segunda-feira, 23 de março de 2020

Uma plataforma para a reconstrução do Brasil


"Desde o seu começo, o Brasil é iludido com o próprio mito do paraíso tropical. A terra farta e benfazeja permitia ao índio e ao português recém-chegado não se preocupar com o amanhã, enquanto em outras terras gente endurecida e trabalhadora lidava com o frio, as intempéries e a escassez em geral. Os primeiros se tornaram os colonizados. Os segundos, os colonizadores.

A epidemia do vírus corona pode trazer algo de bom e novo ao Brasil: a consciência de que estamos sujeitos não apenas à exploração alheia, como a desgraças de verdade, que exigem uma resposta coletiva, em que todos podem e devem empenhar-se na busca pela solução. 

É certo que a pandemia deixará sequelas importantes na economia mundial. Países mais desenvolvidos, porém, já passaram por coisa muito pior, incluindo duas guerras mundiais. Aprenderam, no pior, que pode-se sair melhor do outro lado, depois de um esforço de reconstrução. 

A falta de familiaridade com a dificuldade ou de consciência da gravidade da crise fez o governo brasileiro pensar que medidas comuns, como um simples ajuste de contas do setor público e medidas liberais da economia, podiam tirar o Brasil da miséria em que se encontra. Pois essa ilusão desapareceu de vez agora que a crise se aprofunda com a paralisação da economia diante de um cataclisma mundial. 

O presidente Bolsonaro entrou numa fase de Dilmização. Confuso, anda obcecado por seus fantasmas, especialmente a perseguição da imprensa, e provavelmente abalado com as investigações que rondam sua família. Agarra-se ao poder como sua salvação. Não é a melhor forma de tomar decisões para o país. 

Precisamos pensar desde já na reconstrução do Brasil depois dessa crise. Não estamos acostumados, mas temos de elaborar um plano exequível e reto de reconstrução nacional a curto, médio e longo prazos. Isso significa um tempo de economia de guerra, para a retomada da produção. 

Esse plano não pode contemplar somente o setor financeiro, como especialmente o produtivo, com emprego de mão de obra maciça, começando pela construção civil. A produção e a renda têm de ser a prioridade. Além da tecnologia, da qual temos pouca, só o trabalho gera riqueza. Temos de ser, nesse aspecto, uma nova China. 

O Brasil precisa se colocar em movimento, sem achar que as coisas, como sempre, serão resolvidas sozinhas, ou num passe de mágica. Temos de abolir o DNA indígena que ainda há dentro de nós. Não adianta cair no paternalismo de sempre, esperando do chefe os presentes - e os resultados. 

Do operário ao capitão de indústria, teremos de arregaçar as mangas. Todas as grandes potências do mundo saíram ricas depois das mais catastróficas experiências de guerra. A guerra ou as crises profundas são o que nos obriga a melhorar, tirando a sociedade da letargia e da confusão. 

Mais do que de um remédio contra o corona, o Brasil precisa, democraticamente, e com a participação de todos, de uma direção.

quinta-feira, 19 de março de 2020

Um grande teste para a Humanidade

O calor humano: prova mais dura
Sábado passado, tive uns sintomas gripais. Garganta rascante, um pouco de moleza, peito meio atacado. Sem febre, porém.

Corona virus, pensei. Desde então, não tenho certeza de que tenho mesmo o bicho: exames são para pacientes mais graves, que exigem internação. Não iria a um hospital para atrapalhar quem realmente precisa.

Ainda assim, a vida mudou. No domingo, faltei à minha própria festa de aniversário, que iria celebrar com minha irmã Lara, também aniversariante. Primeiro pensamos em meu pai, que já está com mais idade, depois nas crianças. No fim, achamos melhor cancelar tudo. Recebi de Lara um pedaço do bolo de sorvete com bolacha Oreo, em casa.

Eu não me importo de ficar trancado em casa, de quarentena. Escrevo o dia inteiro e minha rotina não mudou muito, ao contrário de outras pessoas que precisam sair para trabalhar. E não tenho me sentido tão mal a ponto de achar que estou sofrendo. Seria cabotinice me fazer de vítima. Porém, o isolamento traz coisas muito duras.

Uma delas é não poder ver meu filho. Diz meu médico, dr Virgílio, que precisamos ficar isolados por 14 dias, desde o início dos sintomas. Falo com André pelo WhatsApp. É triste não poder estar perto, dar-lhe um beijo, ou um abraço.

Leio que na Itália, por conta do isolamento, vítimas da epidemia são enterradas sem sequer um velório ou a oportunidade de um último adeus aos parentes.

Me dou conta mais vivamente de quanto somos dependentes do calor das pessoas que amamos. Isso, sim, me faz muita falta.

Eu e André inventamos o abraço virtual. Com a câmera ligada, a gente bota o celular no peito, como se estivesse trazendo o outro pra junto. Ele dá risada. E dizemos tchau.

Eu já sou veterano de epidemias, que não são novidade nenhuma no mundo. Há nem tanto tempo, teve a do H1N1, que trazia preocupação, porque meu enteado, João, então adolescente, tem asma. Acabou pegando a gripe, felizmente sem consequências mais graves.

Quando eu era criança, na quinta série, lembro de ficar um tempo também sem aula, por conta de um surto de meningite. Houve uma extensa campanha de vacinação e a vida voltou ao normal.

Nenhuma epidemia, porém, foi tão importante, perigosa e mudou tanto o mundo quanto a da Aids. Posso dizer que tive sorte, porque, apesar de ser então bastante jovem, sempre fui de ter uma namorada só. Essa estabilidade provavelmente me salvou do destino de muitos da minha geração - entre eles, alguns amigos, parentes e conhecidos.

A Aids foi terrível porque, no começo, ninguém sabia da sua existência. O contágio era pelo sexo ou pelo sangue, algo mais restrito que epidemias espalhadas por via aérea como as gripes, mas, quando alguém se descobria doente, já estava marcado para morrer. Cazuza foi o símbolo dessa era, mas muita gente morreu assim.

A Aids mudou o mundo radicalmente. Levantou uma onda moralista e trouxe dias negros de discriminação contra os homossexuais, que eram as principais vítimas da doença.

Fez muita gente rever o comportamento. Por um longo tempo, instaurou o terror. Lembro de um amigo que entrou em casa certa noite, apavorado. Descobrira que uma garota com quem tivera uma noite de luxúria acabara de morrer da doença. Viveu desarvorado até receber o resultado do teste, felizmente negativo.

Eu mesmo fiz o exame. Abrir aquele envelope era como esperar de César o polegar, para cima ou para baixo.

O tratamento da Aids demorou a ser melhorado. Primeiro, procurou-se prolongar a vida dos pacientes. Surgiram os "coquetéis" de remédios.

Muitos ficavam enfraquecidos e morriam de doenças outras, chamadas de "oportunistas", que se instalavam por conta da queda de imunidade.

Pouco se fala hoje da Aids, em boa parte porque se conseguiu mantê-la sob certo controle, mas é uma das três doenças que mais matam no mundo, sendo a primeira a velhíssima tuberculose.

Estamos agora diante de outra epidemia em escala mundial. Exige cuidados e sacrifícios. Vai deprimir a economia, mas ela serve à vida humana, e não o contrário. A vida humana está acima do dinheiro. Sabemos que será duro, mas sobreviveremos.

Acredito que provaremos algumas coisas. Possuímos recursos que não existiam já nos anos do H1N1. Hoje, a economia gira em grande parte de forma virtual, o que nos torna menos dependentes do contato direto. A conscientização hoje é maior e a volta do cataclisma será mais rápida.

A pandemia pode ser também um remédio para uma sociedade globalmente estressada, tendendo para a cizânia. Hoje podemos enxergar melhor, acima das diferenças, que o destino de cada um de nós depende do trabalho e do comportamento harmonioso da coletividade.

Em vez de criar barreiras, estimular preconceitos e produzir discriminação, uma epidemia com esse alcance produz algo que anda em falta na sociedade contemporânea; união e solidariedade. Aquilo que define a própria noção da Humanidade. Só com ela poderemos continuar.