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terça-feira, 14 de outubro de 2014

O jornalismo à beira de um ataque de nervos



A demissão do jornalista Chico Sá da Folha de S. Paulo, que o teria proibido de escrever uma coluna apoiando a candidatura da presidente Dilma Rousseff, é um bom exemplo de um certo desvairio em que se encontra o mundo da comunicação na era digital. E não é o único.

Sá, que foi meu contemporâneo na revista Veja, num tempo em que ela era o mais prestigiado veículo nacional de imprensa, junto com o jornalismo da TV Globo, é um amigo, um homem correto e, acima de tudo, um sujeito divertido e agradável. Porém, parece que esqueceu, talvez atordoado pelos novos tempos, de velhas e conhecidas regras, consagradas entre os profissionais de imprensa: a busca da notícia, a isenção e o apartidarismo.

O mesmo tendencismo saiu como uma nota estridente na carreira da jornalista Laura Capriglione, também ex-colega minha em Veja, ex-repórter da Folha de S. Paulo, que em uma coluna anunciou o funeral de Marina Silva, por sua decisão de apoiar Aécio Neves no segundo turno. Como se Marina não tivesse o direito de escolher, bem como seus eleitores. Repórter sempre correta, brilhante apuradora, Laura até pode desvencilhar-se das regras do jornalismo, já que não está abrigada por um veículo de imprensa tradicional, e do princípio elementar de respeito à liberdade alheia. Porém, como profissional, perde o capital mais precioso do jornalista: a credibilidade.

Existem princípios que, mesmo com a mudança do papel impresso para o virtual, continuam válidos como esteio da profissão. Um profissional de imprensa não pode professar uma preferência política, assim como um cronista esportivo não deveria colocar à vista sua preferência por algum clube. Um jornalista se manifesta politicamente por meio do voto, que é secreto, como um cidadão qualquer.

A era da internet tem sufocado o bom jornalismo, e, pior, os bons jornalistas, que vêm confundindo seu dever de bem informar com o mar de opiniões erráticas e tendenciosas sobre tudo, que se dá com a possibilidade da “autopublicação” no mundo virtual. Hoje há na web tantos donos da verdade que se torna mais claro do que nunca o fato de que não há verdade, há somente versões sobre tudo. Especialmente quando até os profissionais de comunicação deixam de respeitar princípios elementares e a ética da profissão, talvez contaminados ou em competição com o comportamento geral.

Os veículos de imprensa se encontram em profunda crise, derivada da falência do antigo sistema de propagação. Antes detentores dos meios de produção, agora os jornais disputam espaço com qualquer um. Hoje, é possível acessar tanto um jornal que antes tinha grande circulação quanto o blog de um desconhecido, já que são ambos apenas uma página na internet, capturáveis na pesquisa randômica dos mecanismos de busca. Porém, não são ou não podem ser coisas iguais. O jornalismo se enfraquece ainda mais ao perder aquele que na realidade é seu bem mais precioso: a credibilidade, construída com a excelência e a postura de seus profissionais.

As redações de jornais e revistas diminuíram e hoje resta ali praticamente apenas o volume morto da imprensa. Boa parte dos bons profissionais saiu, sobretudo pelo fato de que os melhores em geral ganhavam também os maiores salários. A crise da imprensa ainda não terminou. Ela ainda não é capaz de se sustentar apenas com assinaturas pelo meio digital. E, enquanto não se sustentar por meio exclusivamente de seus leitores, a imprensa não é livre. E, se não é livre, igualmente tem dificuldade de se manter isenta. Quem a fortalece é o leitor. E o leitor tem preferido atirar na imprensa, em vez de contribuir.

Nos últimos tempos, multiplicaram-se em corrente aqueles que resolveram transformar os veículos de imprensa em saco de pancada. São os mesmos que agora glorificam o pedido de demissão de Xico, como um herói picaresco, porém sem entender bem o que está acontecendo. Veículos tradicionais, como a própria Veja, são abalroados cotidianamente por campanhas raivosas movidas com ajuda das redes virtuais.

Por mais erros que um veículo de imprensa possa cometer, incluindo dar espaço também para blogueiros tendenciosos, as pessoas parecem ter se esquecido de que foi em grande parte a essa instituição agora desprezada que se pode hoje desfrutar de tamanha liberdade. E que, se os meios de produção foram renovados, os princípios do jornalismo, cujo objetivo é oferecer informação isenta e de qualidade, no limite das possibilidades, ainda não são praticados em outro lugar.

A internet parece ser não o lugar da informação bem apurada, equilibrada e isenta, que ouve sempre o outro lado, e sim um espaço em que quer ganhar aquele que simplesmente grita mais. Para obter esse efeito tornou-se normal ofender e propagar mentiras, falsificações e ameaças. A ideia de que no futuro o ambiente da informação será apenas um cruzamento de opiniões, versões e interesses em disputa, um vale tudo da comunicação, sugere o fim do jornalismo. Mas não será, porque a resultante desse embate de opiniões é zero. Dele, nada sai de construtivo.

A eleição presidencial é um bom exemplo dessa algaravia em que todos são donos da verdade e se julgam no direito de constranger quem tem opiniões politicamente diversas. Ninguém muda realmente de opinião, mas sob a bandeira da liberdade proporcionada pelo meio digital instalou-se um patrulhamento jamais visto, superior ao da própria ditadura militar. Os patrulheiros querem ser os donos das receitas que salvarão o mundo, mas são, eles próprios, o mal maior.

A condenação pública da moça que xingou o goleiro na TV, e teve sua casa queimada, num processo de radicalização jamais visto, que beira a histeria coletiva, lembra que os jornalistas não podem se juntar à massa. Devem continuar cumprindo seu papel de apurar a notícia e informar de forma isenta. Se não existe a verdade, essa é a melhor forma de pelo menos nos aproximarmos dela. Os patrões da imprensa continuam no seu papel, e os conflitos entre jornalistas e os pontos de vista das empresas em que trabalham não são novidade. No final, acabaram sendo sempre salutares para a criação de uma imprensa melhor. O que não se pode é jogar fora o que une ambos: a defesa, acima de tudo, do interesse do leitor, o interesse público, que para o jornalista deve estar acima dos interesses, opiniões e mesmo convicções individuais.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

O homem que queria saber tudo


Entre em uma sala de aula de uma faculdade de jornalismo, pergunte aos estudantes: quem já ouviu falar em Getúlio Bittencourt? E eles ficarão quietos.


O jornalista é como a notícia que ele publica: no dia seguinte, é página virada. Mas eu vou dizer alguma coisa sobre Getúlio Bittencourt, que eu conheci há mais de vinte anos, na redação da Gazeta Mercantil.


Getúlio pousara na Gazeta como uma estrela do jornalismo. Ganhara ainda mais prestígio com um prêmio Esso que lhe fora conferido por uma entrevista com o presidente João Figueiredo, homem avesso à imprensa, de cujas idéias ele fizera um impressionante retrato, celebrizado pela declaração do general-presidente de que ele preferia aos homens o cheiro dos cavalos.

O que pouca gente sabe é que Getúlio tinha sido protocolarmente proibido de gravar a conversa. Dono de uma memória prodigiosa, transcrevera a longa entrevista de cabeça. E, das páginas inteiras de jornal que rendera o encontro, nenhuma palavra foi contestada.

Nascido pária, Getúlio era autodidata. Vivia aprendendo e gastava a maior parte do ganhava com livros, de maneira obsessiva, até perdulária. Baixinho, de voz fina, com cabelinho pixaim, era uma figura que poucos levariam a sério à primeira vista, o que o ajudava a prestar atenção em tudo, principalmente em conversas alheias, sem ser notado. Em circunstâncias que reuniam muitos jornalistas em busca de notícias, estava sempre longe das aglomerações, conversando com uma fonte ao pé do ouvido. Era esse o seu estilo.

Uma atitude definia bem seu jornalismo. Quando um entrevistado lhe perguntava o que ele queria saber, respondia, simplesmente: “tudo”. Era um concorrente difícil, sobretudo para mim, repórter principiante, que na época da Gazeta apenas começava a disputar com ele diariamente o espaço da primeira página do jornal.

Getúlio não foi apenas jornalista, mas uma figura ambivalente, que como muitos outros repórteres políticos acabou sendo envolvida pelo mundo do poder. Aproximou-se do ex-presidente José Sarney, graças não apenas à sua inteligência e qualidades profissionais como pelo interesse comum nos mistérios infensos à Razão.
Cerebral, Getúlio estudava astrologia como um pequeno cientista, o que para ele não era uma contradição. Chegou a escrever um livro, No Azul do Céu Profundo, em que expunha mapas astrológicos de políticos célebres e estabelecia relações entre o zodíaco e a política. A empresa por meio da qual recebia seus rendimentos chamava-se "Júpiter", elemento do sistema solar ao qual associava o sucesso financeiro que ele, gastador compulsivo, jamais alcançou.

Como a crença muitas vezes é que move a realidade, a astrologia de Getúlio realizou proezas bem concretas. Por suas previsões, transmitidas a Tancredo Neves pelo deputado Thales Ramalho, teria sido modificado o horário de funcionamento do colégio eleitoral que elegeu o primeiro presidente civil do Brasil depois da ditadura militar, em janeiro de 1985.

Levado ao Planalto, Getúlio foi um jornalista que salvou um jornal. Por sua influência astrológico-corporativa no governo, saiu um empréstimo do Banco do Brasil à Gazeta Mercantil, então em dificuldades financeiras, que lhe valeria anos de sobrevivência - e um lugar para Getúlio como correspondente do jornal nos Estados Unidos, onde ficou por uma década, depois de encerrada a gestão Sarney, como se faz com um benfeitor que merece uma boa embaixada.

A vida é cruel quando atinge as pessoas onde está seu dom. Tira as mãos de um pianista, como fez com o hoje maestro João Carlos Martins, ou a voz de um locutor, como aconteceu com Osmar Santos. A vida parece feita para testar o ser humano no seu máximo. E deu a Getúlio um tumor no cérebro, que nele não era apenas o escritório, um local de trabalho, como um centro de recolhimento, um mundo próprio, muitas vezes tortuoso e obscuro, onde se pode dizer que funcionava também seu coração.

Faleceu Getúlio Bittencourt, com apenas 57 anos. Uma página do jornalismo brasileiro foi virada. Amanhã, serão outras as notícias do jornal. Mas fica alguma coisa para a história, que registra uma perda importante, sobretudo pela falta de alguém que sabia muito bem contá-la.