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terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Os pecados da tribo contemporânea

Em seu romance Os Pecados da Tribo, de 1976, o escritor goiano J.J.Veiga, falecido em 1999, imaginava um mundo em que desaparecera toda a tecnologia, depois de uma inexplicada catástrofe que tirou a energia artificial: um planeta sem carros, geladeiras e outras máquinas, onde a consulesa - uma mulher casada desejada pelo narrador por seus lindos pés -, andava sempre descalça.

Uma interessante fábula para mostrar que, sem os meios criados pela indústria contemporânea, o homem permanecia o mesmo, com seus desejos, mesquinharias e problemas, que remontam aos tempos das cavernas. Prova de que a civilização está no comportamento, e não nos instrumentos de que a sociedade dispõe.

Falo deste livro para fazer um exercício contrário, tomando o mundo real de hoje. Desde a invenção da roda e da máquina a vapor, a sociedade não mudou tanto quanto agora, na era da informação. Impregnado de tecnologia, especialmente a que hoje conecta todo os indívíduos, vemos que esse avanço civilizatório não fez progredir também os elementos essenciais da Humanidade. O mundo continua o mesmo, ou pior, já que a tecnologia tem servido para acirrar suas dissensões.

Onze Cabeças, de Pavel Filonov,
Museu Russo, em São Petersburgo
Em vez de dirigir o mundo para uma fase desenvolvimentista, objetiva e integrada às bases humanistas ou iluministas, como seria de se esperar de uma geração tão próxima dos elementos da razão, o que a tecnologia fez foi impulsionar a intolerância religiosa, acirrar o maniqueísmo político, dar voz aos extremistas de esquerda e direita e fortalecer minorias que tentam encobrir a maioria com seu ativismo.

A  multiplicidade se transforma em uma infinidade de defesas de interesse que buscam tirar a legitimidade umas das outras e tendem a desintegrar um mundo cada vez mais integrado pela comunicação.

Assim como as tribos africanas não deixaram de ser tribais, apenas hoje usam metralhadoras no lugar dos antigos chuços para dizimar seus inimigos em  maior escala, a internet se tornou um instrumento de última geração para a ação de ideologias  que se supunha anacrônicas.

Ressurgiu a velha dicotomia de esquerda e direita, que parecia destinada à submersão no processo de redemocratização do Brasil. Levantaram-se da tumba os arautos de velhas esquerdas, como a stalinista, segundo a qual os fins justificam os meios, defensores da erradicação do capitalismo a qualquer preço, que tem muitos correligionários ao redor do governo da presidente Dilma Rousseff.

Surgiram também do limbo, ao mesmo tempo, os radicais de direita, para quem tudo o que a esquerda prega é um absurdo, e justifica-se portanto o absurdo do lado contrário, incluindo silenciar a esquerda e defender bens imponderáveis como a pátria, a família e a liberdade com a luta armada, outra aberração anti-civilizatória de tempos pregressos.

No mundo, acontece a mesma coisa. Pela internet, agrupam-se e se fortalecem movimentos radicais islâmicos que acabam nas ruas, como o que resultou na morte de mais de uma centena de pessoas, recentemente, em Paris. Ressurge o nazi-fascismo, que se julgava morto e enterrado desde a experiência macabra da Segunda Guerra Mundial.

Da mesma forma que permite a adolescentes suicidas encontrarem apoio uns nos outros para realizar o seu intento, a internet é um espaço onde interesses específicos podem se reunir em redes e fortalecer o ânimo de grupos com propósitos fora da curva.

Ao patrulhamento ideológico, que tenta matar toda e qualquer manifestação contrária nas redes sociais, junta-se a cizânia pura e simples, daqueles que veem defeito em tudo e só sabem criticar o governo, o vizinho, as instituições, a democracia e reclamar da vida - da falta d´água ao preço do dólar.

Excluída a tecnologia, como o rei da fábula, que de repente se viu nu, ainda somos os mesmos. Os cruzados ainda lutam contra os mouros, e a irracionalidade da intolerância religiosa ganha força e amplitude com sua agregação virtual: Jerusalém agora é cada cidade do mundo, como Paris. A Guerra Fria não é mais entre americanos e soviéticos, é entre todos os que defendem o Estado absolutista e do outro lado o capitalismo liberal, se possível selvagem e desenfreado.

O movimento das minorias ganhou ainda mais força, seja das feministas, dos gays, dos negros. E com isso vão também se criando guetos de exclusividade e privilégio em que o cidadão fora dessas nomenclaturas vai sendo alijado do direito de igualdade.

Essa guerra microfísica, que está no dia a dia das pessoas, vai tornando o ambiente virtual estressante e potencialmente explosivo. A facilidade com que a organização de grupos na internet ganha as ruas, de repente e aparentemente do nada, para quem não vigia os meios virtuais, é o maior fenômeno social da era contemporânea.

Dentro desse cenário, está também a tentativa de desmoralizar a imprensa, para a ocupação do espaço da informação com o ponto de vista dos grupos de interesse. Um mundo em que não há verdades, ou fatos, e apenas versões sobre tudo, vai se tornando um campo minado para a sociedade, sujeita mais a campanhas de marketing que à realidade.

A divergência política, que se dava apenas em períodos eleitorais, e antes se restringia às páginas de opinião dos jornais ou ao churrasco de fim de semana, hoje é um campo aberto e cotidiano. Os projetos de interesse coletivo estão sujeitos a uma infinidade de pressões que ameaçam paralisar as atividades de Estado e precisam ser defendidos diariamente, assim como a reputação daqueles que são achincalhados impunemente no meio virtual.

A democracia se obriga a respeitar o direito de opinião livre de todas as minorias, não pode ir contra a multiplicação desse tipo de material que infesta hoje o espaço virtual, tão presente na vida das pessoas, ainda que isso não represente o pensamento da maioria, geralmente silenciosa. É um desafio para o mundo se tornar governável diante de todas essas fontes de pressão.

A tecnologia avança, mas ainda somos os mesmos que levaram este planeta às guerras mundiais, à Inquisição, à perseguição política, à censura e outros males crônicos da Humanidade. A civilização não é a tecnologia, e sim o que está por trás dela, e agora aparece à frente, tão claramente. Espera-se que seja uma fase e venhamos a encontrar fatores de equilíbrio, a começar pela consciência das consequências do mundo virtual no mundo real.

Uma certa volta aos pés no chão da consulesa, símbolo último da realidade.








domingo, 23 de agosto de 2015

A era da ignorância

Vejo na internet um vídeo com entrevista da minha agente literária, Luciana Villas Boas, na qual ela afirma que a literatura brasileira perdeu espaço de influência na cultura brasileira. É verdade, mas o que vemos hoje com as redes sociais é um fenômeno ainda mais amplo, em que não apenas a literatura como a leitura - matéria prima para as ideias - perdem seu espaço, numa era em que a informação nunca foi tão farta.

A internet trouxe para o mundo contemporâneo um grande paradoxo. A era da informação, contraditoriamente, é também a era da ignorância. Graças à internet, ficamos sabendo como a civilização ainda é pobre - ontem vi um vídeo, por exemplo, de uma gincana na França em que um concorrente, entre quatro alternativas, cravou que a Terra gira em torno da Lua. Quem tem visto filmes franceses sobre educação sabe que até no país mais culto do mundo ela anda em baixa.

As pessoas se acomodaram - é mais fácil ver um vídeo ou distrair-se com bobagens na internet do que aprender algo construtivo. A mesma facilidade com que se faz compras de supermercado por meia dúzia de cliques faz também com que o ser humano deixe de pensar, tanto quanto de sair de casa. Ambas as coisas são importantes para aprender.

Já ouvi muitos relatos sobre jornalistas que vivem atrás do computador. Não vão para a rua, não fazem reportagens, não conhecem pessoas.  Não têm, portanto, conexões nem experiência de vida. E esse é um capital essencial para quem quer escrever, seja informativa ou literariamente.

Há trinta anos eu escrevo todos os dias e me surpreendo com tantos novos "escritores" surgindo na internet. Fazem vídeos e dão entrevistas como se soubessem tudo sobre escrever, sobre o mercado, sobre a vida. Mesmo assim, quem começou a carreira na imprensa diária, no tempo da máquina de escrever, sabe que escrever é experiência e treino - exceto, talvez, na poesia. E isso falta, e muito, na literatura que surge no meio virtual.

Escritores da era digital tendem a tomar conta do mercado porque são jovens, geralmente não precisam sustentar família e têm mais tempo para fazer seu marketing virtual. Vão ocupando espaço e dando a impressão de que isso é a literatura contemporânea. O mesmo acontece em outras áreas da comunicação. A internet oferece espaço de manifestação para uma série de minorias que fazem muito barulho, porque ocupam espaço nas redes sociais. Com isso, dão a falsa impressão de que são maioria. Ou de que têm razão. Multiplicam-se os donos da verdade de tal maneira que a internet se torna enfadonha.

Lógico que se pode encontrar inteligência na internet, assim como espaços com informação relevante e confiável. Porém, a internet favorece o nivelamento por baixo em larga escala . A mediocridade tende a ganhar ainda mais espaço porque as pessoas até agora não têm dado devida importância ao fato de que informação de qualidade - incluindo  a literatura, que é informação para o desenvolvimento intelectual e emocional - precisa ser um serviço remunerado, como sempre foi. Os internautas em sua maioria ainda preferem o espaço onde está na verdade o lixo da informação, apenas porque ele é gratuito.

Os jornalistas tradicionais não aprenderam direito a fazer uso das novas mídias; ao contrário, são boicotados dentro delas, em movimentos promovidos por neo blogueiros para desacreditar o profissional da informação e ocupar o seu espaço, ou por gente financiada de forma escusa por interesses de outra maneira indefensáveis. Os profissionais precisam aprender a navegar como os neófitos e voltar a transformar a missão de escrever, seja de forma informativa como literária, de uma maneira que isso continue a ser de fato uma profissão, entendida como uma especialidade da qual alguém pode tirar seu ganha-pão.

A redução do hábito da leitura de jornais e livros impressos parece indicar que o terreno livre da internet representará uma nova seleção natural. Existirão os livros e veículos de informação digitais, mas as regras do que é bom não mudaram. Conteúdo de qualidade estimula a leitura e vice-versa. A reentrada dos profissionais no mercado pode ajudar a devolver qualidade à informação e a restabelecer a ordem das coisas: os neo blogueiros é que terão de se esforçar para aprender como esse negócio funciona, e os jabazeiros ficarão expostos, por contraste.

Está mais que na hora de isso começar. 




terça-feira, 1 de outubro de 2013

Os jornalistas viram suco

Vejo no Facebook que uma jornalista, minha conhecida, abriu uma lanchonete. Sei de outros colegas de profissão que andam quebrando a cabeça sobre o que fazer do futuro, agora que o mercado formal de trabalho na imprensa convencional - jornais, revistas e mesmo na internet - encolheu como nunca.

Isso me lembra outra história, em outro momento, quando eu ainda saía da faculdade, em meados dos anos 1980. Na época, o Brasil andava numa crise danada, e não havia mercado para os engenheiros. Eles se formavam, mas não encontravam emprego. Sem dinheiro, o país estava parado: não havia obras, civis ou públicas. E ficou famoso, na época, um bar especializado em sucos naturais, aberto na Avenida Paulista, que se chamava, não por acaso, "O Engenheiro que Virou Suco". Um boteco com um dono altamente qualificado, mas sem espaço no seu próprio mercado. Havia então engenheiros dirigindo táxis e fazendo uma porção de outras coisas que nada tinham a ver com sua formação.

O grande problema dos veículos de mídia é um só. Numa época em que a distribuição das notícias não depende de altos investimentos em papel, gráfica e logística, ficou também fácil copiar e redistribuir conteúdo de qualidade. É inviável para a empresa jornalística fazer o seu trabalho - pagar um jornalista profissional, mandá-lo fazer a reportagem em algum lugar, numa empresa com todos os custos formais - para em cinco minutos perder a exclusividade sobre a notícia, que é imediatamente copiada e reproduzida exaustivamente por todos aqueles que não gastaram nada em sua produção.

Esse dilema da mídia impressa é dividido com a publicidade, que está ficando sem seus veículos habituais e, pior, cada vez mais é deixada de lado por clientes que dão sua informação publicitária - uma forma de notícia - diretamente para o cliente, por meio das ferramentas da rede social.

Mesmo os portais, um serviço de informação que já nasceu supostamente vocacionado para a internet, têm dificuldade de subsistir, com redações grandes e o desafio de atrair anunciantes. A pergunta é: o que será do jornalismo e do jornalista na era virtual?

Existem alguns casos exemplares, que mostram como o jornalismo está mudando, ou para onde pode ir. Glenn Greenwald (foto abaixo), o jornalista que foi o primeiro a dar as notícias sobre a espionagem americana no Brasil, especialmente nos negócios da Petrobras, é um americano que mora no Rio e passa uma parte do seu tempo na praia, passeando com o cachorro ou seu namorado brasileiro. Ele foi escolhido pelo ex-espião Edward Snowden para receber seu dossiê por três razões: 1 - No Brasil, está fora do alcance da pressão americana; 2 - É um vigilante permanente do governo americano; 3 - Seu blog está abrigado sob o guarda-chuva de um jornal de prestígio: o The Guardian.



O que se pode deduzir do jornalista mais bem sucedido dos últimos tempos é que existe uma tendência maior de os jornais serem aglutinadores de jornalistas espalhados pelo mundo, que não ganharão um salário, e sim um "frila fixo" para estarem sob o abrigo de uma marca de imprensa. Os custos caem para as empresas, que deixam de arcar com uma série de despesas. E os jornalistas não ficam à míngua. Os interesses são os mesmos: o jornal garante conteúdo exclusivo (pelo menos por alguns minutos) e de qualidade, além de atrair leitores com profissionais de renome. E os jornalistas ganham mais leitores trazidos pelo tráfego do jornal, que funcionaria assim como uma espécie de Hub de notícias.

No caso Snowden, o Guardian chegou a investir na reportagem - pagou uma passagem para Glenn encontrar-se com sua fonte de informação na Ásia. Quer dizer que o modelo do jornalismo mudou, mas o jeito como se faz o bom jornalismo, não. É possível ainda fazer bom jornalismo nos moldes atuais. E os investimentos necessários para tê-lo.

Claro que o bom jornalismo é e continuará sendo sempre necessário. As pessoas já perceberam que a internet é um mar reprodutor de boatos e erros grosseiros de informação e que informação qualificada custa - é um serviço essencial á sociedade pelo qual temos de pagar. Porém, a transição do modelo de papel, que vem encolhendo a olhos vistos, e esse futuro em um estágio auto-sustentável ainda pode demorar a acontecer. Vender suco talvez não seja o ideal de vida para um jornalista, mas talvez não existam muitos outros meios para aqueles que não se adaptarem ao novo manejo da profissão.