, e viúva do primeiro casamento, ela se dizia uma questionadora permanente de relacionamentos e de si mesma. Inquieta, afirmou que, se não estivesse escrevendo ou fazendo alguma coisa nova, ficava angustiada.

Tida como mulher bem resolvida, descobriu que, mesmo assim, ninguém é totalmente resolvido.

Ex-repórter do Jornal Nacional, do Fantástico, apresentadora do TV Mulher, ela se consagrou como a melhor entrevistadora do país em uma série de programas que mudaram de nome, mas não no essencial: Marília cara a cara com seus entrevistados.

Jornalista de origem, ela usou o jornalismo cada vez mais para se interessar e se aprofundar no conhecimento das pessoas, com a sabedoria de entender que as respostas estão sempre nos outros – e, quando não há respostas, há pelo menos o consolo, o amparo mútuo, a compaixão. Sua exploração do ser humano acabou encontrando outros canais, reflexo da inquietação que caracteriza os temperamentos artísticos – Marília cantava bem e já fizera três discos, estrelara peças de teatro e interpretara personagens de novela.

Sobretudo, tinha coragem de se expôr, como fazem os artistas, e como fez na série de relatos que, embora de outras pessoas, falavam de sentimentos universais e ao mesmo tempo muito dela – a mulher que acha que amor não pode ser sofrer, num território onde não há linha separatória entre prazer e dor, felicidade e angústia, sucesso e fracasso, paz e perturbação emocional.

Em Eu que Amo Tanto, as doze mulheres de Marília tinham extração social e atividades as mais diferentes – havia uma psicóloga, uma manicure, uma médica, uma bombeira – mas possuíam em comum a certeza de que sua incapacidade de lidar com a paixão - o que, aos poucos, ia lhes destruindo a vida. Pouco suspeitavam de onde vinha sua dependência doentia de alguém ou como superá-la.

Havia pistas por toda parte, mas na realidade não uma só resposta: o que as mulheres de Marília encontravam no relato de umas e outras era o alívio de saberem que não estavam sozinhas no mundo e que existiam aquelas capazes de, se não obter uma cura completa, ao menos melhorar.

Em literatura, se pode apanhar personagens reais e transformá-los em ficção, ou dar a personagens fictícios algo de personagens reais. Entre uns e outros, o autor acaba colocando muito de si mesmos, de suas próprias questões, resoluções e interpretações. Ao final, não sabemos mais exatamente o que é uma coisa ou outra, se o que está ali é ficção, realidade, os outros ou nós mesmos.

Acostumada a entrevistar pessoas famosas, que apesar da exposição pública muitas vezes são tão desconhecidas por nós quanto muitas vezes por elas próprias, Marília avançava em território muito próximo da literatura, em que somos todos iguais, anônimos ou famosos, ricos e pobres, igualados na condição humana, nas alegrias e angústias de pontilham a existência em qualquer tempo e lugar.

Com seu trabalho de entrar nas pessoas, em busca de ajudar a si mesma, ela acabou se tornando um espelho de todos aquelas que vêm a um mundo onde as perguntas – leia-se, a própria vida – são mais importantes que as respostas.

Um poema para resgatar um país


Há muito venho pensando em escrever um poema épico sobre a minha geração, que fale também do Brasil, desde a redemocratização aos dias atuais.

Dos valores brasileiros, das nossas aspirações, desejos, identidade.

E da nossa verdade.

Descobri que esse grande poema pode ser dois. Um da minha geração, outro mais das nossas raízes.

Há poemas definidores das nações. Parece muito ambicioso, mas sinto que o Brasil carece de uma obra inspiradora, que reforce a nossa crença em nós mesmos. depois de tantos desapontamentos, tantas frustrações, é a única forma de resgatarmos a nós mesmos.

Hoje, a razão e o argumento já não funcionam. Estamos divididos, amedrontados, incapazes de ouvir. Talvez o poema possa enviar a mensagem que de outra forma não produz mais efeito.

Precisamos recuperar o orgulho, primeiro diante do espelho, para depois fazer frente ao munfo, cada vez mais competitivo.

Que venha então a muda, se for capaz de me fazer dela o seu instrumento.




O sabor do dialeto

 Aróst ad ninguém côt int al fåuren, peço à garçonete no Buca Manzoni, trattoria em Bolonha cujo cardápio traz os pratos no dialeto bolonhês - para mim, uma viagem no tempo.

Quem leu Filhos da Terra sabe que meu avô se chamava José - e que, em casa, o chamavam de Iusfen, no dialeto bolonhês. Nomes também mudam, conforme a língua: José,  Giuseppe, Joseph, Yussef, Iusfen.

Fazia tempo não via dançarem na minha frente essas palavras de "esses" puxados de quem faz sempre tudo a mais, e fala com prazer, esticando a silabação. 

Aróst ad ninguém côt int al fåuren, por sinal , é assado de porco ao forno.

Como esse, só aqui.

Micro histórias de um ex- diretor de Playboy


O agente dela não quer fotos de nu frontal.

- Tudo bem. A perereca dela é cinza, parece que no meio tem um charuto apagado.


*

- Você veio tão sem roupa. Não está com frio?

- Periguete não tem frio.


*

O que você quer?

- Como assim?

- O que você quer? Pode ser qualquer coisa .

- Não é  isso, não.

- Então você me  paga e eu te dou dinheiro de volta. 

- Apaga tudo aí. Vamos começar essa conversa de novo.


*

- Tua mulher não se importa?

- o se preocupe. Ela diz que não tem ciúme. Só ódio mortal.


*

- Eu sou doula. Ajudo mulheres no parto. Não aguento mais ver b...

- Eu também. Sou diretor da Playboy.


*

Mulher:

- Falei com um sujeito que trabalhou em Playboy.

 - E?

- Ele disse que comentam lá que você é o único diretor de Playboy que não comeu ninguém.

- E você não me defendeu?

*


- Vai tomar nessa capa.

(Por e-mail)


*

Mulher:

- Às vezes você é um lobo em pele de cordeiro. E às vezes é um cordeiro em pele de lobo.


*

Mulher:

- Você é terrível.

(Depois de um tempo).

- Por que eu sou terrível?

- Não lembro.


*


Além da memória a 3 Vozes

Uma noite esplendorosa, em 1 de outubro, fechou com chave doirada (para soar mais português) dias tão intensos quanto especiais. E veio à luz de forma completa, para mim surpreendente, o espetáculo Além da Memória - a Três Vozes.

Obrigado à voz da música e da sabedoria, Enóe Ferrão, de quem partiu a iniciativa e a concepção do espetáculo, casando trechos selecionados do meu poema Além da Memória com Beethoven, Tom Jobim, Satie, Piazzola e outros compositores tão diferentes quanto grandes - e que ela executa igualmente, como virtuose que é.

Obrigado a Mariya Viktorivna, que foi minha própria voz, emprestando seu talento interpretativo, seu carisma e graça às minhas mal rabiscadas palavras. E generosa e profundamente assim prestou-se ao vulcânico papel de ser eu.

Obrigado ainda ao Paulo Morin e Sônia Soares, que nos deram precioso suporte, tanto na crítica construtiva, desde os primeiros ensaios, até a efetiva organização e divulgação do espetáculo.

Obrigado à Casa das Artes da cidade do Porto, elegante e inspirador espaço artístico, com seus colaboradores de mente aberta e espírito sempre cooperativo - desde sua diretora, dona Fernanda, a toda a equipe, como o amável e competente Jorge, no som e luz, e Telma, da logística indispensável.

Obrigado aos alunos de Enóe, que vieram assistir, aprender, trabalhar. E especialmente a todos que nos honraram com sua presença e tornaram essa noite calorosa e inesquecível, como este país que tão afetuosamente nos acolheu.

@Enóe Ferrão @maryiaviktorivna @paulomorin @paulosoares @casa_das_artes_do_porto @fernanda  @EDITORAS.COM 

Paris de volta à vida

Paris está voltando da pandemia, com gente à vontade nas ruas, embora ainda se apliquem restrições de máscara e certificado anti-covid em museus e outros estabelecimentos fechados. Porém,  o país mantém o orgulho e a força econômica. Muitas lojas não apagam suas luzes mesmo de noite, quando fechada, e a cidade hoje volta a ter aquele brilho que é exemplo do que a liberdade é capaz de fazer.

Sim, porque apesar da onda conservadora que avançou nos últimos tempos, como no resto do mundo, o esplendor da França,  que se vê nos cafés,  nos mercados,  na rua, vem da aplicação prática da sua fidelidade aos princípios da igualdade, liberdade e fraternidade - a palavra com que os franceses definem a tolerância, colocada como fundamento da democracia.

A França passou pelo terrorismo e estresse da sociedade global digital, mas sua base continua em pé. Foi a promoção do cidadão, com o desenvolvimento da educação e da cultura, forças basilares da sociedade e do Estado francês, que transformou o país numa grande potência - não apenas econômica como civilizacional.

Desde que decidiram deixar para trás os déspotas de todos os naipes, e buscaram implantar justiça social, os franceses mostraram que a cultura, a começar pelas ideias que fazem revoluções, é o maior patrimônio de um país  - e uma riqueza que nem as epidemias podem abalar.

#thalesguaracy #aeradaintolerancia #covid #pandemia #paris
#tulherias

Para as nações, a conta também chega depois


É meia noite quando desembarco no aeroporto de Beauvois Tilly, a uma hora de carro de Paris, vindo da cidade do Porto, em Portugal. Fiz exame de Covid e assinei a “declaração de honra” de não estar doente, exigida pelas autoridades francesas até a semana passada, e chega a ser desapontador não ver ninguém nos guichês da fronteira. Não pedem nem documento, quanto mais atestado de vacinação.

Em Paris, onde as lojas continuam de luzes acesas mesmo de madrugada, quando estão fechadas, todos andam na rua sem máscara. Vou ao Au Petit Fer à Cheval, birosquinha do Marais que para mim é tradição na cidade, pois sempre passei ali grande momentos, e o amigo que fez a reserva esqueceu em casa o celular e com ele seu certificado sanitário. Pergunta se pode entrar o restaurante sem isso. “Sem problemas, monsieur”, ele ouve.

No Porto, sexta-feira, o espetáculo de música e poesia que fiz com a pianista Enóe Ferrão e a atriz Mariya Viktorivna na Casa das Artes foi o primeiro do ano que podia ter lotação completa – desde o ano passado, havia o limite de 50% das cadeiras.

A Europa, em resumo, vai voltando ao normal. As sequelas da pandemia, apesar das mortes, não foram assim tão grandes, agora que a pandemia mostra-se sob controle. Pelo menos na economia e na vida que se retoma.

Passo em frente à Shakespeare & Co, livraria de livros em língua inglesa, famosa pelos escritores que buscavam nela um pouco da própria casa em Paris, e que diziam ter sido fechada na pandemia. Está aberta. Assim como o café que acabou virando seu filhote, na esquina da pequena praça em frente à catedral de Notre Dame, do outro lado do rio. E há já fila de gente na entrada da loja.

A vida está voltando ao normal para quem fez as coisas mais bem feitas, lá atrás, quando isso se mostrou necessário. Para quem virou a cara para o outro lado, e até hoje não admite a gravidade da pandemia, o problema continua.

Às vezes, decisões erradas que tomamos parecem não ter maiores consequências. Mas para as nações, assim como as pessoas, a conta sempre chega, depois. E quem tomou as piores decisões, paga mais caro.

Enquanto a vida se normaliza, e a economia começa a voar de novo no mundo mais organizado, estamos nós no Brasil às voltas com os mesmos problemas.

Seria o caso de aprender com a experiência alheia. Não só na Covid, como na economia. Na Argentina, depois do socialismo pampeiro dos Kirchner, e do liberalismo de Macri, voltou-se ao kirchnerismo, com os mesmos resultados.

Em vez de irmos para a frente, continuamos presos aos nossos erros e a fórmulas do passado. Não negamos apenas a ciência, negamos a realidade, com medo de enfrentá-la também com realismo. Por que?

Ignoramos o aprendizado dos outros e não existe de fato um plano para o Brasil. Resultado, o país luta ainda para sair do ciclo pandêmico, enquanto o mundo já olha para a frente.  É de se perguntar que futuro nos espera.

"Voglio piangere!"

- Voglio piangere! - diz a italiana, em cima da ponte Solférino, chorosa, dramática.
- Per ché?
- Perché no lo ho trovato...
Aqui nas grades da ponte, os amantes de Paris por anos a fio puseram seus cadeados e atiraram a chave ao rio, símbolo de amor eterno. A italiana volta e chora, ao não encontrar o seu, perdido entre tantos outros ou, pior, perdido para sempre.
A prefeitura resolveu tirar tudo, porque as grades estavam apodrecendo e caindo, houve protestos, e o que sobrou dos cadeados ficou.
Quem aqui passou com seu amor procura pelo cadeado deixado no passado. Seja pelo amor que ainda perdura, seja por outros, que acabaram, sempre recordação.
Ainda há muitos cadeados na ponte, mas bem os cadeados são eternos. O que não muda é o amor, e o que Paris foi feita para os amantes, cidade das artes em que o amor, matéria prima do artista, flui como o rio sob a ponte.

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Em águas de bacalhau

 - ... Então ficamos em águas de bacalhau - diz Maryia,  enquanto dirige o pequeno Peugeot rumo ao Porto, onde vamos ensaiar o espetáculo com música ao piano por Enoé Ferrão, poesia minha e ela, Mariya, como minha intérprete.

Dou risada.

- Que foi? - pergunta ela, surpresa. - Nunca ouviu?

Explica então que, como o bacalhau fica longo tempo na água, para dessalgar, os portugueses usam essa expressão quando tudo anda meio parado.

- Ah.

É um prazer estar entre os portugueses, não somente pelas cidades tranquilas, os cenários espetaculares, o valor que dão à cultura, e como sou recebido em toda parte, com gentileza e admiração pelo que faço. 

Portugal está também nessa mentalidade, que está nas expressões, impregnada nas grandes e pequenas coisas, que vão se mostrando no dia a dia. 

Mesmo em Lisboa, capital do país, há algo de cidade do interior, como temos ainda no Brasil. Nada de correria e pressão. Há um clima de civilidade e sanidade no ar, que nem a pandemia do coronavírus abalou. 

Às vezes é irritante pegar senha da fila no banco, ou ouvir do funcionário que, simplesmente, não dá. É preciso ainda mostrar vacinação e circular de máscara para entrar em ambientes fechados, mesmo em restaurantes, onde se tem de tirar a máscara de qualquer modo, para comer. Porém, há algo de mais saudável na forma como o português lida com tudo isso.

Os portugueses não estão muito interessados na vida corrida contemporânea, nem em queimar etapas. As coisas aqui ainda passam pelas pessoas. 

Há filas nas lojas do cidadão, onde se tiram documentos e o CPF português, com o qual se pode alugar um apartamento ou abrir uma conta bancária. A burocracia é pouca, mas estrita. 

Não interessa se você acha o processo injusto ou desnecessário. Geralmente ele dá emprego a alguém e não há um espírito competitivo demais nem interesse para eliminar a presença humana das suas tarefas tradicionais.

As pessoas se cumprimentam e não estão com pressa para nada. Há lojas que fecham para o almoço e deixam aquela placa na porta com o horário da volta. 

Na Casa das Artes, onde faremos o espetáculo, a pessoa que cuida da divulgação teve um AVC e ninguém mais além dela tem o mailing de divulgação da instituição. Ninguém parece também preocupado em resolver isto antes de saber o que acontecerá com o funcionário.

Ouvi o relato segundo o qual a dona de um teatro, ao fazer uma turnê, fechou o estabelecimento, como se um teatro pudesse entrar em férias, junto com o dono. Coisas impensáveis, talvez, em outro lugar.

Em contrapartida, esse mundo menos exigente com o tempo e tolerante com o que hoje achamos serem falhas tem uma contrapartida. Há cuidado e respeito em tudo e todo mundo é gentil, mesmo na rua. 

Há tempo para tudo. Incluindo sentar, conversar com o dono da padaria, ou sentar no anfiteatro ao ar livre de Gaia, onde as pessoas ouvem música, veem o por do sol, namoram e apreciam um dos mais espetaculares cenários do planeta - o Douro lá embaixo, rumando para o mar entre as escarpas escaladas pela cidade do Porto.

Esse espírito está em todas as coisas e se exige mesmo de quem acabou de chegar ali, com espíritos outros. O jornalista Paulo Markun, colega, amigo e que foi meu autor, conta que tentou passar afoitamente por uma senhora na rua e tomou uma lição.

- Quer licença? - perguntou ela.

- Sim.

- Então peça!

Penso nisso ao entrar num restaurante vazio, em contraste com as ruas sempre apinhadas de gente, principalmente nas mesas dos bares e restaurantes das calçadas, sempre cheias de música e alguns pedintes tão educados que dá vontade de pedir dinheiro também a eles.

- Boa noite! - diz o atendente, com um sorriso, possivelmente, sob a máscara anti-Covid.

O jantar: vitelo assado ao vinho, com batatas no bafo, vinho da casa e, de sobremesa, doce da casa - bem ao gosto de infância, um creme com raspinhas de bolacha maizena, tradicional no país.

No final, pago a conta e o rapaz pergunta se a comida estava boa. Ao ouvir os elogios, se despede.

- Então ainda é uma boa noite!

Viu?

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

O amor é doce


 Agora eu quero escrever de amor.


Porque eu estou em Lisboa e peço arroz doce. E vem aquele arroz doce que eu comia na infância,  feito pela minha mãe, Marlene. E que eu comia na casa da minha avó paterna, Eugênia, que ensinou a minha mãe,  para ela fazer para o filho dela, o meu pai, Alípio.

Amor.

Esse doce tem gosto da minha infância, das pessoas que eu amo, do mundo de onde eu venho, ou para onde volto.

De um amor que está em cada detalhe, no sabor, até na caravela desenhada em canela, tão portuguesa quanto o doce, tão doce quanto a infância, minha e do Brasil.

Como eu disse, é amor.

#thalesguaracy #lisboa #portugal 

terça-feira, 13 de julho de 2021

Arte para os filhos

 “Uma visita rapidíssima”, diz a senhora, e abre, só para nós, o portão da #grottadeibuontalenti, em #Firenze. 

Vim aqui pela primeira vez quando tinha 21 anos, carregava um caderno de desenho, sonhava em viver escrevendo e tudo aquilo que via era deslumbramento, maravilha, e aprendizado.

Sempre que vou a Firenze, e já é a quarta ou quinta vez, passo aqui, como quem vai a uma igreja da arte, que tem mesmo o tamanho e a forma de uma capela. 

Desta vez trago meu filho, para lhe mostrar esse canto quase escondido no jardim de Boboli, onde Michelângelo criou a natureza com a arte - recria artisticamente uma gruta, em que as formas saem das paredes e o altar é uma Vênus, símbolo da beleza, santa nua pagã da mitologia e da arte grega. 

Aqui Michelângelo deixou o classicismo para fazer a escultura misturar-se à pedra bruta; daqui sua Pietà deixou a beleza descritiva da peça que  está no Vaticano para a forma incompleta que apenas sugere e transpira emoção da Galeria da Academia. 

“A arte é a transformação da natureza em algo belo”, digo ao meu filho, que tem a chance de ver isto bem mais cedo que eu. “Isso é arte, e a civilização, das quais dependemos, porque sem a liberdade, como a liberdade de criação, e valores que são universais, viveríamos na barbárie.” 

Hoje ainda aprendo, mas não há mais alumbramento, não há maravilha: há apenas a paz, paz de algo que passou a fazer parte de mim, e que transfiro a meu filho, que me olha, e ainda não compreende muito bem.

domingo, 11 de julho de 2021

A "foto de autor"

 "Esta es tu foto de autor",  me disse a escritora cubana Wendy Guerra, no seu castelhando ronronante, ao meu lado no banco do


passageiro, quando íamos juntos de carro numa Flip que ficou célebre - eu, como editor da Saraiva, promovi lá uma "festa cubana", ela dançou, deu show na mesa literária e virou a "musa da Flip".

Wendy acreditava que um autor deve deixar uma foto que o representa, e que deve ser a usada em seus livros,  depois que ele morre. A foto do autor é a que melhor o representa,  aí entendidas sua vida e obra.

Aí está a foto, feita pela @grazielafazevedo em Havana, que Wendy escolheu, enquanto matava o tempo da viagem. 

Nós nos divertimos muito em Paraty, no fim das contas. Eu acho que o melhor retrato de um autor não está em fotos, nem mesmo nos livros. Está na maneira como vivemos vida. Mas, se tenho uma foto de autor, fico com esta, embora falte mais alguma coisa.


Talvez, o rum. :)


@raphael_montes 

@wendyguerra 

#thalesguaracy 

#literatura

quarta-feira, 12 de maio de 2021

Pai também se escolhe


Meu filho era bem pequeno, dois anos, quando foi à escola pela primeira vez. Na saída,  vinham os pais buscar as crianças, dentro de um corredor onde todos ficavam esperando. Chegava o pai de um, homens na maioria, o coleguinha ia lá e pulava sobre ele. Chegava outro pai, levantava o filho, e corria para ele abraçar.

Entro eu, André me vê, cem correndo, me abraça pelas pernas, olha do redor e diz, feliz e como quem avisa.

- Esse papai é meu!

Há muitos momentos especiais na minha vida com meu filhos, mas dois apertam particularmente meu coração.

Quando ele tinha sete anos, certa vez, olhou para mim, como às vezes faz, tirando algo do nada.

- Você vai ser meu papai para sempre!

Eu nunca tinha pensado que filhos podem escolher os pais. Para mim, algo tão natural. Mas André tinha razão. Pais, assim como filhos, podem ser escolhidos - tanto que nem todos vivem juntos, e alguns se afastam  assim que podem.

Diz o meu próprio pai,  num provérbio que ele atribui aos chineses, que filhos nascem para ensinar os pais. E é verdade: vemos a necessidade de corrigir nossos erros, para ensiná-los melhor,  e também aprendemos com eles  principalmente a melhor  talvez a única, forma de amor. Aquela que realmente nos torna únicos e tão especiais.

Sou um sujeito muito feliz. Escolhi meu próprio pai. E também o meu filho. Por sorte, são os mesmos que me deu a natureza.

sexta-feira, 9 de abril de 2021

A poesia e a profecia

- Depois desse livro, você nunca mais vai viver com mulher alguma.

Estou na varanda do apartamento de Pedro Paulo Sena Madureira, o bruxo do Engenho Velho, diante da mesa de vidro na qual repousam os originais do livro-poema que foi, por algum tempo, meu trabalho secreto.

Acabamos de repassar os comentários que ele fez no poema em prosa, um único poema, que dá um livro inteiro - e que ele, cuidadosamente, revisou. Estamos ainda sob o impacto dos últimos versos, depois dele declamar praticamente o livro inteiro para mim mesmo, seu autor.


Olho as árvores de Higienópolis, cujo verde balouçante deixa passar os raios de luz.

- Por muito tempo, pensei que ter um relacionamento, uma mulher que compreendesse, entrasse profundamente no significado, fosse a coisa mais importante da vida - digo. - Hoje vejo que toda essa dedicação foi inútil.

- Mas, se você não tivesse passado por essas mulheres, não teria chegado aqui - diz ele, e põe delicadamente a ponta do indicador sobre o calhamaço. 

Um livro, terrivelmente pessoal. Nele, falo da vida, da minha e de todas as vidas. É meu Poema Sujo, não na forma, ou no tema, mas na ambição, ou na "atitude", como diz PP. 

O texto dispara memórias e sentimentos em profusão. "Você está aqui", tinha me dito ele, depois de lê-lo pela primeira vez por, ao celular. "Triste. Sombrio. Com maravilhosos raios de sol".

PP diz ter mergulhado no texto "vinte vezes". Entrou no meu mundo, tão fundo quanto eu mesmo posso ir, onde estão os mistérios do nascimento, da vida, e quem sabe, da morte. 

E é uma honra que ele tenha tratado o livro como seu achado. Conversamos sobre o que está ali, na conexão íntima que esse tipo de obra produz, o mesmo tipo de diálogo que ele já teve com autores tão importantes, de quem ele se tornou, pela janela aberta da literatura, também amigo íntimo, além de editor.

Foi assim com gente como Clarice Lispector, Pedro Nava, Adélia Prado, e outros. Fez comigo o trabalho que fez com eles. E fala com a experiência de quem conhece tão bem a espécie.

- O poeta é monotemático - ele prossegue. - Se você seguir nessa seara, não haverá mais nada na sua vida. Isso ocupa tudo. Nenhuma mulher dá, nem vai dar o que você precisa. Não há nada desse tamanho que possa te saciar, nenhuma pessoa. Só mesmo a poesia, ou a arte, para quem entende, conhece e vive nessa dimensão.

Ouço a profecia, mas não estou preocupado. Na profunda revisão da vida que tenho feito, eu me sinto cada vez mais próximo de mim mesmo, e do centro de tudo, afinal, que é o que eu faço. A arte, na forma literária, é a minha mulher, a minha companheira,  a minha amante, a minha confidente. É ela, afinal, quem me conhece e me reconhece. E nela me vejo, como um livro-espelho.

Nós, que esperamos reconhecimento, amor, compreensão, entendimento, compaixão, nós que olhamos não a vida, mas o seu significado, temos de aceitar um dia que só matamos essa sede no regato que nós mesmos criamos. E mais em lugar algum.

O resto - ou o "outro", principalmente quem está tão perto, que logo deixa de te enxergar - com o tempo se mostra traidor, prosaico, distraído com as pequenas misérias do mundo. Menor.

A conta do fim do mês, o sobrinho, a ginástica, a roupa, a comida, até mesmo a comida: nada toca a realidade que importa. O monstro do tempo, fazendo crescer seus ramos, até que eles entram pela janela, rastejam no chão e se enroscam nas tuas canelas.

Não temos tempo, e o que temos tem de ter significado. Precisamos dar significado às pessoas, à vida e tudo o que vale o tempo, contra o a impermanência e sua marcha inexorável.

Nessa luta, pela qual estamos cercados todos os dias, ainda mais nestes tempos de peste, vamos certamente perder. E não há consolo, solidariedade, nem mesmo companhia. 

Encarar isso de frente, enquanto todos se distraem, e ainda assim sorver o gole do vinho, sorrir com o canto da boca e abraçar o que virá, requer coragem.

Por isso, tantos sofreram. Clarice morreu na miséria e miseravelmente. Nava se meteu embaixo do relógio carioca, que foi capa de seu último livro, A Cinza das Horas, e deu um tiro na cabeça. 

Quantos daqueles que encaram o bicho do tempo passaram a vida calmos, quietos, mansos aos pedidos e demandas alheias, suportando a mediocridade instalada em todo canto, com a qual procuramos conviver quando, de fato, a cabeça passa longe? 

Quantos cederam à anestesia geral, para escapar à necessidade vital de movimento, buscando golfadas de ar, o verde da mata, a distância estelar?

- Somos agora amigos íntimos - diz PP. Ele agora trata meus familiares, vivos e mortos, personagens do texto, como seus próprios parentes. A voz meio embargada denuncia a convulsão que foi sair da cosmogonia pessoal que emana daquele maço de papel.

Sim, estamos sozinhos, mas não solitários, enquanto houver arte. E gente como nós, ronins do pensamento, sem destino e senhor, emprestando a nossa espada imaginária a quem dela mais precisar, na batalha em que a vitória é cair de pé.


quinta-feira, 8 de abril de 2021

Versos sobre o horizonte


Um banco no jardim mais bonito do mundo, em Ravello, na Itália, há muito me serve de inspiração. 

Lembra que é preciso experimentar a vida para escrever melhor - e que, escrevendo, experimentamos melhor a vida. Aqui está gravado o célebre poema de DH Lawrence, que foi hóspede de Villa Cimbrone, lugar de muitas histórias, entre elas um dos contos do meu A Quinta Estação:

Lost to a world in which I crave no part
I sit alone and commune with my heart:
Pleased with my little corner of the earth
Glad that I came, not sorry to depart.

E aqui escrevi também os versos que aparecem em A Quinta Estação:

Aqui faço meu pouso, pés cansados
A mente de asas pesadas de pensar
Só o coração voa entre penhascos
No descanso que abriga céu e mar.

Esse é o espírito, esse é o lugar.




O peso das próprias palavras


São 11:30 da manhã e entro no apartamento em Higienópolis de Pedro Paulo Sena Madureira, o Oráculo do Engenho Velho, com seus tapetes, obras de arte e castiçais de cristal, para olharmos juntos o meu livro-poema, que ele considera agora seu achado, e de que anda cuidando como se fosse o seu bebê.

Sentados à mesa de vidro da varanda, ele repassa comigo página por página, mostrando todas as suas observações na obra que ele diz já ter lido e relido "vinte vezes".

Fez esse mesmo trabalho com poetas que lançou, como Adélia Prado. Eu não esperava merecer tudo aquilo, mas como se trata de PP, editor dos maiores poetas  e romancistas brasileiros, nem eu posso duvidar dele.

E, estremecendo, fico ouvindo PP ler em voz alta o texto, que ele interpreta e, às vezes, corrige.

Cortou algumas estrofes inteiras, de vez em quando acrescentou palavras, e faz questão de declamar as partes de que gosta mais, que são muitas. De vez em quando, ele interrompe a leitura para falar de algo que o poema lhe evoca, como o suicídio de Pedro Nava, de quem era editor e amigo próximo. 

Ficamos assim três horas e meia, até que chegamos ao verso final.

Silêncio, um instante. Sentimos, eu e ele, o peso do que escrevi, e que PP, com a pontinha da caneta aqui e ali, como o grande editor que é, ajudou a realçar.

- Suas ex-mulheres deveriam ler isto aqui  - ele diz. - Será que lerão?

- Acredito que não - respondo. - É coisa demais para elas.

- Meu bem - diz ele, como costuma fazer com quem lhe é mais caro. - Depois deste livro, você... É. Demais.

A sombra e os raios de luz

Volto à casa de Pedro Paulo Sena Madureira, meu primeiro editor, oráculo do Engenho Velho, que terminou de ler os originais que lhe entreguei.

Está aceso, com aquele olhar que eu conheço, de bandeirante que sacudiu a bateia e achou umas pepitas de ouro.

- Você está craque - diz ele. - Dominando todos os gêneros. 

Adorou o livro de história contemporânea, resultado do trabalho de um ano e meio. Porém, seus olhos brilham muito mais pelo livro em poema que lhe entreguei e devorou de uma sentada, intitulado Além da Memória. 

- Isto é você - ele diz. - Triste, sombrio, com maravilhosos raios de sol.

Quer me mostrar as correções e observações no primeiro livro, que faz à moda antiga, rabiscando de caneta o papel. Mas quer que eu volte outro dia, para fazer o mesmo com o poema. 

- Este é maravilhoso, mas vamos olhar juntos, precisamos tirar alguns excessos, porque pode ficar perfeito. 

É muito bom trabalhar junto com alguém - especialmente se esse alguém é quem considero ainda o melhor editor brasileiro.

E porque é dessa cooperação entusiasmada de alguém que te conhece, dá valor e está genuinamente ao seu lado que precisamos para continuar.

PedroPaulo me ajudou a colocar em pé Além da Memória. Me deu certeza de que valia a pena trabalhar no texto como poema, não prosa.

Agora Além da Memória está pronto. O julgamento do editor está feito. Fica agora 



Um livro e a ressurreição

Páscoa, dia da ressurreição, vou à estante e abro pela primeira vez o exemplar de O homem que falava com Deus, que dei a minha mãe, e acabou voltando para mim com outros de seus livros, quando ela morreu - doze anos atrás.

Ela nunca me falou sobre o livro, exceto no fim, quando estava no hospital. Vejo agora que o texto está cheio de marcas, onde ela, que era professora e me ensinou a ler e escrever, como sempre, assinalou imperdoavelmente tudo o que não achou bom ou estava errado.

E deixou também marcas em algumas coisas de que gostava. Releio a dedicatória que lhe fiz e este livro, hoje, é meu presente de Páscoa.


Romance histórico ou livro de história?



Para mim,  escrever livros de história e romances históricos são ambos válidos e desempenham função semelhante. Escrevo ambos. A escolha de uma forma ou outra depende de onde está o foco do que quero contar.

No romance, o foco é mais no indívíduo, com suas ideias e paixões - essas coisas que podem mudar o mundo, isto é, que fazem a história. Mas isso requer muitas vezes uma investigação mais subjetiva ou subjacente aos fatos.

Já nos livros de história, os fatos ganham mais relevo e dependem de objetividade. Porém, a informação detalhada e o enredo procuram fazer a época se tornar tridimensional, portanto mais perto da realidade. E um bom enredo pode provocar uma leitura compulsiva como a de um romance.

O romance não prejudica nem exclui o rigor histórico. Em Anita, não há nenhum fato conhecido da história que é distorcido ou contrariado. A ficção entra nos lugares onde não há registro e corrobora a história. Dá nuances que, embora criados pela imaginação, parecem fazer tanto sentido que ao fim o leitor não verá outra história possível de Anita Garibaldi que não seja essa.

Nos meus romances históricos, a história pode ser mais pano de fundo, como em Filhos da Terra, que fala sobre a imigração italiana no Brasil, com personagens reais, embora tenham nomes trocados e ganhem pinceladas da ficção. Podem também tratar de personagens históricos reais, como Anita Garibaldi (Anita), ou Prestes, Lampião, Padre Cícero, Rondon e outros (Amor e Tempestade). Nesse caso, os personagens reais devem parecer reais, mesmo na recriação literária, e nada pode ferir o fato histórico.

Não é um trabalho fácil. Tanto no romance como no livro de história, a missão é mergulhar o leitor naquilo que pode estar mais próximo da verdade, seja ela objetiva, seja a subjetiva. Tentamos dar à história toda a dimensão humana.

A história é feita por pessoas, com motivações que às vezes fogem à nossa compreensão. Desvendar a história que não conhecemos da história é uma grande arte, cuja perfeição sempre está mais ali adiante.

#thalesguaracy
#romancehistorico
#livrosdehistoria
##anitaoromance
#amoretempestade
#aconquistadobrasil

 


 

terça-feira, 6 de abril de 2021

Curare: dos tupinambás para os hospitais no Covid-19


Conta o meu médico, Virgílio Pereira, que no Einstein, hospital onde trabalha, utiliza-se o curare - um paralisante muscular - nos pacientes intubados de Covid-19, para evitar que rejeitem o equipamento, fisicamente intrusivo. Com isso, os pacientes não precisam ser amarrados, solução considerada agressiva ou desumana por muitos, como acontece em hospitais com menos recursos ou recursos esgotados.

Com isso, ganha um uso bem contemporâneo algo que já era conhecido pelos tupinambás quando no Brasil chegaram os europeus, tanto na caça quanto na guerra. Embido em flechas e lanças, o curare paralisava e deixava à mercê a presa e o inimigo, como vai contado em A Conquista do Brasil (1500-1600), hoje em sua quinta edição.

Mais um caso em que o passado se faz presente, parte porém de uma outra guerra, e dessa vez como instrumento da medicina. 

quinta-feira, 1 de abril de 2021

O romance para os 200 anos de Anita Garibaldi

 Este ano, completam-se 200 anos do nascimento de Anita Garibaldi, a grande heroína brasileira, feminista antes do feminismo, mãe, mulher, guerreira e paladina da liberdade. 


Personagem dos mais admiráveis da história, de fazer inveja ao próprio Garibaldi, César ou Napoleão, no Brasil pouca gente a conhece, ou sabe realmente quem foi. 

Essa é uma das razões pelas quais escrevi esta biografia romanceada, publicada pela editora Record. Faltam ainda filmes, séries e documentários sobre ela. Eis a grande oportunidade.

@tguaracy
@eumaiteproenca
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@fabiobuccia

terça-feira, 30 de março de 2021

O homem que não entendia o amor


Contardo Calligaris era um um pensador interessante, versátil e muito popular. Levou as preocupações que fizeram dele um psicanalista a um grande público, seja por artigos em jornal, uma excelente série de streaming (Psi) e mesmo o romance. 

Ironia das ironias, o seu "O Conto do amor", publicado pela Companhia das Letras, revela que o homem que estudou o ser humano boa parte da sua vida não sabia o que era o amor - ou, ao menos, não o achava possível, como sugere o próprio título do livro. Calligaris vivia sozinho, mas fez dessa busca pelo amor, como condição necessária para a felicidade, seu interesse maior - e, assim, sua vocação.


Procuramos aquilo de que mais precisamos - e ele tentava ajudar os outros naquilo que não via para si. Morreu de câncer, aos 72 anos, e me deixa a impressão de uma vida plena, ao menos para quem acredita que a vida é sempre uma busca, na qual jamais alcançamos a plena realização.

quarta-feira, 3 de março de 2021

Poesia e o fígado de bacalhau


 “Como está poético, você!”, me dizem. Na verdade, estive poético - no pretérito. Todos os poemas que andei postando aqui já estavam escritos e publicados. Mas, pra quem não leu, é novidade.

O que escrevemos no calor da hora, geralmente, ficou para trás. É um fotografia antiga. 

Quando publicamos o que escrevemos, muitas vezes, não é para celebrar o presente. Muito ao contrário. Reflete o passado. Frequentemente usamos isso para fechar uma porta. 

Poesia não é diferente. Como toda literatura, conserva a vida, as ideias, sentimentos. Mas também funciona para tirar algumas coisas de dentro da gente, bota aquilo para fora, que fica separado. Forma de despedida, que enterra ao desenterrar. 

Publicar poesia lembra o tempo em que ela existia. Quando essa alegria não existe mais, colocar fora é uma forma de resolver, fazer as pazes com a gente mesmo, esquecer. Se está ali, escrito, não precisamos mais lembrar, nem sentir. Ao entregar a poesia ao mundo, tirando sentimentos de dentro de nós mesmos, fazemos um rito de passagem. Traz alívio.

Fazer poesia é tomar mel. Publicar poesia, como último capítulo de uma história que passou, é óleo de fígado de bacalhau. Tem gosto ruim, mas faz bem pra saúde. 

Com sorte, deixa algo também para os outros e mantém os bons sentimentos num bom lugar. Onde talvez, um dia, alguém ainda vá aproveitar, ou, olhando para trás, já anestesiados pela distância, tenhamos saudade.

segunda-feira, 1 de março de 2021

Pelé, Osmar Santos e o amor


Vejo o doc sobre Pelé no Netflix: bem editado, emocionante. O que mais chama minha atenção, porém, é Pelé de cadeira de rodas, com as pernas atrofiadas, recebendo os amigos.

Penso nas crueldades de Deus, ou do destino, como preferirem. Foi assim com o locutor Osmar Santos, que, num acidente de carro, perdeu, justamente, a fala.

Há muitos casos. Agora há Pelé. Pelé, sem suas pernas.

Penso na Bíblia, livro de Jó. O homem que é em tudo obediente e tem como pago a ingratidão de Deus. E se pergunta: por que?

Não há resposta, creio. Ou, se há, é que sentimos mais por perder o que nos é mais caro e fizemos por merecer. Como o amor. Quem mais se dedica ao amor é aquele que mais perde, porque é justamente quem se dedica. E quando perde nem cabe perguntar por que.

A vida não é merecimento, nem reconhecimento. E só perde aquele que tem algo. É esse algo que deve ser lembrado, é o que importa, ainda que seja tirado: as pernas de Pelé, a voz de Osmar, o amor.