quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Além da Memória, ou: por que escrevemos

Está saindo pela Assírio & Alvim Brasil o poema em livro Além da Memória, em que procuro explorar o passado mais remoto do ser humano – ou de mim mesmo. Revisito a primeira infância – o “tempo sem palavras”, quando ainda antes de aprendermos a falar, ou racionalizar, construímos nossa personalidade, com a noção sobre sentimentos, como o amor e o medo. Uma forma de cognição pouco compreendida, mas tão presente e influente no adulto, como digo, "artificialmente construído".

Escrever Além da Memória não foi nada fácil e começou num momento de forte impacto pessoal, quando minha mãe estava já muito doente de câncer, e meu filho era recém-nascido. Para lidar com sentimentos tão conflitantes, passei a rabiscar umas memórias, primeiro em prosa. Mas não estava satisfeito. Daquela forma, não conseguia me exprimir. Reescrevi tudo, então, como o poema, que foi apresentado em parte na Casa das Artes, no Porto, em Portugal, por iniciativa da pianista brasileira Enóe Ferrão, com participação da atriz Mariya Victorivna, e sai agora completo, em livro.

Desse tempo em que nascia Além da Memória, ficou esse registro aqui:

"23h29 de 3 de novembro de 2016. Faz algum tempo acabei o romance que será publicado ano que vem. Escrevo agora o livro mais difícil da minha vida. Nem sei se terei coragem de apresentá-lo um dia. Acabo esse trecho, abaixo. Não falta tanto para o fim. Escrevo na esperança de que tenha um fim. Mas receio que nunca acabe.

'Quando minha mãe morreu, meu filho tinha dois anos de vida. Eu olhava para ele como se olhasse para mim mesmo no começo de tudo. Meu filho estava aprendendo a viver. Andava sem dar a mão, aproximava-se de desconhecidos, avançava curioso sobre tudo. Descobria como o mundo é maravilhoso. Avaliava e tentava se certificar da importância de cada pessoa que conhecia, dentro do seu universo. ('Você é o meu vovô?', perguntava repetidas vezes a meu pai). Via o sol, as estrelas. Experimentava, fantasiava. Certo dia, apanhei-o batendo com um tubo de cola na testa. Explicou que tentava colar nele mesmo a sua sombra.

É ao mesmo tempo belo e duro aprender a viver; mais duro ainda, talvez belo, seja aprender a viver com a morte. Pessoas que perderam cedo os pais ou outros entes queridos têm de fazê-lo também cedo. Não existe uma ordem natural para as coisas; o destino muitas vezes é tomado pelo acaso e só nos resta enfrentá-lo como ele vem.

É difícil encarar a morte enquanto estamos cheios de vida; ela não pode se tornar uma sombra, colada na testa, pois aquele que chora ou  teme o fim diariamente, morre um pouco também todos os dias. É preciso assimilar as piores tristezas e os fatos mais duros da existência e ainda assim manter a cabeça erguida, a dignidade e a alegria.

Eu me encontrava nesse estágio do aprendizado; via a vida florescer, ao mesmo tempo em que tinha de aprender a conviver com a dor da grande perda. Era sorte, ser também pai; isso me ajudava a manter a coragem de seguir em frente, pois exigia uma motivação superior a qualquer tristeza.

Filhos são um bem do céu, não porque nos trazem felicidade, mas porque pedem de nós a felicidade. Não apenas dão alegria, como a exigem de nós. Por eles, todos os dias temos de sorrir, de brincar e esquecer nossos males. Crianças não nos dão tempo para a dor.

Ao mesmo tempo em que ensinamos os filhos, aprendemos com eles. Não é apenas pelas crianças que se deve seguir em frente, mas por nós mesmos, e pela criança que há dentro de nós. É na infância, a nossa e dos nossos filhos, ou dos que vêm depois, que está uma fonte permanente de felicidade. Por isso, aquele que não ri nem se alegra com as crianças está morrendo sem saber.

Aquele que aprendeu a viver com a morte talvez esteja mais preparado para aprender a morrer; cada etapa parece servir de antesala da próxima, cada degrau da sabedoria leva a outro. Provavelmente, quando não achamos um degrau, ou perdemos o pé, é porque não subimos direito o anterior."

Esse era o livro em prosa. Quando levei os dois, poema e prosa, a meu antigo editor, Pedro Paulo Senna Madureira, para me ajudar a decidir o que fazer, ele me disse para guardar a prosa. Gostou, mas achou melhor o poema, mais livre, profundo e afetivo. "Este livro é você" - ele me disse. "Triste, sombrio, com esplêndidos raios de sol."

Fez profecias, como o de que eu não me casaria novamente. Como editor e amigo de grandes escritores confessionais, como Clarice Lispector e Pedro Nava, sabia por experiência. "Nenhuma pessoa vai dar o que você precisa" - ele me disse. Essa, creio, para alguns, é a função da arte.

Escrever Além da memória me deu paz - a paz possível. Enquanto escrevia, voltei às lembranças mais remotas, de meus tempos de criança – um menino que não podia andar, com a difusa lembrança de crianças brincando ao longe, atrás do vidro; meus pais,  às voltas com aquele “filho torto”; o mundo circunscrito a um tapete; e, por fim, a imaginação como liberdade.

Em Além da Memória, eu sou filho, mas também pai; sou adulto, e sou menino; evoco ali minha diretriz primordial, essencialmente afetiva. A poesia como linguagem agora para mim se explica, como relato do quase indizível, a começar pelas invisíveis teias da relação entre mãe e filho, nossa ligação mais essencial.

Dividido em duas partes – “Sombra e Luz” e “Menino de apartamento”, Além da Memória é um suave documentário de momentos profundamente íntimos, ou um ensaio sobre o ser humano, no que tem de mais essencial. Traz a criança que frequentemente toma as rédeas da vida, surpreendendo o adulto, às vezes contra ou apesar da razão.

Como diz meu próprio pai, os filhos nascem para ensinar os pais. Foi isso que vivi  quando meu filho começou a crescer, uma espécie de espelho do tempo, quando eu me despedia de minha mãe, mas queria não perder o menino que há em mim.

Por muito tempo hesitei em trazer à luz o poema, porque não sabia qual a razão de expor algo tão pessoal. Hoje, eu sei. A única coisa que explica essa necessidade,  e razão pela qual escrevo, e todos escrevemos, creio, é acreditar que esse sacrifício da intimidade pode de alguma forma fazer as pessoas que amamos viverem para sempre.


terça-feira, 7 de novembro de 2023

Duas mães. E o Brasil

O mais comovente da convocação pela seleção brasileira do Endrick, atacante de 17 anos do Palmeiras, depois do mágico jogo contra o Botafogo, foi ver a dona Cíntia, mãe dele, feliz com a felicidade do marido, o seu Douglas, que trabalhou de pedreiro e pediu um emprego de servente no clube quando o filho foi jogar lá.

Endrick ser convocado para a seleção, porém, não foi o momento mais emocionante da vida da dona Cíntia. E ela disse qual foi. E por que.

"Quando ele pisou no gramado do Alianz Park pela primeira vez, foi como se tivesse pegado um diploma na mão", disse a dona Cíntia.

O Brasil inteiro cabe nessa declaração de mãe. 

Dona Cíntia lembrou minha mãe, dona Marlene, professora da rede de ensino público, quando viu o primeiro boletim do neto, André, que tinha então só dois aninhos, mas recebeu na escola, no fim do ano, uma avaliação.

Ao pegar aquele papel, minha mãe, que ensinava até a adultos as primeiras letras, quando achava algum analfabeto, e me ensinou a ler e escrever, olhou e... As lágrimas saltavam dos seus olhos.


Se tem uma coisa que mexe comigo, e o amor da mãe. E o Brasil. Quando as duas coisas se juntam, então...

Seja feliz, dona Cíntia. Seu diploma está no coração.