Não é a primeira vez na história que acaba um ciclo democrático: Platão, o grande pensador grego, já defendia uma ditadura de filósofos, pessoas capazes de governar com sabedoria, uma vez que as decisões tomadas de forma coletiva pela democracia ateniense já não respondiam às necessidades da sociedade.
Para Platão, a democracia tinha funcionado por algum tempo, não por mérito do sistema, mas pelas habilidades de um líder - Péricles, que levou Atenas e toda a Grécia à sua era de ouro, fonte de inspiração da civilização ocidental.
Vejo isto mais claramente hoje, tempos após a publicação do meu livro talvez mais corajoso: A Era da Intolerância, que procura identificar a origem e a natureza do processo de ascensão e decadência dos regimes democráticos, no Brasil e no mundo, em busca de soluções civilizadas para o futuro.
O sistema democrático patrocina a liberdade e se coloca como o melhor possível para acomodar conflitos e interesses em sociedades as mais complexas. Porém, depende essencialmente da civilidade e da qualidade do cidadão. Ele tem de ter educação para fazer boas escolhas e aceitar a diferença na igualdade, tanto quanto a igualdade na diferença.
A democracia acaba gerando grandes avanços políticos, econômicos e sociais, mas esse desenvolvimento levou a humanidade a um novo esgotamento. Na escassez, a natureza humana nos leva de volta à defesa de interesses, à disputa pelos meios de produção: o lobo é outra vez o lobo do homem, dizia Hobbes, e a única coisa que nos impede de nos comermos uns aos outros é o império da lei - qualquer lei, mesmo a que se confunde com a barbárie.
Quando a lei não parece o bastante para garantir direitos, ou as dissensões são tão grandes que uns se apropriam a lei para usá-la como um poder coercitivo, a democracia torna-se falsa - mera carapuça para um sistema opressivo e potencialmente não apenas ditatorial, como totalitário.
Esta é a situação das democracias do mundo hoje: a população cresceu e a massa ignorante, por falta de educação, ou porque a influência das redes sociais é capaz de lobotomizar e transformar os cidadãos em uma massa mesmerizada, favorece os projetos obscurantistas. Por trás deles, há o interesse de uns poucos, que se apropriaram agora do que é o maior capital da vida moderna: a inteligência, seja a digital, a artificial ou a humana.
O processo de idiotização da massa popular serve a interesses monetários, protegidos por redes de poder onde a manipulação da comunicação social por via digital exerce papel preponderante. As democracias de hoje, inclusive no Brasil, são sistemas dissimuladores do fato de que há uma pouca gente os controla. A ilusão de que as pessoas podem se manifestar livremente pelas redes sociais é isto: ilusão. De nada serve ser livre, se isto está a serviço de repetir as mesmas mensagens, geralmente mentirosas, bombardeadas na audiência pelos seus artífices.
A solução seria devolver educação ao povo, como forma de discernimento, mas isso parece cada vez mais difícil. Isto começa pelo controle da mídia, e a falência financeira da imprensa, cada vez mais dependente do poder público, de forma que perdeu sua independência.
À sua crise financeira, que vem da falta de interesse das pessoas (leitores) em notícias de verdade, somam-se as campanhas de destruição da credibilidade pela indústria do ódio e das fake news. Nunca houve perseguição, patrulhamento e constrangimento tão grande do livre pensamento quanto nesta era em que qualquer um pode aparentemente ser livre para dizer o que quiser.
O processo de tomada da superestrutura intelectual que agrega a sociedade humana ganhou ovos mecanismos com a rede digital, inicialmente projetada para a informação e a liberdade, mas que, como virtude do sistema democrático, permite que tal máquina seja usada contra a democracia e a própria liberdade.
Com a imprensa, vai ruindo um pilar essencial de defesa da democracia. A educação também seria importante para desmontar o mundo de mistificações em que vivemos. Porém, a escola tem se tornado cada vez mais inócua no processo de formação do cidadão.
Com a imprensa, vai ruindo um pilar essencial de defesa da democracia. A educação também seria importante para desmontar o mundo de mistificações em que vivemos. Porém, a escola tem se tornado cada vez mais inócua no processo de formação do cidadão.
Quem sai hoje do segundo grau não tem nenhum gosto pelo conhecimento. as mais novas gerações parecem não se interessar por nada, ainda que esteja em jogo seu destino. Não há um professor capaz de entusiasmá-los com assunto algum, nem convencê-los a ler, ou estudar. Para que fez do livre pensamento a própria vida, como eu, há um gosto amargo de fracasso, como revelo em outro livro, este de poesia: Asas sobre Nós.
Como missão coletiva, nós da geração da liberdade, que tiramos o Brasil do regime militar e o devolvemos ao estado de direito e à democracia e à liberdade, estamos diante de um inacreditável mas galopante retrocesso.
Fracassamos coletivamente, ao fazer um país em que o povo não tem qualidade, nem para votar: e disso depende o regime democrático. O que vemos hoje - essa contrafação de democracia que avança sobre o Brasil e mundo - é somente uma manipulação obscurantista da massa de idiotas que ainda chamamos de povo.
Quem dera pelo menos um governo de filósofos, como queria Platão, depois do fracasso da democracia ateniense. Uma democracia ainda depende de um povo de qualidade, que saiba fazer escolhas. Uma falsa democracia, porém, apenas manipula idiotas, e não há filósofos, nem no poder.
O uso de conceitos velhos e binários como de direita e esquerda mostra o despreparo da própria elite intelectual para solucionar a crise democrática, e assim deter o avanço do obscurantismo de caráter totalitarista.
Não se trata de esquerda ou direita, mas de ter uma sociedade que permita o desenvolvimento humano, um país decente, sem fome, com segurança, qualidade de vida. Não se resolve os problemas da humanidade aniquilando-a, mas preservando o que temos de melhor: justamente o que chamamos de humanidade.
Esses conceitos ultrapassados que voltaram a ser usados só mostram o atraso da intelectualidade, que usa ferramentas velhas para explicar fenômenos novos, e nada novo é resolvido com ferramentas antiquadas. O resultado está aí: ninguém entende nada, ninguém se entende, os aproveitadores lançam o caos para tomar o poder e as soluções reais estão cada vez mais longe.
No Brasil, o governo de Lula ao menos percebeu que o capitalismo da era digital vai nos levar à extinção humana e nenhum país resolverá o problema sozinho. Daí para baixo, tudo o que se faz só acrescenta ao desastre, como se o problema se resumisse a aumentar a receita do Estado para alimentar programas assistencialistas.
Meu livro A Era da Intolerância vem sendo adotado em escolas, é o que ofereço como minha pequena esperança. Talvez daqui a 20 anos alguém entenda o que está escrito ali, se é que haverá mundo. Hoje, esta possibilidade, que antes parecia piada, se coloca como uma ameaça iminente.
Na ditadura da ignorância, os governantes são igualmente ignorantes; assim caminhamos para a barbárie, desta vez com poderes nucleares. Só um louco disfarçado de bilionário como Elon Musk acha que o futuro da Terra está em Marte: levaremos conosco para o espaço a discórdia e nossa capacidade de auto destruição. Sem democracia, sem imprensa, sem justiça, sem bom senso, o futuro é sombrio: porém, eu sei por experiência própria que das cinzas os bons ideais sempre renascem.
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