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segunda-feira, 3 de junho de 2013

Civita e a importância de um editor

Entre as muitas lições deixadas por Roberto Civita, falecido em 26 de maio último, a que mais me fascinava era sua definição do que é um editor. Para Roberto, o editor era o homem que acreditava. Um homem de fé. Que acreditava não em Deus, mas que tinha pontos de vista, e acreditava neles, custasse o que custasse. O editor era o homem que achava que sabia o que as outras pessoas queriam, muitas vezes antes delas mesmas. Ou que reafirmava suas ideias e convicções de tal forma que influía de fato no que elas pensavam e queriam.

Nos últimos tempos, andaram dizendo que o editor está em vias de extinção. Hoje, mecanismos automáticos de busca como o Google parecem identificar o interesse das pessoas e seus grupos (as "redes sociais"), por meio de algoritmos que pesquisam palavras ou aglutinam gente por algum tipo de proximidade, pessoal ou profissional. Fariam de forma matemática, ou computacional, o que antes parecia, pelo menos aos olhos do editor, uma função que tinha muito de intuitiva. Porém, o editor continua insubstituível. Porque sua especialidade não é apenas reconhecer o que as pessoas querem; é dar a elas aquilo que ainda não sabem o que querem. Parte da tarefa do editor é, como observador e analista da sociedade, inventar o que as pessoas ainda vão gostar. E isso se faz a partir de suas próprias ideias, sua visão do mundo, do mercado, e de seus ideais.



Com Civita, foi assim. Não poucas vezes, ele produziu revistas para as quais o mercado brasileiro ainda não existia ou não estava preparado. Fez sua primeira revista de informação, Quatro Rodas, quando praticamente não havia estradas asfaltadas no país e a indústria automobilística estava apenas sendo implantada para o consumo de massa. Durante sete anos, a Editora Abril arcou com o prejuízo semanal de Veja, uma revista de informação que dependia de um sistema de vendas que ainda não existia - as assinaturas - para garantir circulação e, assim, a publicidade.

Civita percebeu que essas duas coisas - circulação e publicidade - é que garantiam a independência editorial e vice-versa. Essa independência financeira apoiada no mercado, e não em dinheiro ou favores de governo, era a condição essencial para o exercício da liberdade de expressão que ele identificava como algo fundamental para a democracia brasileira. E podia perenizar uma publicação, que se transformava assim em uma instituição brasileira em defesa da verdade, independente da cor dos diversos governos que se sucedem na história democrática.

Como editor, ele sustentou Veja, até dar certo, por acreditar - acreditava que o Brasil precisava da democracia, que a democracia precisava de uma revista independente, e que isso seria inevitável. Até que, sete anos depois, o inevitável chegou com a inversão da curva que levaria Veja a ser, como é hoje, a segunda maior revista semanal de informação do mundo, apenas atrás da americana Time.

É admirável como a visão de um fato que ainda não existe pode se transformar no próprio fato, apenas pelo trabalho do editor - o homem que acredita nas suas próprias ideias. Ao dar às pessoas aquilo que elas ainda nem sabiam o que queriam, Civita na realidade implantava o seu próprio ponto de vista, uma versão bastante particular e brasileira da verdade universal de que a democracia depende da imprensa livre. Com seu jeito um tanto blasé, ele chegava por vezes a minimizar a importância do papel de Veja, mas a revista contribuiu de maneira decisiva para transformações importantes no país: a construção de uma democracia sólida, pela qual Veja lutou, no processo de redemocratização; a formação de um capitalismo liberal, mais livre das amarras impostas no passado pelo Estado xenófobo e autoritário do regime militar; o combate à corrupção e aos descalabros no manejo do dinheiro público, no sentido de uma política mais ética e voltada para o interesse público; por fim, e não menos relevante, a formação de uma classe média mais educada e bem informada e com uma renda capaz de transformar o Brasil num mercado consumidor importante.

Por vezes, o editor está errado - coloca seu ponto de vista muito à frente do que pode, ou não enxerga o melhor caminho. Alguns dos produtos de Civita não deram certo, ou deram certo apenas por algum tempo, como a revista Realidade, uma publicação inovadora para sua época, mas que teve um prazo limitado de validade. Porém, a maioria das coisas em que Civita acreditou estavam certas, porque partiam de princípios mais que justos. Sua postura de colocar-se ao lado do leitor, de forma a lhe garantir uma publicação independente de outros interesses que não o compromisso jornalístico com a verdade, combinava perfeitamente com a liberdade de expressão, a defesa da democracia e a procura de uma sociedade mais justa.

Essas ideias e ideais não são apenas dele, mas Civita soube capitalizá-las em produtos que agregaram ao seu redor interesses muito poderosos, porque combinam com o próprio interesse do Brasil como Nação. É assim que se consolidam as instituições. Por isso, Civita, que nasceu em Milão e foi criado em Nova York, foi um brasileiro essencial para o bom caminho que o Brasil tem trilhado, com uma democracia voltada para a busca de uma sociedade mais livre e ao mesmo tempo justa, que busca a riqueza sem perder as preocupações sociais, e capaz de explorar racionalmente seu imenso potencial natural e de mercado. Cabe a todos nós que carregamos a mesma bandeira fazê-la tremular com o mesmo empenho, entusiasmo e coragem. Pois, como Civita mesmo dizia, a liberdade e a democracia dependem de um trabalho cotidiano de manutenção.









terça-feira, 28 de maio de 2013

O legado de Civita


Em 1999, o financista aposentado Geraldo Forbes estava na mesa que lhe era diariamente reservada no restaurante Fasano, em São Paulo, quando entrou no salão o editor Roberto Civita. Conhecidos de longa data, Geraldo chamou Roberto à sua mesa. Cumprimentou-o e apontou, almoçando à sua frente, a filha Alexandra Forbes, que trabalhava, na época, em VIP. A revista, que fazia pouco deixara de ser um suplemento de Exame, então andava explorando aspectos mais bizarros do sexo para chamar a atenção. Geraldo não gostava nada daquilo, embora Alexandra fizesse, na publicação, somente a função de crítica gastronômica. “Roberto, quero te apresentar minha filha Alexandra, que trabalha numa de suas revistas, a VIP” , disse ele. “E quero também te dizer uma coisa: eu tenho vergonha de dizer que ela trabalha na VIP!” Roberto não se fez de rogado. Abriu seu sorriso de sempre e, com o sotaque levemente americano que o caracterizava, disse, simplesmente: “Se você tem vergonha de dizer que ela trabalha nessa revista, imagine então eu, que sou o dono dessa revista!”

Panache é uma maneira elegante e espirituosa de sair de situações difíceis ou delicadas. Ela define o homem, porque vem não somente da educação como de uma atitude perante o mundo. É um refinamento do verdadeiro cavalheiro, ao qual poucos chegam. Este pode até passar por apuros, mas não deixa de encarar a vida com certa leveza. É digno e, na vida prática, creio que funciona melhor. Roberto Civita tinha panache. Aparecia nas diversas situações que tinha de enfrentar, muitas como editor, especialmente em Veja. Não fosse isso, provavelmente teria muitas vezes deixado de lado suas convicções. Roberto sustentava corajosamente pontos de vista, mesmo quando pareciam ser os mais quixotescos, como se não fosse nada. “Os leitores que gostam compram”, disse certa vez, ao discorrer sobre a necessidade do editor de mostrar claramente o seu ponto de vista nas capas de Veja. “Os que não gostam, passam para ler outra coisa.”

Esse mesmo espírito aparecia nas decisões empresariais. Quando a Abril passava por uma séria crise financeira, em meados dos anos 1990, os consultores contratados pelo próprio Roberto diziam que era preciso cortar gastos, começando pelo overhead – os executivos e jornalistas que pertenciam à cúpula da empresa. Numa reunião, onde estes se encontravam todos presentes, ao chegar ao assunto dos cortes na diretoria, Roberto se levantou da mesa. “Eu vou embora, e vocês resolvem aí quem é que vai sair”, disse ele. “Eu simplesmente não consigo me livrar dos meus idiotas de estimação.” E saiu mesmo, deixando uns olhando para os outros, em silenciosa perplexidade.

Um dos que se tornaram ex-executivos da Abril, o jornalista Antonio Machado, lhe mandou um e-mail quando a Abril vendeu para a Folha da Manhã sua participação no UOL por um bom dinheiro, em 2001. Antonio lembrava que Roberto era descrente dos negócios da internet, e que ele, Antonio, levara adiante a primeira incursão da empresa no mundo virtual (o "Brasil Online, BOL), de forma que naquele momento podia colher o resultado. “A minha participação nessa venda eu deixo a você como doação”, escreveu Antonio. Roberto lhe enviou uma resposta, dando-lhe toda razão, reconhecendo o fato de Antonio ter insistido com ele para levar adiante o portal na internet. Assinava, no final, “Roberto”. Embaixo, um PS: “E muito obrigado pela sua doação!”

Roberto Civita faleceu no dia 26 de maio último. Assim como Ruy Mesquita, de O Estado de S. Paulo, falecido pouco antes, deixa no ar a sensação de que uma certa era da imprensa vai indo embora junto com seus ícones. Porém, Roberto deixa um legado importante para a imprensa, além do conjunto de seus negócios, que se espalham pelo meio do livro, da revista, da TV e dos veículos digitais. É algo mais impalpável, porém mais duradouro: o respeito à verdade, a coragem, o compromisso com o Brasil e com o leitor, que é o brasileiro. Deixa um modelo de imprensa exemplar e também de comportamento, que me lembra que mesmo para mover montanhas é bom ter um sorriso no rosto e algumas palavras gentis.