Nos lançamentos dos meus livros, sempre aparece gente com uma história inesperada, que vem pedir algo estranho, ou contar algo surpreendente. Nada, porém, teve sobre mim impacto maior que aquela vez.
No dia 20 de maio de 2016, lancei na livraria da Vila, no Shopping Higienópolis, meu livro "A Conquista do Brasil". Na fila de autógrafos, apareceu então uma antiga colega de faculdade, Rosângela, que colocou sobre a mesa um livro diferente: Campo de Estrelas, romance lançado pela editora Globo, quase dez anos antes.
- Queria que você autografasse este, para o meu marido - disse ela. - Ele se chama Shin.
- Mas não é esse o livro que estou autografando! - eu disse.
- Tem que ser esse...
Rosângela contou estão sua história. Seu marido tinha sido diagnosticado com um câncer de pâncreas. No hospital, para distraí-lo das dores, ela resolveu ler para ele. Escolheu Campo de Estrelas. Todos os dias, lia para Shin um pedaço do meu romance.
Estranhei ela estar sozinha, ali. Pensei que Shin pudesse já ter morrido. Ou que poderia estar ainda no hospital.
- O que aconteceu com ele?
- Está aqui! - disse ela. - Mas pediu para eu vir no lugar dele.
- Traga ele aqui -, pedi. - Quero conhecê-lo.
Rosângela saiu. Atendi mais duas ou três pessoas na fila. Voltou Rosângela, com Shin. Fiz-lhe o autógrafo e levantei para conversarmos.
- Thales, me desculpe, mas eu não estava com coragem para vir falar com você - ele disse. - Você não sabe como seu livro foi importante para mim. No hospital, todos os dias, eu queria viver até o dia seguinte, para saber o que aconteceria na história.
Para quem não sabe, Campo de Estrelas conta a viagem aventuresca de um pai com o filho para Machu Picchu, narrada pelo filho, quando ele se trata de um câncer. A inspiração, claro, sou mesmo, que tive um pólipo na bexiga em 2003.
- E o que você faz? perguntei.
- Eu sou médico - disse Shin. - Chefe do departamento de cirurgia do tórax do Hospital das Clínicas.
Aquilo me deixou profundamente impressionado. Um médico, achando que eu o "salvara"?
Shin me lembrou de Eric, o médico que me atendeu, quando fiquei doente. Eric escondia de todo mundo - incluindo da própria mulher, também médica, assim como dos filhos, e toda a sua equipe - que ele mesmo tinha câncer de próstata, incurável.
Descobrimos a doença, eu e Eric, mais ou menos na mesma época. Ele dizia que eu tinha "sorte", por ter descoberto a doença a tempo de curá-la. Eu não entendia nossas conversas, nas quais ele me fazia muitas perguntas. Achava que estava interessado em mim.
Eric virou personagem em Campo de Estrelas. No romance, identificado como "Roger", narro como ele trabalhava como louco, tentando salvar todas as pessoas que podia. Atendia em seu consultório até as duas da manhã e às seis já estava no hospital, operando.
Só revelou estar doente em 2008, quando deu entrada no Einstein, onde operara milhares de pacientes. Todas as nossas conversas, então, mudaram de sentido. Eric me fazia perguntas, mas queria as respostas para ele mesmo. Entendi o que quisera dizer ao afirmar que eu tivera "sorte" de descobrir a doença a tempo. Ele mesmo não a tivera.
Eric vivia seus últimos anos de vida numa corrida para salvar quem podia. E não desperdiçava um minuto.
- Se você tivesse somente algum tempo de vida, o que faria? - perguntou ele, quando o visitei, no hospital. - Tiraria férias?
- Escreveria - eu disse.
- Então. Continuei fazendo o que eu faço.
Ao lado do leito, de onde ele continuava comandando sua equipe, li para ele algumas páginas de Campo de Estrelas, nas quais ele aparecia.
- Você devia ter colocado o meu nome - disse ele.
Foram as últimas palavras que Eric Roger Wroclawski proferiu para mim.
*
Eric faleceu em 2009, mas Shin ainda estava bevm vivo. Fui a um jantar em sua casa, organizado por Rosângela, uma jornalista com pendores artísticos, como eu. Como aconteceu com outras pessoas, meu livro produziu uma reaproximação. Daquela vez, porém, havia um sentido maior. Rosângela colocou a mim e a outros amigos dentro de casa para trazer alegria a Shin, mas foi para nós que ela acabou trazendo outro espírito.
Tive a a oportunidade de conviver mais com ele quando, com Rosangela e um grupo de amigos da faculdade, Shin foi até nosso sítio para uns dias de descanso. Estava bem disposto, em uma fase entre tratamentos. Nunca deixava transparecer dor, tristeza, angústia, sofrimento.
A simplicidade e os hábitos orientais - tirar os sapatos dentro de casa, a humildade, o respeito ao próximo, a atenção - se juntavam à modéstia em relação ao que ele fazia. Para mim, isso tornava Shin um homem maior.
Havia naquele coreaninho abnegado algo de heroísmo. Contava para isso sua incrível serenidade diante da ironia do destino, por não dar poder, àqueles que salvam, de salvarem a si mesmos.
Shin faleceu esta manhã de sexta-feira. Teve vida extraordinariamente longa após o câncer, pelo tipo de doença que o acometeu. Desde que eu o conheci, pôde ainda ver o nascimento de uma linda netinha, com quem conviveu. Completou sua bela família, com filhos e aquele espírito que se parece com a paz dos jardins orientais. Viajou. Lia diariamente o livro que Rosângela foi escrevendo, todos os dias, enquanto ela o escrevia.
Para mim, ficou um exemplo quase impossível de seguir. Poucos têm a dignidade de Shin diante da morte. Eu não sou capaz de aceitar assim, em paz, o fim. Eu me revolto, blasfemo, luto contra o inevitável. Não aceito a injustiça da condição humana, que nos dá a vida apenas para tirá-la, depois que lhe emprestamos algum significado.
Por isso, escrevo, como Eric, incansavelmente, como se tudo fosse acabar amanhã. (E agradeço, pois depois da doença puder ver nascer e crescer meu filho e ter muitas alegrias que jamais tinha sequer imaginado).
Sei que não podemos morrer miseravelmente. Os orientais, como Shin, crescem diante dos fatos cabais. (Quem tem medo morre como um cachorro, diz um ditado samurai). Têm o poder da resignação.
Shin via a vida como passagem. Os orientais, na morte, libertam-se do sofrimento terrestre e seu espírito plana no tempo. Somos partes do universo e continuamos fazendo parte desse imenso organismo que ninguém explica.
Essa é, para mim, a maior forma de fé.
Vá, querido amigo. Mas, talvez, eu nunca mais vá querer reler Campo de Estrelas, porque as estrelas já são tantas que ando a carregá-las com o peso todo do céu.