Dou uma rara paradinha no livro que estou escrevendo agora para comentar a biografia de #RobertoCivita, do jornalista #CarlosMaranhão, que acaba de ser publicada pela #CompanhiadasLetras - um livro muito importante pela figura que retrata, essencial na história da imprensa brasileira e da História do país numa época chave, que vai do final da ditadura à estabilização democrática. Vou lendo um trecho aqui e ali, fora de ordem, por diversão.
E, claro, comecei pelo pedacinho que me coube, e diz respeito ao que Maranhão chama de "a mais difícil" transição de comando na revista #Veja- um pedaço muito interessante não apenas da história da revista como marco de uma mudança na imprensa, da qual pude participar. E ele usa para isso uma pequena anedota que circulou na empresa naquela ocasião, segundo a qual Roberto Civita escolheu para dirigir a revista "dos Tales o menor" - uma referência a mim, que tenho 1,74, e meu caro amigo Tales Alvarenga, dez centímetros mais baixo.
E, claro, comecei pelo pedacinho que me coube, e diz respeito ao que Maranhão chama de "a mais difícil" transição de comando na revista #Veja- um pedaço muito interessante não apenas da história da revista como marco de uma mudança na imprensa, da qual pude participar. E ele usa para isso uma pequena anedota que circulou na empresa naquela ocasião, segundo a qual Roberto Civita escolheu para dirigir a revista "dos Tales o menor" - uma referência a mim, que tenho 1,74, e meu caro amigo Tales Alvarenga, dez centímetros mais baixo.
Roberto tinha grandes qualidades. Sua visão de negócios se misturava à sua ideia do que queria para o Brasil. O editor, para ele era um "homem de fé" - isto é, um sonhador. Dizia que o leitor é quem mandava na revista, que agia no seu interesse, que era, portanto, o do Brasil - e não de empresas ou interesses ocultos.
Separava, clmo se dizia, "Igreja e Estado": o editorial do comercial. Na revista americana Time, além de um jeito de escrever e editar uma revista semanal, com bastidores inéditos e mais profundidade em relação aos jornais, entendeu que a independência do veículo era essencial para sua credibilidade. Essa era a essência do negócio, que ele defendeu como ninguém.
Alem disso, tinha "panache". Desdenhava dos críticos. "A revista que fazemos é esta", dizia. "Quem não gosta, vá ler outra coisa." Ao pai de uma repórter que disse ter "vergonha" de dizer que ela trabalhava para VIP, numa época em que a revista apelava para o escândalo, respondeu: " imagine eu, que sou o dono dessa revista".
Eu mesmo experimentei aquel jeito dele de ironizar, mesmo quando elogiava, ou de elogiar, ironizando. A Armando Conde, amigo dele, que perguntou o que achava de mim, respondeu: "como jornalista, é um grande contador de história".
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Veja era a joia da coroa da Abril por várias razões. Quando entrei, estava em seu auge, com mais de 1 milhão de assinantes, o que era muito. Tratava-se do único veículo impresso de circulação nacional - os jornais tinham muita notícia local, que não interessavam a outros estados, e, quando chegavam, as notícias estavam velhas. O conteúdo de Veja era nacional, e menos perecível. A isso, Roberto juntou uma eficiente logística, com a melhor distribuidora de publicações em bancas (a Dinap) para todo o país e uma relação com seus donos que segregava seus concorrentes, de forma quase monopolista. Acreditava que concorrentes era para ser destruídos. Nisto era um Herodes da imprensa, por achar que tinha de matar no nascedouro qualquer produto nascente que pudesse mais tarde concorrer com o seu.
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Pouco do que escrevi acima transparece na biografia de Roberto. Ele tinha o preceito de que mesmo dos bons se devia apontar os erros - um dever de imprensa. E Maranhão teve diante de si uma tarefa por um lado ingrata. É muito difícil escrever um livro recheado de gente viva, entre as quais estão muitos amigos, incluindo eu. É complicado ser incisivo quando se pode ferir suscetibilidades. Como diz meu querido amigo Fernando Morais, um mestre da reportagem em livro, "escrever é fazer inimigos".
Maranhão tem uma qualidade na qual é insuperável: é um verdadeiro lorde, perfeccionista e diplomata, que consegue ir contornando esses perigos sem fugir ao assunto. Por muiuo tempo, foi editor da Vejinha, o suplemento local da revista em São Paulo, que ficava em outra redação, em outto andar, distante da revista nacional. Algo que conheci de dentro.
Minha primeira passagem por Veja, entre 1986 e 1991, foi muito intensa. Nesse tempo, passei de um eficiente repórter de economia, treinado nas fileiras da então venerável Gazeta Mercantil, a repórter, depois subeditor de economia e por fim editor de Assuntos Nacionais (Brasil) da revista. Comecei em Veja na redação mais brilhante da revista e dal qual já participei, com José Roberto Guzzo, Elio Gaspari, Dorrit Arazim e editores que teriam papel importante, como Mario Sergio Conti, editor de variedades, e Eurípedes Alcântara, então editor de geral.
Foi para mim uma universidade. Lá desenvolvi a habilidade de ir mais fundo nas histórias, aperfeiçoar o texto e, conforme a grande máxima do Roberto, "transformar o importante em interessante". Ganhamos muitos prêmios e tive o prazer e o privilégio de, no cargo de editor da seção de política mais influente do país na época, participar da cobertura da primeira eleição democrática para presidente em 30 anos: o fim da ditadura militar.
Nós nos sentiamos vigilantes do país, decidindo seu rumo, não apenas na reportagem, como nas madrugadas adentro, nas quais escrevíamos enquanto todos dormiam. Para a revista chegar no sábado à tarde nas bancas e na casadas assinantes, varávamos a noite: na quinta, eu saía do trabalho às cinco da manhã de sexta, voltava às 11h da mesma manhã de sexta, e começava outra jornada que só terminava na manhã de sábado. Chegava em casa às vezes às 11h da manhã e, quando acordava, à tarde, estava quebrado. Na segunda-feira, tinha de estar no trabalho às 10 da manhã, para a reunião de pauta, sempre às 11h.
Era um regime de trabalho insano, que só suportavamos pela sensação de estar mudando o Brasil e o mundo. E estávamos mesmo, martelando a ideia do processo de redemocratização, de estabilização econômica, e das liberdades em geral, da expressão até a econômica. Às vezes, cansados ou diante de temas difíceis, era difícil escrever, o que criava uma certa fraternidade entre nós jornalistas, que compartilhavam até uma linguagem própria. Quem demorava para escrever, com dificuldade, estava "rolando da lama"; uma boa matéria ficava "do grande caralho"; ao tentar explicar cimo se queria o texto, mimetizávamos um maneirismo de Elio Gaspari, que unia o dedo indicador ao polegar e assim puxava o ar, de baixo para cima, como se estivesse tirando uma ideia do nada.
Eluo era mestre nas imagens e no jornalismo de Veja: enquanto Guzzo era o esteio, o fechador, e cuidava da economia, ele, apesar de ser o segundo em comando. Era o melhor repórter, o jornalista atilado e brilhante, que vinha com grandes ideias. Para Elio, o edifício sede da Fiesp na Paulista era um "trapézio negro"; quando surgiu a AIDS, escreveu que a chance de contrair a doença então fatal em uma relação heterossexual nos Estados Unidos, onde já havia essa estatística, era a mesma de ser atingido por um raio. Em seguida, dizia quantos americanos eram atingidas por raios todo ano - e não era tão pouca gente quanto se imaginava.
A reportagem visava o insight do que estava acontecendo e o bastidor das notícias, que só Veja trazia; no jornal, o leitor atingia a notícia; em Veja, ele a entendia. Isso só era possível dentro de um esforço coletivo. O repórter que apurava a notícia escrevia um "relatório". Alguém da redação de Sao Paulo juntava relatórios das sucursais à sua própria apuração e escrevua o texto. Este passava pelo subeditor, depois pelo editor, e ainda pelo editor executivo, no caso das reportagens mais importantes, e do diretor adjunto (Elio) ou do diretor de redação (Guzzo), no caso da capa.
Ao final, esse processo, pelo qual o texto final passava por várias pessoas, que agregaram cada uma algo, era o que garantia a qualidade final. Era também a razão pela qual, nessa fase, nenhuma reportagem era assinada, com exceção da entrevista- a "amarela", referência à cor do papel, que a diferenciava do resto. O conteúdo de Veja era assinado pela própria revista, e não um autor. Raramente, por ter um suporte só, ou como uma espécie de prêmio, Guzzo mandava alguém assinar o que escrevia.
Nesse período, entre outras coisas, descobri que Roberto, que adaptou todo esse sistema da Time para o Bradil, pouco ou nada interferia no trabalho, exceto pela reunião que tinha com os diretores, uma vez por semana, dia em que doscutiam a capa e temas mais sensíveis. Em todo o tempo em que fui editor de Assuntos Nacionais, posição-chave na revista, por fechar a seção mais importante, ele me chamou uma única vez. Pediu para acompanhá-lo numa visita à Câmara dos deputados em São Paulo, solicitada pelos parlamentares, que queriam mais cobertura da revista em assuntos paulistas.
Era uma reivindicação paroquial: os deputados queriam mais cobertura da política paulista na revista. Durante um almoço, em que sentei do lado oposto ao dele na mesa, ele a certa altura levantou e me pediu que eu (eu!) explicasse aos parlamentares como Veja funcionava. Eu disse que Veja rra nacional - e, mesmo assim, por coincidência eu acabara de fazer uma reportagem sobre a política paulista. Saiu todo mundo satisfeito, incluindo Roberto. Já eu, que sabia como eram perigosos aqueles testes dele, respirei aliviado.
1989 foi um ano estafante, que fechou todo aquele longo esforço. Gerenciei em Veja a cobertura da primeira eleição presidencial gial em 30 anos, coroamento de todo nosso trabalho- por ela, ganhei com minha equipe o Prêmio Esso de Jornalismo daquele ano. Foi durissimo, porque, além de fechar minha seção super dilatada toda semana, fui encarregado de cobrir pessoalmente a campanha de Lula, que passou a maior parte do segundo turno como líder nas pesquisas. O perfil que escrevi de Lula chegou a ser diagramação, à espera do resultado das urnas. Ganhou Collor - e o trabalho acabou engavetado
Foram grandes momentos. Fui o único a entrevistar Lula com exclusividade, num carro em alta velocidade, quando voltava de um comício em Guarulhos, onde tinha sido atingido na cabeça por um ovo, até São Caetano. Perguntei-lhe se não considerava um milagre um ex-tirneiho mecânico se tornar presidente. Lula me deu uma resposta que se tornaria proverbial: disse que, para ele, a distância entre ser o que era - o pária de Garanhus - para torneiro mecânico era muito maior que a do torneiro para presidente. Na sua cabeça, o grande salto tinha sido sair do nada para um posto com carteira assinada: um trabalho qualificado, que lhe dava avesso a casa, financiamento, escola para os filhos. Era essa a perspectiva que parecia elementar, e que ele queria oferecer aos brasileiros.
Foi bom, mas me acabei. Na campanha, eu trabalhava de madrugada e depois de duas horas de sono já estava tomando um avião no sábado para seguir Lula, às vezes do outro lado do país. Voltava para fechar minha seção, madrugadas adentro. Fazia quatro anos que virava e desvirava noites: era como ir para o Japão toda semana. Aos 25 anos, eu era muito jovem para tamanha responsabilidade e aquilo pesava. Via meus amigos se divertindo enquanto eu virava madrugadas escrevendo. Foi um período missionário, muito duro fisicamente. "Brasil" jamais voltaria a ter tantas páginas em Veja. Eu gostava daquilo, mas era realmente desgastante. E eu já flertava com a ideia de ficar apenas escrevendo livros. Em 1991, esgotado, resolvi tirar mais do que férias. Pedi demissão.
O editor executivo Paulo Moreira Leite, com quem eu trabalhava diretamente, chegou a me oferecer a correspondência da revista em Paris, para que eu ficasse. Agradeci, mas disse não. Gostaria de ir a Paris, mas não conseguia mais trabalhar.
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Da segunda vez, foi diferente. Depois de voltar do meu período sabático, e descobrir que escrever livro não era tão fácil assim, fui editor senior no Estado de S. Paulo e, a convite de Antonio Machado, editei durante seis anos a revista VIP, então um suplemento de Exame. Era um emprego divertido, em que eu precisava viajar para lugares maravilhosos, comer e beber do melhor. A revista ia muito bem, tanto que foi separada de Exame para se tornar independente. Mas eu passei a me subordinar a outras pessoas e estava um pouco cansado de publicações de estilo de vida. Queria fazer hard news novamente.
Fui pedir emprego a Veja. Podia ter falado com Mario Sergio Conti, que era o diretor de redação, com quem ja havia trabalhado diretamente. Mas preferi procurar Tales. Além do nome, tínhamos outras coisas em comum. Eu trabalhara com ele num período difícil. Guzzo, que cuidava pessoalmente da seção de economia, tinha saído para reformular Exame. Não havia editor de economia, pois Antonio Machado também tinha ido para a revista irmã. Eu, como subeditor, por algum tempo fechei a seção sozinho, com 24 anos de idade. E Tales ficou encarregado por Mario Sergio de supervisionar aquela área.
Na convivência, nos demos muito bem. Uma parte, é verdade, foi por causa do nome - não havia como ele me ignorar. "Se não mudar de nome, muda de comportamento", brincava ele. Guzzo dizia que éramos homônimos homófonos, e que eu tinha um "H" a mais que ele. "Mas é uma letra muda", acrescentava. Tales ria. Era autoconfiante demais para ser ciumento.
Eu o ajudei, com o que sabia de economia, que não era a sua praia, enquanto ele tomava aulas às sextas-feiras com Delfim Netto. E nós nos dávamos bem. Eu gostava dele por algumas boas razões. Não tinha problema algum de dizer que não sabia algo. Era duro, mas justo. Reconhecia o trabalho alheio. E fazia bem o que eu admirava: antes de mais nada, era um fechador.
No jargão do jornalismo, o fechador é aquele sujeito que transforma todo o conteúdo desorganizadamente recebido de repórteres e fotógrafos e o transforma em algo publicável. Tales era, mais que fechador, um grande editor. Quando fui promovido a editor de Assuntos Nacionais, seção abandonada numa madrugada estafante por Mario Rosa, que eu fechei no lugar dele em regime de emergência, eu o ajudei a formar quadros para me substituir, indicando dois jornalistas que ele passou a tratar com carinho especial: Antenor Nascimento, que veio da Istoé, e Ricardo Galuppo, cujo texto eu apreciava, quando me enviava relatórios da sucursal de Belo Horizonte.
Tales foi conversar com Mario Sergio. Tinha o projeto de escrever reportagens de fundo sobre personagens da economia e, como eu disse que queria ser apenas repórter, sem o ônus da edição, que havia me deixado alquebrado anos antes, achava que eu me encaixaria naquilo. Ou criou aquela função apenas para me ter de volta - não sei. Mario Sergio concordou, mas exigiu que eu, que tinha cargo de editor executivo na empresa, ficasse três meses recebendo como frila, de certa forma me punindo, para que eu voltasse "por baixo": burlava a legislação trabalhista, para me contratar como repórter, um cargo menor, com um salário menor.
Fui pedir emprego a Veja. Podia ter falado com Mario Sergio Conti, que era o diretor de redação, com quem ja havia trabalhado diretamente. Mas preferi procurar Tales. Além do nome, tínhamos outras coisas em comum. Eu trabalhara com ele num período difícil. Guzzo, que cuidava pessoalmente da seção de economia, tinha saído para reformular Exame. Não havia editor de economia, pois Antonio Machado também tinha ido para a revista irmã. Eu, como subeditor, por algum tempo fechei a seção sozinho, com 24 anos de idade. E Tales ficou encarregado por Mario Sergio de supervisionar aquela área.
Na convivência, nos demos muito bem. Uma parte, é verdade, foi por causa do nome - não havia como ele me ignorar. "Se não mudar de nome, muda de comportamento", brincava ele. Guzzo dizia que éramos homônimos homófonos, e que eu tinha um "H" a mais que ele. "Mas é uma letra muda", acrescentava. Tales ria. Era autoconfiante demais para ser ciumento.
Eu o ajudei, com o que sabia de economia, que não era a sua praia, enquanto ele tomava aulas às sextas-feiras com Delfim Netto. E nós nos dávamos bem. Eu gostava dele por algumas boas razões. Não tinha problema algum de dizer que não sabia algo. Era duro, mas justo. Reconhecia o trabalho alheio. E fazia bem o que eu admirava: antes de mais nada, era um fechador.
No jargão do jornalismo, o fechador é aquele sujeito que transforma todo o conteúdo desorganizadamente recebido de repórteres e fotógrafos e o transforma em algo publicável. Tales era, mais que fechador, um grande editor. Quando fui promovido a editor de Assuntos Nacionais, seção abandonada numa madrugada estafante por Mario Rosa, que eu fechei no lugar dele em regime de emergência, eu o ajudei a formar quadros para me substituir, indicando dois jornalistas que ele passou a tratar com carinho especial: Antenor Nascimento, que veio da Istoé, e Ricardo Galuppo, cujo texto eu apreciava, quando me enviava relatórios da sucursal de Belo Horizonte.
Tales foi conversar com Mario Sergio. Tinha o projeto de escrever reportagens de fundo sobre personagens da economia e, como eu disse que queria ser apenas repórter, sem o ônus da edição, que havia me deixado alquebrado anos antes, achava que eu me encaixaria naquilo. Ou criou aquela função apenas para me ter de volta - não sei. Mario Sergio concordou, mas exigiu que eu, que tinha cargo de editor executivo na empresa, ficasse três meses recebendo como frila, de certa forma me punindo, para que eu voltasse "por baixo": burlava a legislação trabalhista, para me contratar como repórter, um cargo menor, com um salário menor.
Eu pensava que estava justo, pous teria menos trabalho, ou que logo recuperaria meu salário e posição anteriores. Concordei. Durante um curto período, fui repórter especial de Veja. Porém, certo dia, ao entrar na sala de Mario Sergio, encontrei-o com Tales, ambos de semblante carregado. Ali, Mario me comunicou que estava de saída. E que Roberto cogitava colocar no seu lugar o jornalista Paulo Nogueira, que conhecíamos da própria Veja.
Havia uma resistência muito grande ao nome de Nogueira dentro da redação. No livro, Maranhão diz que outros nomes foram consultados, como Roberto Pompeu de Toledo, mas para Tales, que havia trabalhado com Nogueira na Vejinha São Paulo, onde tinha sido seu chefe, aquela era a grande preocupação.
A reação da redação ao nome de Nogueira foi das piores que se pode imaginar. Paulo Moreira, então redator-chefe, juntou-se ao coro dos descontentes. Os editores executivos da revista se opunham. Não posso dizer como foi a conversa com Civita, mas estou certo de que o nome de Nogueira, indicado por Guzzo, não vingou porque toda a cúpula da redação de Veja se declarou praticamente demissionária.
Esse é um dos pontos sobre essa delicada passagem na biografia de Roberto em que Maranhão andou sobre brasas. Ele afirma no livro que a preocupação de Roberto era com a chegada de Época, a revista semanal anunciada pela editora Globo para ser sua principal concorrente. Porém, acredito que Roberto queria também retomar o controle da redação. Mario Sergio, um homem brilhante, era também temperamental. Com ele, talvez Roberto tivesse mais dificuldade de impor suas ideias na revista. E mudá-la, para enfrentar a possível concorrência. Ele precisava de um diretor de redação politicamente mais fraco, intelectualmente menos complicado e capaz de manter a sintonia com a vontade do leitor, mais do que com suas próprias ideias.
Não sei como foi a conversa de Tales e Roberto, mas estou certo de que o bloqueio da redação foi decisivo para derrubar o nome de Nogueira. Como Tales me confidenciou mais tarde, Roberto concordou em colocá-lo no lugar de Mario Sérgio. Porém, lhe deu um período previamente acertado de três anos para mostrar resultados. Talvez porque ele mesmo, Roberto, se achasse na falta de ideias. Se a "redação" acreditava que podia resolver a coisa sozinha, teria sua oportunidade.
Entrei na sala do Tales para a nossa conversa diária e o encontrei mais preocupado do que nunca.
- Mas você não conseguiu o cargo que queria?
- Sim - disse ele -, mas o problema começa agora: o que fazer?
- Mas qual é dificuldade?
- A dificuldade é que a gente não pode falar mal do Fernando Henrique. E sabemos que revista só cresce fazendo denúncia.
Entendi por aí que aquilo tinha sido parte da conversa de Tales com Roberto: a condição de crescer a revista, sem desancar o governo. Naquela fase, o Brasil entrava num período florescente. O controle da inflação, depois de anos a fio de pesadelo puro, era visto como a salvação nacional. Fernando Henrique tinha sido eleito por conta do plano de estabilização, o Real, e era popular. Todo mundo, inclusive Roberto, o considerava intocável. Ninguém queria desetabilizar o governo num momento em que o país rumava afinal para a tranquilidade.
Foi aí que eu disse a frase que está no livro. Tendo voltado para revista fazia pouco tempo, numa publicação sem política e de muito sucesso, eu tinha uma outra visão sobre o público leitor, que apenas começava a viajar com cartão de crédito internacional e a comprar carros importados. Afirmei a Tales que a política já não era importante. Que tudo ali estava meio resolvido e as pessoas estavam mais interessadas em si mesmas, como se via pelo sucesso dos livros de autoajuda, naquele tempo vendidos aos milhões de exemplares. E sugeri que o crescimento da revista poderia ser por esse caminho.
Passaram-se dois dias. Daquela vez, foi Tales que mandou me chamar, pela secretária.
- Ok, dr. autoajuda - disse ele. - Você deu a ideia, você que vai fazer.
Assim eu, que tinha voltado a Veja apenas para escrever minhas reportagens, acabei assumindo uma editoria que não tinha nome, uma espécie de Geral II, criada por Tales para executar ideias de crescimento da revista. Uma dessas ideias, que era dele mesmo, além de fazer textos mais curtos para aumentar o índice de leitura, era fazer uma cobertura mais ampla do Brasil. Subiu o número de sucursais de nove para 13. Não sei se chegou a discutir com Roberto a ideia de fechar a sucursal de Brasília, como está no livro de Maranhão. Para mim, como aconteceu de fato, dizia que queria aumentar.
Abrimos sucursais em cidades como Belém e Fortaleza. Ao mesmo tempo, passei a escrever reportagens sobre qualquer tipo de assunto que achava ser do interesse pessoal do leitor na época. Fizemos uma capa sobre o novo parque africano na Disney. Outra sobre "O caos aéreo", uma confusão nos aeroportos brasileiros. Escrevi uma reportagem sobre o cérebro e a memória ("O poder da mente") que entrou para a lista das 30 mais vendidas da história da revista - à frente dela estavam apenas reportagens com denúncias de corrupção e desastres aéreos.
Naquela época, quem dirigia a seção de geral em Veja era Laura Capriglione, brilhante jornalista, que fazia um grande trabalho. Foi sob sua batuta que a repórter Thaís Oyama, de Veja, cujo nome Maranhão não menciona no livro, entrou no presídio disfarçada e obteve do chamado Maníaco do Parque a célebre frase: "Fui eu".
É verdade, como diz Maranhão, que demorou a sair a primeira capa sobre Fernando Henrique. Porém, essa não foi bem a primeira capa sobre política na gestão de Tales, como ele afirma. Foi dele mesmo, na habitual reunião de pauta das segundas-feiras, depois de consultar todos os editores, quem mandou fazer uma reportagem sobre Sérgio Naya, deputado federal, dono da construtora cujo prédio acabara de desabar.
Não era assunto da minha área, mas Tales mandou me chamar na sexta-feira e me fez reunir todos os relatórios e escrever a matéria. Na minhas mãos, o que seria apenas a notícia de um acidente virou também uma reportagem política, ou mais: falava sobre o descaso da elite brasileira, representada por um empresário que também era deputado, símbolo de qual era o maior problema nacional. Não tínhamos falado mal de Fernando Henrique, mas achávamos um jeito de alavancar as vendas com escândalos políticos. E defender a classe média consumidora, nosso público leitor.
Aos poucos, meu relacionamento com Tales se desgastou. Eu tinha aceitado um salário menor por menos trabalho e acabava trucidado por uma montanha de tarefas, sem recuperar meu salário anterior na própria editora Abril. Reclamei - e ele se aborreceu. Para se livrar de mim, ou me colocar de castigo, fez com que eu ficasse subordinado ao editor-executivo Laurentino Gomes, deixando de responder a ele diretamente. Foi um bom período de convivência com Laurentino, de quem me tornei amigo e admirador. Mas eu não estava satisfeito. Aos poucos, Tales foi tirando as coisas que me dera: as sucursais, que passaram a ser geridas pela jornalista Flavia Varella, e mesmo as seções da revista. E não falou mais de salário.
Ele me provocava. Numa das reuniões de pauta, diante de todos os editores, Tales, que era conhecido por gostar de causar embaraços aos subordinados na frente dos outros, declarou, na minha vez de dar sugestões de pauta: "Agora vamos ouvir o Guaracy, que veio me dizer o que fazer no meu emprego". Como se ele mesmo não tivesse perguntado minha opinião, nem se beneficiado com ela. Por aqueles dias, recebi um convite de emprego onde iria ganhar o dobro. Entrei na sala dele e comuniquei minha demissão.
Levou algum tempo para falarmos novamente. Com o tempo, o aborrecimento passou e voltamos a conversar. Eu o encontrei num hotel em Campos do Jordão, num seminário de intelectuais para discutir o futuro do Brasil. Jantamos, rimos, contamos velhas histórias. Ele já deixara a direção de Veja, mas mantinha uma coluna na revista, assim como em Exame. Estava mais leve, assim como eu. No ambiente de pressão em que se vivia em Veja, ninguém era normal. Eu entendia isso e o perdoei. E foi muito oportuno, porque eu ficaria muito mal sem tê-lo feito, já que Tales faleceu precocemente logo depois.
Com todas as medidas que eu ajudei a implementar, como toda a redação de Veja, Tales conseguiu obter o resultado esperado por Roberto. A revista Época veio, mas não incomodou - Veja cresceu, em vez de perder leitores. Maranhão não conta no livro quem fez a frase de que o escolhido por Roberto para dirigir Veja era "dos Tales, o menor". (Eu desconfio). Mas uma coisa eu sei: pelo que Roberto fez, e também pelo que deixou de fazer e permitiu fazer, era, dos editores, o maior.
Havia uma resistência muito grande ao nome de Nogueira dentro da redação. No livro, Maranhão diz que outros nomes foram consultados, como Roberto Pompeu de Toledo, mas para Tales, que havia trabalhado com Nogueira na Vejinha São Paulo, onde tinha sido seu chefe, aquela era a grande preocupação.
A reação da redação ao nome de Nogueira foi das piores que se pode imaginar. Paulo Moreira, então redator-chefe, juntou-se ao coro dos descontentes. Os editores executivos da revista se opunham. Não posso dizer como foi a conversa com Civita, mas estou certo de que o nome de Nogueira, indicado por Guzzo, não vingou porque toda a cúpula da redação de Veja se declarou praticamente demissionária.
Esse é um dos pontos sobre essa delicada passagem na biografia de Roberto em que Maranhão andou sobre brasas. Ele afirma no livro que a preocupação de Roberto era com a chegada de Época, a revista semanal anunciada pela editora Globo para ser sua principal concorrente. Porém, acredito que Roberto queria também retomar o controle da redação. Mario Sergio, um homem brilhante, era também temperamental. Com ele, talvez Roberto tivesse mais dificuldade de impor suas ideias na revista. E mudá-la, para enfrentar a possível concorrência. Ele precisava de um diretor de redação politicamente mais fraco, intelectualmente menos complicado e capaz de manter a sintonia com a vontade do leitor, mais do que com suas próprias ideias.
Não sei como foi a conversa de Tales e Roberto, mas estou certo de que o bloqueio da redação foi decisivo para derrubar o nome de Nogueira. Como Tales me confidenciou mais tarde, Roberto concordou em colocá-lo no lugar de Mario Sérgio. Porém, lhe deu um período previamente acertado de três anos para mostrar resultados. Talvez porque ele mesmo, Roberto, se achasse na falta de ideias. Se a "redação" acreditava que podia resolver a coisa sozinha, teria sua oportunidade.
Entrei na sala do Tales para a nossa conversa diária e o encontrei mais preocupado do que nunca.
- Mas você não conseguiu o cargo que queria?
- Sim - disse ele -, mas o problema começa agora: o que fazer?
- Mas qual é dificuldade?
- A dificuldade é que a gente não pode falar mal do Fernando Henrique. E sabemos que revista só cresce fazendo denúncia.
Entendi por aí que aquilo tinha sido parte da conversa de Tales com Roberto: a condição de crescer a revista, sem desancar o governo. Naquela fase, o Brasil entrava num período florescente. O controle da inflação, depois de anos a fio de pesadelo puro, era visto como a salvação nacional. Fernando Henrique tinha sido eleito por conta do plano de estabilização, o Real, e era popular. Todo mundo, inclusive Roberto, o considerava intocável. Ninguém queria desetabilizar o governo num momento em que o país rumava afinal para a tranquilidade.
Foi aí que eu disse a frase que está no livro. Tendo voltado para revista fazia pouco tempo, numa publicação sem política e de muito sucesso, eu tinha uma outra visão sobre o público leitor, que apenas começava a viajar com cartão de crédito internacional e a comprar carros importados. Afirmei a Tales que a política já não era importante. Que tudo ali estava meio resolvido e as pessoas estavam mais interessadas em si mesmas, como se via pelo sucesso dos livros de autoajuda, naquele tempo vendidos aos milhões de exemplares. E sugeri que o crescimento da revista poderia ser por esse caminho.
Passaram-se dois dias. Daquela vez, foi Tales que mandou me chamar, pela secretária.
- Ok, dr. autoajuda - disse ele. - Você deu a ideia, você que vai fazer.
Assim eu, que tinha voltado a Veja apenas para escrever minhas reportagens, acabei assumindo uma editoria que não tinha nome, uma espécie de Geral II, criada por Tales para executar ideias de crescimento da revista. Uma dessas ideias, que era dele mesmo, além de fazer textos mais curtos para aumentar o índice de leitura, era fazer uma cobertura mais ampla do Brasil. Subiu o número de sucursais de nove para 13. Não sei se chegou a discutir com Roberto a ideia de fechar a sucursal de Brasília, como está no livro de Maranhão. Para mim, como aconteceu de fato, dizia que queria aumentar.
Abrimos sucursais em cidades como Belém e Fortaleza. Ao mesmo tempo, passei a escrever reportagens sobre qualquer tipo de assunto que achava ser do interesse pessoal do leitor na época. Fizemos uma capa sobre o novo parque africano na Disney. Outra sobre "O caos aéreo", uma confusão nos aeroportos brasileiros. Escrevi uma reportagem sobre o cérebro e a memória ("O poder da mente") que entrou para a lista das 30 mais vendidas da história da revista - à frente dela estavam apenas reportagens com denúncias de corrupção e desastres aéreos.
Naquela época, quem dirigia a seção de geral em Veja era Laura Capriglione, brilhante jornalista, que fazia um grande trabalho. Foi sob sua batuta que a repórter Thaís Oyama, de Veja, cujo nome Maranhão não menciona no livro, entrou no presídio disfarçada e obteve do chamado Maníaco do Parque a célebre frase: "Fui eu".
É verdade, como diz Maranhão, que demorou a sair a primeira capa sobre Fernando Henrique. Porém, essa não foi bem a primeira capa sobre política na gestão de Tales, como ele afirma. Foi dele mesmo, na habitual reunião de pauta das segundas-feiras, depois de consultar todos os editores, quem mandou fazer uma reportagem sobre Sérgio Naya, deputado federal, dono da construtora cujo prédio acabara de desabar.
Não era assunto da minha área, mas Tales mandou me chamar na sexta-feira e me fez reunir todos os relatórios e escrever a matéria. Na minhas mãos, o que seria apenas a notícia de um acidente virou também uma reportagem política, ou mais: falava sobre o descaso da elite brasileira, representada por um empresário que também era deputado, símbolo de qual era o maior problema nacional. Não tínhamos falado mal de Fernando Henrique, mas achávamos um jeito de alavancar as vendas com escândalos políticos. E defender a classe média consumidora, nosso público leitor.
Aos poucos, meu relacionamento com Tales se desgastou. Eu tinha aceitado um salário menor por menos trabalho e acabava trucidado por uma montanha de tarefas, sem recuperar meu salário anterior na própria editora Abril. Reclamei - e ele se aborreceu. Para se livrar de mim, ou me colocar de castigo, fez com que eu ficasse subordinado ao editor-executivo Laurentino Gomes, deixando de responder a ele diretamente. Foi um bom período de convivência com Laurentino, de quem me tornei amigo e admirador. Mas eu não estava satisfeito. Aos poucos, Tales foi tirando as coisas que me dera: as sucursais, que passaram a ser geridas pela jornalista Flavia Varella, e mesmo as seções da revista. E não falou mais de salário.
Ele me provocava. Numa das reuniões de pauta, diante de todos os editores, Tales, que era conhecido por gostar de causar embaraços aos subordinados na frente dos outros, declarou, na minha vez de dar sugestões de pauta: "Agora vamos ouvir o Guaracy, que veio me dizer o que fazer no meu emprego". Como se ele mesmo não tivesse perguntado minha opinião, nem se beneficiado com ela. Por aqueles dias, recebi um convite de emprego onde iria ganhar o dobro. Entrei na sala dele e comuniquei minha demissão.
Levou algum tempo para falarmos novamente. Com o tempo, o aborrecimento passou e voltamos a conversar. Eu o encontrei num hotel em Campos do Jordão, num seminário de intelectuais para discutir o futuro do Brasil. Jantamos, rimos, contamos velhas histórias. Ele já deixara a direção de Veja, mas mantinha uma coluna na revista, assim como em Exame. Estava mais leve, assim como eu. No ambiente de pressão em que se vivia em Veja, ninguém era normal. Eu entendia isso e o perdoei. E foi muito oportuno, porque eu ficaria muito mal sem tê-lo feito, já que Tales faleceu precocemente logo depois.
Com todas as medidas que eu ajudei a implementar, como toda a redação de Veja, Tales conseguiu obter o resultado esperado por Roberto. A revista Época veio, mas não incomodou - Veja cresceu, em vez de perder leitores. Maranhão não conta no livro quem fez a frase de que o escolhido por Roberto para dirigir Veja era "dos Tales, o menor". (Eu desconfio). Mas uma coisa eu sei: pelo que Roberto fez, e também pelo que deixou de fazer e permitiu fazer, era, dos editores, o maior.