terça-feira, 7 de março de 2017

Fotografias de um mundo sem futuro

“Você é o único aqui que não precisa de máquina para fazer fotografias”, diz a Mulher sem Nome, que, desde que nos separamos e tentou me proibir na Justiça de escrever seu nome, ficou sem nome - e me acostumei.

Estamos sentados no #Harry’s Bar, de Harry #Cipriani, celebrizador do carpaccio e do Bellini, onde já bebeu #Hemingway, em belas eras. É carnaval em Veneza e, desta vez, o bar está lotado de gente que entra da rua para o salão sóbrio e quente, acotovelando-se diante do balcão, entre os garçons de meticuloso paletó branco e gravata borboleta negra.

Entre os recém chegados, que amotinam o bar ao estilo naval, estão dois cavalheiros setecentistas de chapéu tricórnio, meias brancas até o joelho e paletó de asa. No meio deles, um sujeito com vestido balão (“lutador de sumô”, identifica a Mulher sem Nome), que ocupa, sozinho, o espaço de quatro pessoas e se movimenta boiando, enquanto rebate erraticamente entre os circunstantes.

Tomamos dois #Bellinis, acompanhados de azeitonas. É bom estar aqui, respirar novamente o ar de Hemingway, e estar com a mulher que entende exatamente o que estou falando. Viemos do palácio do Doge, decorados com cenas #de guerra e Netuno entregando a #Veneza a sua cornucópia, na representação de #Tiepolo. Andamos pela ponte Dei Sospiri, saindo da pompa dos salões venezianos, até a curta e claustrofóbica passagem sobre o canal que leva às frias e escuras masmorras do velho império.   

“É o que está acontecendo hoje”, diz ​a Mulher sem Nome, quando observa que o túnel entre os salões ricamente decorados e o claustro sombrio são aqueles vinte metros suspensos sobre o rio. 

Sim, no Brasil, hoje, os políticos que expoli​​aram o país, e empresários a eles associados, todos frequentadores dos melhores salões da república, navegantes de iates e passageiros de jatinhos particulares,​ estão indo para as imundas e superlotadas cadeias brasileiras. Entre eles, até mesmo #Eike Batista, que já foi o homem mais rico do Bras​i​l, destituído de sua fortuna, da liberdade – e de sua peruca italiana.

Tempo sem futuro, sem esperança, em que avanços recentes, não só no Brasil, como no mundo, se perderam. Nos Estados Unidos, Obama, com seu programa de saúde, seu olhar de ecumenismo político sobre as nações e o mundo, deu lugar a Trump: a volta à velha truculência do selvagem capitalismo americano.

Tempos do recrudescimento da ira, catapultada pelo poder digital, pela violência religiosa, ambos filhos da intolerância. Este é um mundo em que a tecnologia avança, mas ela apenas serve para melhor armar os homens e seus antigos barbarismos.

“Senhor, fotografar aqui dentro não pode”, adverte o maître do bar, firme e gentilmente.

Tarde demais. O retrato, como diz a Mulher Sem Nome, está feito. Veneza espera lá fora – a noite azul marinho, a cor de que mais gosto, nesta cidade que combina tanto com o caleidoscópio humano dos blocos nas ruas centenárias. O cheiro do mar, o estalo das gôndolas no cais, o trajeto pelas vielas estreitas, até a Chiesa San Vidal, onde, às 20h30, iremos a um concerto de violinos para ouvir As Quatro Estações de Vivaldi.

Talvez os tempos de Hemingway fossem mais sombrios ainda, tempos de guerra, embora mesmo a guerra naquela época fosse mais romântica. Estou aqui no Harry’s Bar, há vida e livros pela frente. Estou usando barba, por causa de Garibaldi, tema do romance que está saindo do forno, e muita gente diz que estou muito Hemingway. Sei apenas que, como eles, procuro viver até o limite, com ajuda do amor – amor que eu carregava pela mão na noite de festa e regozijo.

(Redação revisada para um texto escrito em Veneza, 26 de fevereiro de 2017, sábado de carnaval.)

A Pietá, o Vaticano e um amor comovente

Quatro anos atrás, quando estivemos em #Roma juntos pela primeira vez, Dona Aranha foi barrada na porta do Vaticano.

Era verão, e estava com os braços de fora. Saímos em busca de agasalho, para atender aos padrões de compostura da catedral. Com isso, perdemos a hora – aborrecida, ela aceitou visitar o museu Vaticano, sem a catedral, por conta da imensa fila que se formava àquela hora. Dentro do museu, ficou ainda mais brava ao ver as estátuas gregas nuas, na coleção dos papas. Na sacra galeria, somente ela parecia estar toda vestida.

Desta vez, além de estarmos prevenidos, era inverno. Ela suportou tudo: sua agorafobia, no meio da multidão, aglomerada no bolsão anterior à revista, minha vertigem ao subir a espiralada escadaria do domo, o que, para um labirinto tão sensível como o meu, é sempre uma aventura.

Porém, nesse dia, enfim, entramos na igreja do Vaticano. A catedral das catedrais.

Logo na entrada, indico à direita a #Pietá. “Mas ela sempre esteve aqui? Eu não a vi em outro lugar?”, pergunta ela, candidamente.

É tão conhecida a Pietá que, assim como a #Monalisa, nos é sempre familiar. Mas a Pietá, ao vivo, só ali. É um deslumbramento e um choque. “Estou com vontade de chorar”, diz ela, se afastando.

A visão da mãe com o filho nos braços amoleceu seu coração – de filha, de mãe, de mulher. “A mãe entregou o filho ao mundo para cumprir sua missão, mas, quando ele morre, é ela que o recolhe novamente”, explicaria mais tarde no jantar, enquanto ouvíamos um violoncelista no #CampoDiFiori, em uma das mesas do restaurante #Magnolia.

Ainda no #Vaticano, assistimos à missa – cantada em latim, com um coro literalmente divino – e saímos mais leves. Sem dúvida, apesar do turismo de massa, ali ainda se pode ter um encontro solitário com #Deus. “Pela primeira vez, entrei numa igreja sem ter nada a pedir”, disse ela.

Dona Aranha é comovente. Ela me trouxe à Itália para lembrar quem sou, ou de que sou feito. Porém, o que me lembra quem sou não são os lugares onde já estive ou de que gosto. É ela.

segunda-feira, 6 de março de 2017

Korian volta pela mão de um leitor

Lucas, estudante de Design da UFES (Federal do Espírito Santo), me procurou pedindo autorização para usar um livro meu, há muito desaparecido das livrarias, como seu trabalho de curso. Queria  projetar, diagramar e imprimir um livro. E escolheu um que lancei em 2005, pela antiga efitora Siciliano, hoje encontrado raramente, em um ou outro sebo. Assim surgiu uma nova versão de "Korian na Terra do Engano", que ele leu quando criança e, pelo jeito, nunca  esqueceu. Aqui vai o resultado. Acredito (e espero)  que ele passe de ano. Da minha parte,  fico sempre feliz de fazer parte da formação e inspiração de alguém - é o retorno que mais nos dá prazer e vontade de trabalhar. #thalesguaracy #korian #naterradoengano

A cidade e a memória

Eu no Diana com uma taça do vinho da casa
Há vinte anos, cheguei no começo da noite ao aeroporto de Bolonha, aluguei um carro e dormi na cidade. Vinha testemunhar o primeiro momento de Pedro Paulo Diniz dentro de um carro de Fórmula 1, na Forti Corsi, equipe emergente da categoria inferior, a Forti Corsi, que seu pai, Abílio Diniz, havia conseguido promover obtendo patrocínio da Parmalat - em troca da compra de panetones encalhados, postos à venda em seus supermercados de Portugal.

Eu ia contar aquela história para a revista VIP. Entrei em Bolonha já à noite e me hospedei no hotel Tre Vecchi, na Via della Indipendenza, importante artéria do comércio da cidade. Era então um 3 estrelas, com alguns quartos mais simples e baratos, e uma pequena área ao lado onde pude estacionar o carro.

Foi uma noite solitária - e maravilhosa. A cidade, naquele domingo à noite, se encontrava deserta. Caminhei sozinho pela via, sob as arcadas da cidade mais elegante que já vi, com suas cortinas verdes nas janelas retangulares e mouriscas,  os edifícios de tijolos vermelhos e terracota, as abóbadas pintadas como se as calçadas fossem igrejas.

Havia um único estabelecimento aberto, além  do hotel: o restaurante Diana, com sua fachada de vidro,  as paredes de lambris,  os candelabros de cristal. Foi uma surpresa encontrar justamente aquele lugar feliz, nobre e acolhedor.  Mais tarde, conversando com o editor de moda Fernando de Barros, que ia muito à Itália para ver os desfiles e outros compromissos da meca da moda masculina, descobri que ele adorava Bolonha pelo mesmo motivo que eu: sua elegância. E tinha também o Diana como um de seus lugares e restaurantes preferidos no mundo.

Dali, subi a ladeira até a Piazza Netuno, com sua grande estátua do deus do mar, e dobrei à esquerda na Piazza Maior, onde estão os mais belos edifícios da cidade. Sentei na escadaria de um pórtico para contemplar a praça  sozinho. Diante da catedral, de fachada incompleta, o silêncio tinha o peso dos séculos. E eu podia jurar, pela traição da memória, que ali, no centro daquela praça, se encontrava a estátua de Garibaldi.

Ainda estava escuro quando parti,  na madrugada,  em direção ao autódromo de Monteriggione, à beira do Adriático. Parei para um café na saída da cidade. O sol raiava sanguíneo e fresco quando vi Bolonha pela última vez.

Volto à cidade, tanto tempo depois, para entender o que eu sabia, o que não sabia e deixei de saber.  A estátua de Garibaldi, de fato, está na Indipendenza, em frente ao Tre Vecchi. A cidade continua elegante, mas agora, aos domingos, fervilha de vida. Nas praças,  nas vielas onde se come na rua as delícias locais, gente de toda parte manda para os fundos da memória o meu antigo silêncio. Eu não sabia que estaria aqui após escrever um romance sobre Garibaldi e sua mulher, Anita. Nem o quanto isso tudo significaria para mim.

O restaurante Diana continua o mesmo. A comida na via dei Peschieri Vecchi é muito mais barata e melhor. Mas continua para mim um abrigo acolhedor, apesar do maitre mal humorado, que parece escolher os clientes na porta. Dessa vez, não estou sozinho. Trago comigo a Mulher Desaparecida, que é  sempre elegante e por isso combina com Bolonha como se fosse parte do retrato na cidade.

Saio de Bolonha, terra de meus avós, mais uma vez. Levo a Mulher Desaparecida e com isso não serei eu desta vez a sentir falta da cidade: ela já não será a mesma sem nós. A história segue com suas transformações, mas daqui outros 20 anos, em 2037, quem ler isto poderá avaliar plenamente esta simples verdade.

Bolonha: a elegância se alinha como os astros




Um exílio para voltar

O que estamos fazendo aqui? Fuga do Brasil e da realidade? Volta súbita a um passado de esperança, ou esperança renovada?
Retirados de um país sem perspectiva, sinto-me novamente no exílio voluntário. Hoje, os exilados brasileiros não têm motivação política. Apenas cansaram de lutar inutilmente por um país que teima em reprovar, na prática, as previsões sobre seu futuro promissor. São previsões mais baseadas na riqueza natural do território explorado por estrangeiros e pelos próprios brasileiros que se instalaram no poder há gerações – e dele extraem a riqueza, como quem drena o seu sangue.
O Brasil hoje está perdido, mais perdido que nunca, sem uma liderança capaz de renovar a economia, restabelecer os bons valores, recolocar a coletividade nos trilhos. Dar pesrpectiva ao país e a seus habitantes honestos e trabalhadores, hoje apenas frustrados, exaustos de tanto sacrifício.
Na vida, no País, vi tanto esforço, e tantas vezes, apenas para tudo desmoronar ou ser desconstruído. O Brasil do Estado de Direito, da honestidade, da democracia, da estabilidade econômica, da justiça social, do exemplo de liderança para o mundo surge em espasmos – e volta a desaparecer. Tantos recomeços, tantos avanços supostos, e, de repente, não sabemos onde estamos.
A bolha de ilusão dos últimos anos explodiu de repente. Nada temos, a não ser o desnudamento das coisas como são. Pelo menos a justiça não se rendeu, e faz o seu trabalho. Mas mesmo com tantos indo para a cadeia na operação lava-jato, do governo e fora dele, não há razão para otimismo. O que aconteceu, em larga escala, é apenas reprodução do que acontece no Brasil desde a colonização portuguesa, como pude me conscientizar ao pesquisar para os livros A Conquista do Brasil e Desbravadores do Brasil.
O Brasil sempre foi isso: um largo território para ser espoliado por arrivistas e a elite nele incrustrada. Apropriaram-se dos recursos naturais e se acostumaram ao mais selvagem tratamento do povo, desde a eliminação simples do índio até a escravização e submissão da gente mais simples. Já era assim, e tudo indica que sempre será.
Vejo na Europa bastante pobreza. Em Roma, há muitos mendigos na rua. Não há aquela gente bem vestida de outros tempos, mulheres chiques de meias negras rendadas e cavalheiros em ternos Zegna. Os taxistas entraram em greve por causa do Uber. Volta e meia, uma passeata causa rebuliço na rua. Mas há a velha cultura. A educação. O orgulho. E respeito pelo ser humano.
Agora percebo o que viemos fazer aqui. Não é para esbravejar ou esperar que mudem os outros, o Brasil ou o mundo. No meu caso, é para voltar a ser o que eu era. Ganhar energia, para ter novamente a esperança: de uma vida melhor. De um mundo melhor. Ter de novo esperança no amor. No bem.
Vim para reencontrar o que gostei e gosto. Lembrar das minhas razões. Da minha identidade. Lembrar do desenho e das fontes de criação. Da vontade de escrever. Recuperar a crença na felicidade, na construção do futuro, nas ideias, ideais e sentimentos que me levam aos livros; não o fim, e sim o ponto de partida para a ação.
Venho não para o exílio, afinal. Ou venho para o que servem os exílios. Venho, como sempre, para voltar.

domingo, 5 de março de 2017

Anita e a vida ao extremo

O frontão da tumba de #anitagaribaldi no #gianicolo  em #Roma retrata a cena em que ela procura #Garibaldi entre os mortos da batalha de Curitibanos. Na realidade ela era prisioneira de guerra e, depois de ver degolados seus companheiros, conforme o uso dos gaúchos, pedira para procurar o marido no campo de batalha. Grávida, obteve o favor do general imperial. Ela estava certa de que Garibaldi não estava lá. E usou a oportunidade para fugir.

Outra cena do frontão traz Anita liderando um grupo de cavalaria. Há um célebre episódio em que ela, grávida, se lançou à frente sozinha contra o exército inimigo, muito superior em número, quando a coluna farroupilha buscava se juntar a Bento Gonçalves no sul. Para que ela não morresse, os farroupilhas,  que antes hesitavam no ataque, tiveram de avançar. Venceram a batalha, com pesadas perdas. Aquela  era Anita.


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Ao terceira cena do frontão de #Anita no #gianicolo em #Roma mostra Garibaldi carregando Anita no colo. Cercado pelo inimigo, sem poder contar com abrigo, e com a mulher grávida e doente, viveu o momento mais dramático de sua vida. Garibaldi e Anita viveram a vida no extremo - o que sugere também o extremo amor que os ligou.


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Ao voltar para a #Italia, a bordo do navio Bifronte, cujo nome ele trocou no trajeto por considerar vergonhoso, #garibaldi trouxe também sua sela, com estribos para os pés e para apoiar a lança. Hoje ela está no #museudorisorgimento, em Roma, assim como um par de calças, a boina turca e outros objetos pessoais. Levou para Itália também 60 homens da legião italiana, os "camisas vermelhas", depois de enviar na frente #Anita,  que como ele aprendeu a montar e guerrear como os gaúchos - e ganharia um lugar também na história italiana. #anitagaribaldi #romance #romancehistórico #romancebrasileiro #guerra #risorgimento