domingo, 11 de novembro de 2018

Freeman e o verdadeiro fim do racismo

Quando eu era moleque e jogava bola na rua, na Casa Verde, qualquer preto era "Pelé". "Passa a bola, Pelé!" Eu era o "Alemão". "Passa a bola, Alemão!" E ninguém ligava.

Hoje em dia tem movimento contra o racismo e todo tipo de discriminação ou exclusão social, mas o mundo nunca me pareceu tão racista e discriminatório quanto agora. Tem cota para isso e aquilo e, para mim, da gritaria vem mais discriminação sobre uma coisa que nem deveria existir.

É o que diz o Morgan Freeman, um homem livre até no nome, neste vídeo que achei ótimo. O Bolsonaro, por sinal, fala a mesma coisa que ele. Mas é o Bolsonaro. Já o Morgan Freeman, que é americano, preto, rico, famoso e elegante, pode fazer o mesmo discurso e ninguém critica.

Sou a favor da sociedade igualitária, radicalmente igualitária, o que significa que cor, credo, sexo não são discrimináveis por qualquer forma. Acho que a ideia de criar privilégios para essa ou aquela minoria em nome da inclusão não resolve nada. Igualdade se exerce, não se pede. Existe - e ponto final.

O mesmo vale para as mulheres e o feminismo. Em Israel, uma das sociedades mais igualitárias que eu conheço, as mulheres têm não os mesmos privilégios ou vantagens que o homem, e sim os mesmos deveres e obrigações. Servem, por exemplo, igualmente, o Exército. Como resultado, possuem a mesma liberdade - e o mesmo respeito.

Em Israel, as mulheres não se intimidam com uma cantada masculina. Nem reclamam. Muitas vezes tratam os homens como muitas mulheres acham que os homens as tratam na sociedade ocidental.

Numa relação entre iguais, o assédio muda de figura: sequer existe alguém já classificado previamente como vítima. A ideia de que a mulher está mais sujeita ao assédio, a um salário menor e outras injustiças, por ser mais fraca, nem passa pela cabeça dos israelitas - homens e mulheres. Elas são iguais. E ponto.

Eu já sofri assédio de mulheres que em determinada situação eram mais poderosas. Rejeitei, mesmo com a possibilidade de ser prejudicado, e nunca reclamei. Sim, isso acontece com homens também. Posso afirmar de cadeira que o homem branco também sofre discriminação. Mas ora, onde já se viu, um homem branco, macho-machista-chauvinista-dominador do mundo-explorador de tudo, reclamar de assédio?

Temos no Brasil uma sociedade diferente da de Israel, é claro. Nossa raiz portuguesa é essencialmente patriarcalista, vem do tempo em que o português se casava com a índia e o filho tinha de ter o sobrenome do pai para ser cidadão, e não gentio - um semiescravo.

No Século XVIII, porém, como mostro em meu mais recente livro, A Criação do Brasil, isso mudou bastante com a chegada dos espanhóis no período da União Ibérica. Os espanhóis tradicionalmente carregavam o sobrenome da mãe. O governador Salvador Correia de Sá, homem fundamental na história do Brasil e Portugal, sobrinho-neto de Mem de Sá por parte de pai, era espanhol, nascido em Cádiz - e levava o sobrenome da mãe, Benevides.

Israel é uma sociedade militarizada. Nada cria mais igualdade que o Exército  - todos os soldados são iguais, como anuncia o uniforme verde. Talvez seja por sua origem militar que Bolsonaro veja os iguais simplesmente como iguais, ou como soldados, ou simples cidadãos. É apresentado como um sujeito retrógrado, em relação à igualdade e ao tratamento das mulheres. Acho que lhe falta elegância, mas, no fundo, o que ele pensa e diz não difere, na essência, do discurso de Morgan Freeman. Bolsonaro defende, apenas, a igualdade, sem o privilégio - ou, como chamou, o "coitadismo".

Ninguém jamais verá um "mês do homem branco" ou um desfile de homens brancos na Avenida Paulista reclamando de assédio ou de seus direitos como homem branco. Parece absurdo. Qualquer outra coisa do gênero, no entanto, devia ser absurda também. Nenhum homem branco quer privilégio ou reserva de qualquer coisa, até porque a mesma sociedade opressora apontada por outros manda que o homem não reclame de nada, nunca.

O homem deve ser o que dá mais, o que se sacrifica pelos outros sem reclamar, e, se ganha alguma coisa, não é mais por mérito, e sim porque está explorando alguma vítima na sua condição de privilegiado histórico-social. Não importa o que faça, está pregada nele desde nascença a pecha do "macho dominante chauvinista".

Claro que há os cafajestes, os ignorantes, os transgressores. Há mulheres, gays, negros e amarelos assim também. Para eles, existe a vergonha, ou, na medida do crime, a lei. Porém, para os homens de verdade, que são a imensa maioria - pais de família, respeitadores das mulheres tanto quanto de quem quer que seja, que tentam obstinadamente ser bons pais, bons maridos, bons cidadãos -, o espetáculo do enxovalhamento do gênero masculino soa como algo meio absurdo. Parece que o homem não é mais cidadão, perdendo seu direito, inclusive, a falar qualquer coisa, a dar opinião, da mesma forma que todos.

Talvez seja tarde demais para voltar o tempo em que ser "Pelé" ou "Alemão" não dava em nada. (Pensando bem, ser "Alemão", na linguagem da rua, era mais pejorativo que ser "Pelé". Ser Pelé, além de preto, queria dizer "craque". E "alemão", além de louro, era ser meio perna de pau.)

Porém, levar a cor e o sexo como bandeiras políticas longe demais é aumentar a discriminação, não terminar com ela. Precisava aparecer o Morgan Freeman para dizer, "somos iguais, não preciso dessas coisas". Que seja ouvido e as coisas sejam realmente assim.

terça-feira, 6 de novembro de 2018

A crise do mercado do livro e o futuro da literatura


Nas últimas semanas, começaram a surgir as primeiras notícias mais concretas da queda anunciada do mercado editorial brasileiro, pelo menos da forma como o conhecemos.

A Livraria Cultura, segunda maior rede de livros do país, pediu concordata e entrou no período judicial em que precisa apresentar uma proposta de pagamento aos credores para não ser liquidada.

A Saraiva, que já vinha renegociando pagamentos com as editoras, depois de um período de inadimplência, cortou 20 da sua centena de lojas num processo de reestruturação que deve estar longe de terminar.

A Companhia das Letras, editora com um dos maiores catálogos do país, teve seu capital vendido para a Penguin Random House, que já era sócia minoritária e tem mais cacife para segurar as contas.

É o fim do livro? Não, é um novo começo. Entre as editoras, existe a tendência da concentração, para que as empresas possam ganhar com a chamada cauda longa - vendas de muitos títulos, agregadas, dão alguma receita. E aumenta a importância da publicação digital, ou da autopublicação, que deixa de ser a alternativa de quem foi rejeitado pelas editoras, para aos poucos tomar o lugar do mainstream.

Isso vale tanto para os livros de não ficção, aí incluída a autoajuda, que já tem grande força no livro digital, quanto na literatura. Ela, que assim como o cinema já teve seus arautos do apocalipse, não está acabando. Pelo contrário. Muda o processo de criação, de divulgação e comercialização, mas a literatura nunca foi tão importante e ativa quanto agora.

O romance sempre teve um papel fundamental no desenvolvimento humano. A literatura é a vanguarda das ideias, que são o começo da ação e, portanto, das grandes mudanças. Basta dar alguns exemplos do passado, como 1984, em que George Orwell já imaginava um mundo em que todos eram vigiados em tempo real. Ou Viagem à Lua, de Júlio Verne, que já previa no século XIX o disparo de um bólido tripulado ao satélite da Terra, para voltar com auxílio da gravidade lunar.

Tudo aquilo que se imagina hoje é o primeiro passo da realidade de amanhã. A literatura tem ainda o poder de penetrar na alma humana, formar o indivíduo, que nela pode recolhee a mais profunda e verdadeira fonte de ensinamentos: a experiência humana.

Em vez de perder com a crise do mercado editorial e do livro impresso, a literatura ganha força inaudita com o advento da internet. Ela permite que hoje qualquer um escreva em qualquer lugar do mundo - e seja lido.

Como atividade profissional, isso exige também uma adaptação aos novos tempos: a formação de redes de leitores e o uso de mecanismos de venda também virtuais. Mas isso não é o fim da literatura ou do livro. É, pelo contrário, sua renovação mais impactante desde Gutenberg.