sábado, 20 de junho de 2020

Um negro avança na imensidão

Quando vendi meu sítio, o futuro comprador trouxe livros para que eu lhe desse autógrafos e queria porque queria ficar não apenas com a casa, mas com tudo: os móveis, os tapetes, os quadros, enfim, tudo. E eu disse que era impossível, porque aquele tudo ali era a minha vida, e ela ia junto comigo, aonde eu fosse.

Cada coisa aqui de casa tem alguma história, quando não fui eu que fiz, como este quadro que acabo de pregar na parede agora de um apartamento, em São Paulo: um guerreiro masai, andando na savana, que pintei  ao retornar da África, por volta de 1998.

É uma cena que eu vi, pintei de memória, e me traz ainda muitas e importantes recordações.

Eu tinha ido com um grupo de jornalistas brasileiros conhecer as reservas naturais do Quênia. Saímos de Nairóbi numa van e entramos por uma estrada de terra que dava na reserva de Masai Mara.

O céu estava pesado, com jeito de chuva. E vi o masai, de lança em punho, com seu perfil longilíneo, avançando a pé e sozinho naquela imensa pradaria selvagem - o retrato mais primitivo da intrepidez humana.

Aquele dia foi cheio de aventuras, impregnadas daquela atmosfera que eu conhecia dos livros de Hemingway. Como o céu prometia, dali a pouco, de fato, choveu. As estradas do Quênia são de uma terra finamente arenosa, que os ingleses chamam de black cotton soil - solo de algodão negro. Na chuva, aquilo vira um lamaçal terrível.

Tivemos de descer da van, metendo o pé naquele território infestado literalmente de leões e outros bichos não menos perigosos. Só a vontade hercúlea de chegar explica como empurramos o veículo por oito quilômetros até o destino, subindo ladeiras e cortando riachos, levando aquele barro preto na cara.

Por sorte, a certa altura surgiram uns negros do meio do mato, com pinturas de guerra, mas que adoraram saber que éramos brasileiros. "Brasil? King Pêle, king Pêle!" - diziam. E nunca fiquei tão feliz por sermos a terra nativa de Pelé, cuja fama, como pude testemunhar, é sem limites.

Chegamos ao acampamento no final da tarde. A chuva tinha passado e deixou um belo por do sol. No alto de uma colina, nos esperavam os ingleses do hotel, que mantinham na reserva um acampamento digno do velho colonialismo britânico, com tendas providas de travesseiros penas de ganso, lençóis indianos e um negro aquecendo a água do banho do lado de fora num tambor sobre o carvão.

Tinham preparado para os jornalistas uma impecável recepção. Montaram uma mesa de bufê sob um dolman, de onde se avistava o horizonte africano, sanguíneo e fresco como se pintado por Raimundo Correia.

Coberto de lama negra dos pés à cabeça, fui me aproximando do chefe da recepção, um inglês de longos bigodes e cachimbo, elegantemente trajado com sua roupa cáqui de safari e botas reluzentes de montaria, provavelmente compradas em Saville Row.

- Sorry - disse eu, declinando do aperto de mão. - I hope next time we can show up dressed properly .

Naqueles dias, além de fugir de um elefante em fúria, entrar em barrancas a pé perigosamente para ver hipopótamos de perto e ficar horas a fio esperando um guepardo terminar seu almoço para poder descer da van e tirá-la de um buraco, tivemos a oportunidade de conhecer os masai mais de perto.

Nosso guia, Peter N'Guru, era um sujeito falante e simpático, que tinha uma cicatriz atravessada na barriga, resultado de um dia em que dirigia uma camionete no meio da ravina e só viu o rinoceronte quando ele atravessou a porta com o chifre, jogando carro e motorista para longe.

Embora aquilo fosse proibido, Peter conseguiu dar um jeito de nos levar pra dentro de uma aldeia. O cacique, um negro com bem mais que dois metros de altura sobre o caniço das pernas, me levou para dentro de sua casa, uma choça como as outras, feita de estrume seco de gado, dividida em duas metades.

Na primeira, ficavam as vacas, para eles tão importantes que não podiam ser deixadas do lado de fora. A outra metade da casa era também dividida ao meio. Na primeira célula, pelo respeito e a idade, ficavam os avós. Na célula restante, um quarto do espaço total, amontoava-se todo o resto da família - pai, mãe e filhos, geralmente vários.

Os masai se alimentavam sobretudo do sangue do gado. Aproveitavam tudo - os ossos, para fazer instrumentos, e o couro, usado nos escudos com que saíam savana afora.

Para ir de aldeia em aldeia, andavam, ou corriam - daí os quenianos serem imbatíveis nas provas de maratona. Correr, para eles, é como para nós pegar o carro.

Aos quinze anos, como rito de passagem da adolescência para idade adulta, tinham de matar um leão. Não era sentido figurado, mas isso mesmo: matar, de fato, um leão.

A certa altura, apareceu a polícia. Como nossa visita era ilegal, os policiais levaram o chefe para o interrogatório - uma bronca, segundo me explicaram, e ele estaria de volta, porque os masai, como os índios no Brasil, eram inimputáveis. O homem levantou a perna do tamanho de uma vara de salto e sem nenhum esforço subiu no caminhão da polícia florestal. Ainda o vi, altaneiro, balançando selva afora.

Tal foi a impressão que tive dos masai, quando os conhecia, mais de perto: a mesma desse quadro, quando os vi de longe, que me lembra que o homem é, e sempre foi, a maior força da natureza.




sexta-feira, 19 de junho de 2020

O romancista encara suas fontes


Eu estava em Nova York, tempos depois de lançar A Quinta Estação, quando tocou o celular. Era uma ex-namorada, que ligava do Canadá.

- Meu pai leu o seu livro.

- Ué, achei que ele não gostava de mim.

- Disse que o livro está cheio de sexo!

- Mas é uma obra de ficção e ninguém está identificado...

- Como não? Agora só me chamam de Sofia!

Lembro dessa história ao folhear A Quinta Estação, um daqueles livros que, por ser contemporâneo, acabam criando alguns problemas. Tenho um amigo que, quando lanço um romance, pergunta; “Quem vc f... dessa vez?”

Um de meus filmes favoritos, “Desconstruindo Harry”, de Woody Allen, fala justamente desse problema do autor. De forma análoga ao que faz como cineasta, Allen se coloca no papel de um escritor que usa todo mundo que conhece como inspiração para seus personagens. Acaba criando uma confusão só ao seu redor. E não conto mais nada, para não dar spoiler a quem não viu.

Por sorte escrevo muitos romances históricos e, quando as inspirações são colocadas no passado, as pessoas não percebem tanto onde contribuiram sem querer para a história.

O fato é que, em qualquer época na qual qual seja ambientado, todo livro é produto das experiências de um autor, que frequentemente envolvem outras pessoas. E estas por vezes não gostam de se ver retratadas ali, ou da forma como você as retrata. Um romance tem sempre um ponto de vista, que é o ponto de vista do autor.

- Nesse livro aí você acerta conta com muita gente – Certa vez me disse um ex-cunhado, que é juiz. – Como a gente se defende de você?

Tem gente, por outro lado, que se enxerga lá nos livros mesmo sem ter nada a ver. Seja como for, é difícil entender o que sai da cabeça do escritor como uma recriação ficcional, que serve a uma função dentro da história, e por vezes tem de ser propositadamente adaptada.

A Quinta Estação é meu campeão de problemas nesse campo. Uma vez, uma leitora me mandou uma mensagem indignada.

- Mas esse livro só tem a perspectiva masculina dos relacionamentos!

Tentei explicar que era essa mesmo a ideia: cinco contos de amor, narrados do ponto de vista masculino. Afinal, o que há de errado com o ponto de vista masculino? Se eu sou homem, por que não posso ter um ponto de vista masculino?

Eu gostaria de mostrar que os homens pensam, sim, sobre relacionamentos, apesar da fama em contrário. Homens sofrem de amor, ficam magoados, e, no fundo, se queixam tanto as mulheres, talvez mais, por incompreensão. Porém, tentar convencer a moça foi inútil.

Às vezes, é verdade, faço referências que são pura e inocente provocação. Em Filhos da Terra, por exemplo, homenageio um amigo meu, o doutor Eduardo Reis, colocando seu nome num personagem que é um bacharel de porta de cadeia, especializado em livrar a pele dos larápios. Uma daquelas pequenas sacanagens que a gente só faz com grandes amigos.

Outra: também em Filhos da Terra, coloquei o nome da minha mãe e de minhas tias nas sete filhas do delegado que não deixava nenhuma casar antes de desencalhar a primeira. Elas adoraram o livro. Mas um tio que teve seu  nome trocado com o de um irmão ficou chateado comigo.

O que as pessoas não pensam tanto é que ninguém se expõe mais do que o autor, às vezes onde menos parece. Ainda assim, como não podemos ser tudo nem viver tudo, acabamos aproveitando a experiência dos outros.

Por isso, o interesse verdadeiro pelo outro, com o entendimento e aceitação de toda a diversidade humana, é essencial para quem escreve e também nossa vantagem. Essa preocupação serve ao trabalho e serve à vida, porque ela melhora muito, fica muito mais rica, quando temos um interesse genuíno pelas outras pessoas. E mais: temos compaixão. Sem base na realidade, sem nos colocarmos na pele do outro, nenhuma história teria credibilidade. E paixão.

A todos aqueles que me ensinaram alguma coisa na vida, que me me deram amor, ou com quem dividi aventuras, experimentos e mesmo alguns erros, deixo meu reconhecimento agradecido.

Indo para o papel ou não, todos podem ter a certeza de que tudo o que compartilhamos continua vivo dentro de mim. Se também compartilho algo dessa experiência em livro, é porque acho isso tão importante que pode servir a mais alguém.

E, por favor, não tenham medo de me contar coisas. Eu não mordo. Só, às vezes, escrevo. Discretamente.


terça-feira, 16 de junho de 2020

Minha companhia silenciosa

Algumas vezes na vida, morei sozinho – e desta vez recorro ao psicólogo americano Anthony Storr, que publiquei em português como editor na Saraiva, para quem estar sozinho não significa necessariamente ser uma pessoa solitária.
Pelo contrário. Storr nos lembra que a ideia de que as pessoas só podem ser felizes juntas, coabitando no casamento, é uma invenção relativamente recente na história da Humanidade, datada da era vitoriana para cá.
Diz Storr que são muitas as fontes da felicidade, podendo ser escolhidas de acordo com cada um. O importante é nos sentirmos bem e encontrarmos a melhor forma de viver em cada um dos períodos da vida.
Estar em uma nova casa, desta vez, acabou me reaproximando de velhos amigos, que de vez em quando visito. Saem dos livros que enchem as estantes e carrego comigo aonde vou morar, alguns deles há muitos anos.
Dali vem ao meu encontro Storr, falecido em 2001, mas que ainda hoje me ajuda e acompanha no que de outra forma seriam apenas desorientados solilóquios existenciais.
Uma biblioteca é um cemitério de papel, com a diferença de que dali os mortos se levantam tanto quanto os vivos, no frescor humano, plenos de ideias, sentimentos e energia vital. Conversam comigo, quando folheio as páginas onde colocaram, estou certo, o melhor que tinham de si. Contam histórias, fazem confissões, trazem experiências, conhecimento, vivência humana.
Fico feliz e um tanto aliviado de estar hoje também entre eles – o meu canto da estante em que me coloco dentro de mais de uma vintena de livros escritos ao longo da vida, nos quais, pelo tempo em que os escrevi, dei, certamente, o melhor de mim.
Digo a todos estes meus amigos, espalhados por cerca de 3 mil volumes, carregados trabalhosamente de mudança em mudança, que não os abandono, nem abandonarei.
E que não me esquecerei de um dia juntar-me a eles, de maneira definitiva, para ressuscitar da mesma forma que hoje ganham vida, assim que eu me sento, bastando abrir o tablet ou, neste caso, a palma das mãos.

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Os livros e o louco sobre a montanha


Lá por volta de 1998, trouxe para o sítio que tinha acabado de comprar, nas montanhas de São Bento do Sapucaí, o Zé Luís - um encanador de metro e meio de altura, que se tornara tão meu amigo quanto um colaborador imprescindível, para me ajudar naquela que seria a primeira grande revolução da minha vida.

Em São Paulo, eu morava numa cobertura do Morumbi, com um deck para a piscina que vivia dando vazamentos - e Zé Luís, pelo tamanho, era o único que conseguia passar pela abertura onde ficava a bomba, para realizar reparos. Volta e meia, chamava o Zé Luís.

- Você não pode sumir - eu dizia a ele. - Sem você, não sei o que faço.

Em 1998, eu andava bastante encrencado. Não conseguia terminar meu primeiro romance, travado por uma daquelas paralisias cerebrais que transformam a vida da gente numa crise só. Casado fazia seis anos, me separei. Era o editor da revista VIP, na Editora Abril - pedi demissão. Deixei a casa para minha ex-mulher. Fiquei com a roupa do corpo. Fiz uma revisão geral de vida. E concluí que precisava de ar.

Numa viagem de fim de semana, acabei parando nos altos do Serrano, levado por Tiãozinho, simpático dono de um bar, num jipe que subiu uma estrada então quase inacessível, principalmente na chuva, até o terreno coberto de mato, com uma tapera de dar dó. Porém, o que avistei, dali de cima, mexeu com meus olhos e o coração.

Eu não tinha emprego, nem casa em São Paulo. Tinha, porém, acabado de receber 20 mil reais das vendas de um livro, que tinha feito em parceria com o hoje falecido editor de moda Fernando de Barros - "Elegância". Tião queria 25. Eu disse que tinha 20 e pagava à vista. Fechamos negócio.

Eu continuava sem casa em São Paulo, sem emprego, sem mulher, e estava novamente sem um tostão. Mas ali se desenhava uma nova vida.

Dormi uma noite na tapera, entre aranhas e vidros quebrados. O encanamento não funcionava. Pensei no Zé Luís. Levei-o de São Paulo para me ajudar. Subimos a montanha no carro velho, comprado com o dinheiro da rescisão trabalhista, que substituíra meu belo veículo corporativo. Chegamos levantando uma nuvem de poeira com a patinação.

Quando entramos no terreno, ainda cheio de mato, abri os braços.

- Olha, Zé Luís. Você conheceu minha casa lá em São Paulo, minha vida, tudo. Troquei por isso aqui. Você acha que eu estou louco?

Zé Luís olhou a tapera, o mato, e depois o vale verde, rodeado de montanhas, que pelas manhãs se encobria num lençol de nuvens, deixando fora só os altos de serra. Do outro lado, no horizonte, a Pedra do Baú.

Respirou o ar. E disse:

- Olha, seu Thales, se o senhor está louco, queria ser louco como o senhor.

Conto essa história para dizer que voltei para cá, semana passada, passar parte do meu retiro no meio da pandemia que forçou o isolamento. Estou acostumado a isolamentos. Mas, aqui, como tantas vezes, sinto que não preciso de mais nada.

Desde que aqui cheguei pela primeira vez, muita coisa mudou. Terminei meu primeiro romance, Filhos da Terra, que precisava desse ar livre para sair, e duas dezenas de outros livros de ficção e não ficção. Passei também por outros casamentos. No sítio, apareceram uns outros paulistanos pela redondeza e tem calçamento até na frente.

A casa já não é mais minha - hoje é de minha irmã, Lara, que veio aqui e gostou tanto quanto eu. Estou na companhia de minha irmã, meus sobrinhos, cunhado e meu filho. Depois de doze anos acabei indo para outros lugares. E agora, outros dez anos depois, por razões que a razão desconhece, estou novamente aqui.

Respiro. Quantas vezes pintei, desenhei e descrevi esse cenário? Achei que tinha deixado este lugar, este meu "canto do mundo", como diria D.H. Lawrence, para sempre. Mas volta e meia acabo aqui, sempre em circunstâncias de recomeçar.

Sou muitas vidas e muitos recomeços. E ainda sinto que tenho muito por fazer. Olho adiante e, em vez de cansaço ou desânimo, recolho experiências como material de trabalho.

Não sou mais tão jovem, mas, quando jovem, já pensei que teria menos tempo pela frente do que acredito ter hoje. E sei que a luta me fortalece.

Invento uns versos parafraseando a Canção do Tamoio, de Gonçalves Dias, rabiscando o caderno em cima do joelho.

"Não chores, amigo
Não chores que a vida
Não vence, é vencida
E se parece perdida
Pode recomeçar

A vida é ganhada
Sonhando acordada
É fim e partida
Eterno perigo
É sempre lutar."

Não sei por onde anda Zé Luís, mas ainda sou meio louco. E preciso da loucura, para viver, e trabalhar.