terça-feira, 14 de maio de 2024

Para onde vai o mundo

A Ética da Discussão e a Questão da Verdade, uma reunião em livro de palestras proferidas em 2001 pelo filósofo alemão Jürgen Habermas, por essas razões que só a vã filosofia explica, continua extremamente atual. No evento Revistas Perdidas, no Centro George Pompidou, em Paris, Habermas discorreu sobre um tema cada vez mais essencial e desafiador no mundo contemporâneo: como manter a sociedade unida e organizada, ao mesmo tempo em que o multiculturalismo ganha força.

A ordem social, como se sabe, depende de códigos em comum, respeitados por todos. A democracia contemporânea pressupõe, nesse concerto, a igualdade de direitos e deveres para todos. Ocorre que essa igualdade sempre esteve longe de ser perfeita e interesses de grupo, prejudicados no passado ou no presente, ganharam força - especialmente em função da comunicação digital, que empoderou grupos de interesse, abrindo divergências de pontos de vista dos antes oprimidos ou simplesmente ignorados.

Como empoderar minorias e extirpar práticas e comportamentos do passado, como descolonizar nações, sem retirar a ordem que mantinha a sociedade unida, e ao mesmo tempo evitar que a discórdia e as disputas causem uma profunda fragmentação e joguem o mundo no caos político-social?

O ser humano é o único animal paradoxal: ao mesmo tempo em que precisa da sociedade, quer exercer sua individualidade por meio da liberdade. Sua realização se dá tanto pelas suas aspirações individuais como coletivas.

Diz Habermas que fracassou o projeto Iluminista, cujo grande resultado são os regimes democráticos da era contemporânea, instaurando a cidadania e o direito individual. A democracia atual, adaptada da antiga Grécia com um sistema representativo mais sofisticado para uma sociedade mais numerosa e complexa, não deu conta de promover a igualdade, muito menos riqueza para todos.

Pode parecer fracasso, mas, como digo no livro A Era da Intolerância (editora Matrix), os males da democracia contemporânea são resultado do sucesso. O resultado do Iluminismo e da democracia dele frutificada foi proporcionar grandes avanços para a sociedade - como a redução da mortalidade, o aumento da expectativa de vida, o aperfeiçoamento da tecnologia numa escala jamais vista e, por fim, uma série de mudanças sociais.

Caem estruturas, como a relação entre "patrão e empregado", da mesma forma que no passdo caiu a escravidão. Questiona-se todo tipo de situação desigual, movimento que levou ao fim patriarcados ou matriarcados e vem criando um "empoderamento do oprimido", seja por sexo, cor, raça, cultura: a mulher, o gay, o negro, o indígena.

Como acomodar interesses numa sociedade que vem de diferentes vértices da história e da cultura e conciliar "identidades individuais e coletivas"? A valorização do pluralismo cultural, com o respeito à perspectiva de diferentes povos ou grupos, torna-se também um desafio para a manutenção da agregação social, ameaçada pelo sentimento de submissão de uns a outros.

"Devemos então procurar saber como cada um dos demais participantes procuraria, a partir do seu próprio ponto de vista, proceder à universalização de todos os interesses envolvidos", diz Habermas. Daí a necessidade do diálogo construtivo que ele propõe.

A ideia iluminista de que "uma pessoa só é livre quando outros são livres igualmente" vem sendo atacada pelas correntes sócio-políticas para as quais é preciso restaurar a ordem por meio de alguma forma de autoritarismo. Há uma crítica da democracia pela própria democracia e um movimento de ressurgimento do conservadorismo, entendido no sentido que lhe deu Schopenhauer, de busca pela restauração da ordem. 

Ao mesmo tempo, grupos extremistas procuram semear o caos, para surgir como solução e apoderar-se das posições de comando - a história de todos os golpes totalitários, que, para derrubar a democracia, atacam a sua própria base, que é a liberdade e a igualdade, e a base destas, que é o princípio iluminista da razão.

O Iluminismo não é um fracasso, ou o fracasso da razão. Ao contrário, gerou grandes avanços. Estes, porém, por sua vez, criaram novos e maiores problemas. Num mundo que prosperou muito e gerou grandes riquezas, surigiram também grandes distorções, especialmente uma concentração de riqueza semprecedentes, com equivalente desigualdade social.

Para ssanar esse cenário, sem perder o rumo democrático, Habermas nos aponta a saída. Como Bartley, discípulo de Karl Popper, adota a ideia de uma ecologia da racionalidade, como uma aliança para a organização social.

Habermas propõe uma "ética da discussão", com o objetivo de "nos proporcionar uma nova formulação do projeto kantiano de estabelecer um fundamento objetivo de normas práticas". Creio, que, em 2001, o filósofo não imaginava que, na era da informação, a discussão poderia ser utilizada também para fomentar o ódio, disseminar mentiras e manipular a opinião pública, como meio de desestruturar a confiança na democracia e criar condições para golpes de fundo totalitarista, em países como o Brasil.

No entanto, ele já apontava para a substituição do "paradigma kantiano da subjetividade" (um comportamento em comum a todas as pessoas, que aceitam normas às vezes não explícitas sem discuti-las, e para o filósofo Immanuel Kant seriam a base da socialização) pelo "paradigma da comunicação" como elemento essencial para a formação dessa consciência coletiva comum - e o concerto entre os interesses de grupo e os interesses gerais.

A preocupação de Habermas, que é o grande dilema do pensamento contemporâneo, é como preservar o Estado, e a gestão dos interesses em comum, criando um equilíbrio que permita ao governo funcionar. E tem de funcionar, já que todos, seja qual for sua cultura, cor, credo ou posição social, dependem de água potável, pavimentação nas ruas, segurança e outras atividades que, para serem mantidas e geridas com equidade, dependem de um consenso social mínimo.

O entrechoque de interesses, com a disputa pelo controle do Estado por um grupo específico, em vez de representar e pesar as diefrenças da sociedade, sempre existiu. No limite, ele leva aos caos.  Em alguns países, especialmente o Oriente, como a China, a agregação social foi mantida por regimes de opressão, que, na virada do Século XX para o XXI, tiveram no entanto de se permitir alguma distensão, face às crises internas criadas pelo dirigismo estatal e face ao progresso do mundo livre ocidental.

Porém, chegou a vez da democracia contemporânea ser desafiada a evoluir para uma sociedade que aumentou sua complexidade e desenvolveu novos mecanismos de participação, organização e manifestação, numa velocidade muito maior do que a do antigo sistema representativo, que assim perdeu muito da sua legitimidade. 

Com isso, o autoritarismo voltou a ser tornar uma sombra, não apenas nos países onde sempre vigorou, incluindo a Rússia, como nos próprios países democráticos. A começar pelos da América Latina, com uma história recorrente de apelação aos militares e outros instaladores da "ordem", geralmente com a aplciação da violência. Os defensores do emprego da força esquecem que a abolição do Estado de direito faz com que no dia seguinte os próprios aplicadores da ditadura no dia seguinte podem ser vítimas dela. Num regime de terror, ninguém está a salvo. 

Habermas observa que a democracia do mundo novo deve promover as condições "econômicas, sociais e culturais que garantam uma participação abrangente e competente de todos os que podem ter algum interesse no discurso prático; e, em segundo lugar, a condição de que cada parte disposta a aceitar as normas intersubjetivamente reconhecidas possa contar com que todas as demais partes interessadas se comportem da mesma maneira". 

A "intersubjetividade" de Kant, ou a "metamoral" de Habermas, que formam esse corpo psicossocial onde estão regras não ditas e que agregam a sociedade, são justamente a área em que os ideólogos da comunicação de massa na era digital trabalham, de forma a mobilizar as massas em torno de projetos antidemocráticos. A repetição de bandeiras pela disseminação do ódio e a desestabilização da sociedade organizada vigente, que visam o golpe e a instalação de grupos de interesse no poder, procura modelar justamente essa consciência coletiva invisível, com instrumentos de comunicação que não existiam ao tempo da propaganda nazifascista, muito eficiente para sua época.

Muitos teóricos hoje falam em "plasticidade neural", isto é, na mudança do próprio cérebro humano, como uma máquina que se adapta às influências externas, passando a funcionar de uma forma diferente; o neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis menciona em sua palestras o que chama de uma "rede neural", que conecta os seres humanos e pode provocar movimentos coletivos, da mesma forma que as formigas se orientam para uma mesma tarefa ao mesmo tempo, sem nem mesmo comunicação.

Para Habermas, o espaço onde as diferenças são resolvidas ainda deve ser o da democracia constitucional, e não no âmbito da "teoria moral". Contra os profetas da "terra plana", da anti-razão e do ati-Estado de Direito, é preciso uma defesa da razão, para que as questões possam ser sanadas de forma pacífica dentro de "um Estado constitucional em que o reformismo democrático é institucionalizado como parte normal da política".

Assim, "os cidadãos que se dedicam à realização desse projeto conjunto podem, com coerência, promover a melhoria das condições de acesso à política deliberativa e participação nesta, ao mesmo tempo que podem racionalmente esperar que as normas sejam devidamente respeitadas".

*

Pode-se dizer que esta é a visão otimista do problema, uma saída dentro do que Habermas chama de "padrão evolutivo da modernização social e cultural". Ele defende a criação de uma"teoria da ação comunicativa" para o aprofundamento do estudo da crise, bem como de uma "teoria da racionalidade" e uma "teoria moral".

Vê uma convivência possível entre as diferentes culturas que pedem espaço e afirmação na sociedade contemporânea, ao mesmo tempo em que se mantém uma"cultura política geral", que "deve ser comum a todos os cidadãos para que a sociedade possa conservar-se".

Essa cultura, no entanto, depende essencialmente do bom funcionamento do Estado, que sofre por sua incapacidade de atender a todas as demandas da sociedade multicultural e também da economia digital global, subtraindo meios e recursos dos Estados nacionais. Isto faz com que a sociedade passe a ser progressivamente dominada por auto-organizações paralelas ao estado, supostamente "protetoras" de grupos de interesses, em especial as igrejas e o crime organizado.

Habermas nota que o Estado tem falhado inclusive no estabelecimento de um "Estado incolor", como promotor da igualdade racial, modelo que vem sofrendo uma "revisão". Cita Will Kymlicka pelo desenvolvimento da noção de "cidadania multicultural". 

Tal conceito viria a abraçar uma nova visão dos direitos civis, onde a noção geral de igualdade passa a considerar que os "cidadãos desenvolveram sua identidade pessoal no contexto de certas tradições, em ambientes culturais específicos, e que precisam desses contextos para preservar sua identidade".

Nesse sentido, propões incluir dentro dos direitos civis também "direitos culturais", que "garantem o acesso a uma tradição e à participação nas comunidades culturais de sua escolha, para que possam estabelecer sua identidade".

Não é uma tarefa simples, sobretudo pelo fato de que, para a implantação de qualquer mudança, é preciso passar justamente pelas dificuldades da "ética da discussão". "Esse modelo, como é óbvio, leva em si o perigo intrínseco da fragmentação", afirma Habermas. "Uma comunidade não pode se fragmentar na multiplicidade de suas subculturas, e penso que isso so pode ser permitido sob a condição de que todos os cidadãos possam se reconhecer numa única cultura política que transcenda as fronteiras de sua diversas subculturas".

Tal disposição é ainda mais importante nas sociedades onde as culturas reconhecidas como"minoritárias" estão em conflito com as majoritárias. "Do ponto de vista histórico, é evidente que a cultura da maioria sempre determinou (refiro-me à França) a cultura política em geral", afirma o filósofo. "A partir do momento em que as subculturas reprimidas tomam consciência de suas tradições específicas e uma cultura supostamente homogênea dá lugar a uma sociedade cada vez mais 'multicultural' (no sentido atual do termo), as pressões de adaptação tendem ao menos a uma certa separação entre a cultura política e a cultura majoritária".

Não é nada fácil, porém, a tarefa de agregar a sociedade digital, sobretudo em função da ação da guerrilha que procura minar as condições da sua própria discussão, que é a racionalidade e a sua base, a noção de verdade. 

Verdade, para Habermas, é uma "proposição verdadeira, para sempre e qualquer público, não só para nós". Ele assim derruba a noção de pós-verdade, ou da ideia da "verdade de cada um", retomando a relação entre a noção de verdade com o do fato científico, objetivo, e que pode ser empiricamente comprovado.

Não se trata também da verdade "moral", religiosa, que justifica tudo, e à qual não cabe discussão, mas um conceito que pode ser aceito por toda a sociedade, independentemente de crenças e avaliações morais e subjetivas, de forma a preservar a própria noção iluminista de igualdade. Nesse sentido, a noção de verdade não pode se dissociar da "argumentação, no contexto do mundo vital das práticas cotidianas".

Para minar a democracia, os grupos de interesse têm atacado a noção de verdade e a própria razão, que é base da igualdade, pois não há motivo para se acreditar que alguém tenha mais direitos que os outros, como aponto em A Era da Intolerância. Ainda não há nenhum sistema melhor que a democracia como campo para solução pacífica de conflitos, e o reformismo onde a convivência entre o multiculturalismo e a "cultura única" (representada pelo Estado democrático) proposta por Habermas me parece uma boa saída.

Quem disse, porém, que a humanidade resolve suas grandes questões de forma pacífica? Receio que tenhamos, nós da geração da liberdade, criado e desfrutado de um período relativamente pacífico e próspero, mas que tenha sido apenas um breve parênteses na história. E que este animal bípede, terrível espécie dominadora da terra, movido por uma "metaconsciência" que dispara comportamentos coletivos violentos, no limite brutais, jamais vá perder sua dose de selvageria ancestral.

quarta-feira, 1 de maio de 2024

Senna e um aperto de mão


 Eu não estava esperando, e talvez por isso me lembre ainda mais, como se fosse ontem - ou melhor, hoje, agora. Eu trabalhava numa revista de estilo de vida, eles estavam trazendo para o Brasil a marca Audi. Na sala de Leonardo Senna, irmão do Ayrton, em seu escritório no bairro de Santana, de repente, sem bater na porta, ele entrou. Levantei, Ayrton veio, me deu um sorriso, e apertou minha mão.

Um simples momento, do qual eu lembro até hoje, uma sensação difícil de descrever. Como é difícil de descrever a importância que Ayrton tinha naquele tempo, em que o Brasil lutava para sair de uma crise penosa, desacreditado de si mesmo, e ele levantava os brasileiros, carregando a bandeira do país, a cada vitória. Mostrava que o Brasil ainda podia ser o melhor, e que podíamos fazer coisas fantásticas, podíamos acreditar em nós mesmos, acreditar na vitória, acreditar no impossível.

Acreditar era fundamental, e ele, além do talento natural, tinha aquela obstinação pela vitória: não desistia, lutava contra o sistema, contra as adversidades, as circunstâncias que o jogavam para trás. No dia em que morreu, exatos 30 anos atrás, o impacto foi ainda mais terrível, porque não morria só Senna, o ídolo do esporte. Era uma ducha de água fria em todos os que começavam a acreditar, que viviam aquele tempo intensamente, absorviam seu espírito. Ele era humano, afinal,  e o Brasil por um instante pareceu amaldiçoado pelo azar, pelo destino, em choque como o cavaleiro de metal, imóvel dentro daquele carro batido contra o muro do destino.

Não houve choro comovido, não houve multidão na rua acompanhando o féretro, não houve palavra amiga que consolasse aquilo. E eu sinto essa perda até hoje.

Então eu penso naquele aperto de mão. Um aperto de solidariedade, de positividade, de confiança. De gente que se conhece, não por se conhecer, mas porque no Brasil todos se conhecem, sabem como são. Estamos entre irmãos, dizia aquela mão que guiava o carro que levava um país e segurava a minha.

Obrigado, irmão, 30 anos depois, eu e muita gente ainda te amamos.


@institutoayrtonsenna

@leonardosennasilva 

#ayrtonsenna

segunda-feira, 29 de abril de 2024

Os meninos e os homens

Hoje em dia as crianças começam muito cedo a sofrer pressão pelos adultos para verem as coisas do jeito que os adultos vêem. Essa realidade é ainda mais dura nos lugares onde famílias dependem das crianças. Como no Brasil, onde elas são colocadas para pedir dinheiro na rua, ou, no caso dos meninos, para jogar futebol, transformando-se na esperança da família de sair da miséria. É uma responsabilidade muito grande.

Il Capitano: há bondade nos meninos

Vi  há pouco tempo o filme italiano Il Capitano, sobre dois meninos africanos com o sonho de migrar para a Europa e assim sustentar  suas respectivas mães e famílias. Salvar uma mulher que deixam para a morte no deserto, ou o amigo levado pela máfia para trabalhar como escravo, ou ainda os refugiados num barco prestes a afundar, são responsabilidades grandes demais para um menino, mas, como mostra o filme, é isto o que se pede dele.

Il Capitano é a comovente jornada da transformação precoce e violenta de meninos em homens. E o que se vê é ainda a beleza dos sentimentos mais puros - o que, no homem feito, mantém acesa a chama dos seus melhores sonhos.

É isto, afinal, o que é ser homem. Não se trata de sexo, como gênero, mas de um conjunto de valores que fazem os homens serem homens, segundo a perspectiva masculina. Homens são pais, irmãos, filhos, trabalhadores, arrimos de família. São amigos, leais, defensores dos fracos e da justiça, cumpridores da palavra, corajosos como os heróis que admiramos desde a infância.

Muita vezes homens sacrificam sonhos e objetivos pessoais por amor de alguém ou de uma causa. Conheço muitos homens devotados à mulher, à família, ao país, à arte, à justiça, às causas sociais  mais nobres, que colocam acima deles mesmos.

Todo homem tem em si o menino e age conforme foi criado. Fala-se muito dos abusos sofridos por mulheres, o que é real, mas pouco dos meninos que sofrem maus tratos na infância, inclusive e principalmente de mulheres, o que também é real. O abuso não é uma questão de gênero.

Se queremos melhores homens, é preciso tratar bem dos meninos. E deixar também, sob todos os aspectos, que tenham infância.

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Musk e o novo que é velho como o mundo

Elon Musk está demitindo 10% de seus funcionários. A Tesla não está vendendo seus carros elétricos como ele imaginava. Elon Musk também não está se vendendo como imaginava.

A intromissão de Musk na política brasileira, dizendo que não vai colaborar com a Justiça no inquérito das fake news, mostra que o novo, no mundo dos negócios, é na verdade bem velho. Em muitos sentidos.

Musk é velho como o mundo, primeiro, porque se mostra o empresário de faroeste, que só pensa nos seus interesses, e não nos países, ou nas pessoas.

Do tamanho que ele ficou, torna-se uma ameaça mundial. As megacorporações, do jeito que são hoje, acreditam que têm recursos e poder para confrontar os Estados nacionais. Especialmente os titubeantes, como o do Brasil.

São elementos imponderáveis da vida contemporânea. Empresários privados aventureiros que se metem em coisas antes reservadas ao poder público, como a corrida espacial, deixam perguntas. E quem regula o espaço? Nessa zona onde não há fronteira, como no mundo das corporações transnacionais, o que podem fazer? Resposta: algo que atende seus interesses, geralmente diferentes dos coletivos. 

Musk, o bilionário elétrico-digital, nesse aspecto, é também tão antigo quanto os velhos barões do petróleo  e da ferrovia. O discurso de que o carro elétrico vai salvar o mundo da poluição é uma enganação descarada. Não há nada mais mentiroso do que acreditar que o carro elétrico é ecológico. 

Para fazer funcionar carros e celulares com suas baterias, o engenho menos biodegradável já inventado pelo ser humano, é preciso uma quantidade enorme de minérios encontrados na superfície do planeta - os "terras raras". Por conta disso, extensas áreas de terra hoje são  revolvidas - em Araxá, Minas Gerais, por exemplo.

Por ser mais barato que comprar áreas continentais, empresas de 26 países hoje raspam o fundo do mar, com o objetivo de recolher lítio e outros elementos. Estão destruindo a flora e a fauna marinhas e com elas o crio, de onde vem a maior parte do oxigênio do planeta. Perto disso, destruir a Amazônia inteira não é nada.

E o que dizer de como ficaremos daqui oito anos, quando essas baterias veiculares se transformarem em lixo?

Quando as vendas de algo vão piorando, começam a vender para o Brasil como grande novidade. As vendas de elétricos balançam no exterior enquanto chegam por aqui como algo  sensacional. Muitos lançamentos de carros elétricos vêm sendo anunciados. Graças ao incentivo fiscal - nosso dinheiro - como ocorreu nos Estados Unidos.

Musk diz que é a favor da liberdade, como se seu negócio dependesse do livre mercado, e não do dinheirão que o Estado botou nele. No campo político, esqueceu também que o limite da liberdade é o direito - e a liberdade - do próximo. Não se pode fazer algo que coloca em risco o futuro do planeta, em qualquer área.

O mesmo se pode dizer das redes sociais, negócio onde ele entrou para enganar o público sem intermediários. A mídia digital vem sendo usada sistematicamente para espalhar mentiras, com finalidade eleitoral, de forma inescrupulosa, e proteger os interesses por trás dessas mentiras. São usadas, também, para patrulhar quem pensa diferente e constranger a opinião alheia - o contrário da liberdade.

Quem é Elon Musk? A resposta está bem clara. É mais uma raposa, travestida de benfeitor, dessas que querer tomar conta do galinheiro para fazer a festa. É temporário. Acabam levando chumbo do fazendeiro, antes de acabarem os ovos - e as galinhas.

domingo, 14 de abril de 2024

Decolonizando a decolonização

A convite da artista plástica Cynthia Loeb, passei pelo Cama de Gato, exposição dos artistas reunidos no condomínio de ateliers conhecido como Edifício Vera, no centro de São Paulo. No meio de muita coisa brilhante, lá encontrei o trabalho de Sérgio Adriano H - artista plástico que se dedica a rever, em forma de arte, a história do Brasil. Preocupa-se em denunciar a narrativa clássica sobre a negritude, a escravidão e o discurso histórico, feito da perspectiva do colonizador português.

Hoje há um forte movimento pela ideia da “decolonização”, palavra que ele aplica em muitas de suas obras. Em sua arte, Sérgio cola as páginas dos livros de história e as utiliza como tela, gravadas com essa palavra. Pinta de branco negros sendo castigados no pelourinho, nas gravuras históricas clássicas – uma forma de mudar a perspectiva e chocar quem vê a cena. Os negros de Debret se tornam brancos.

A “decolonização” – no sentido de extrair a perspectiva colonizadora – é uma preocupação para nós, jornalists e historiadores contemporâneos, que temos revisado a história do Brasil, como aprendemos nos livros escolares. Em A Conquista do Brasil (1500-1600), por exemplo, procuro mostrar a vida dos povos indígenas tal como era e destacar lideranças ignoradas pela historiografia oficial, como Aimberê, Cunhambebe e Piquerobi, muito mais importantes para a nossa história que Pedro Álvares Cabral.

No entanto, buscamos um equilíbrio, pois não dá para simplesmente jogar fora a informação dos jesuítas, detentores da narrativa sobre a história do Brasil na época. E que também escamoteavam portugueses como João Ramalho.

Não dá para embarcar na ideia dos “povos originários”. Como aponto em A Conquista do Brasil, os indígenas encontrados pelos europeus no território hoje do Brasil não estavam aqui há mais que 500 anos – terra que tinham conquistado de forma tão inclemente quanto o fizeram os portugueses, de quem se tornaram aliados contra os seus próprios inimigos.

A história, a meu ver, tem de ser contada pelos fatos, e os fatos dentro de seu contexto, não de pontos de vista que são narrativas contemporâneas. É preciso retratar a realidade com o máximo de informação objetiva. A história é o que é: ponto. 

A historiografia deve ser entendida da mesma forma, como parte da história. Colar páginas ou queimar livros pode valer como manifestação artística, uma forma de apontar injustiças e chamar a atenção para a igualdade de direitos. Porém, criar uma narrativa para se sobrepor a outras não é a melhor maneira de mudar alguma coisa.






Uma forma de obscurantismo não pode ser substituída por outra. Trata-se apenas de mudar privilégios, sem a promoção de uma real igualdade.

A arte faz seu papel, de chamar a atenção, chocar, abrir mentes. Porém, é preciso entender também os livros no seu contexto, considerá-los e preservar toda forma de história, em vez de queimá-la. Este é o único caminho: encarar a realidade, e não sepultá-la, de maneira a podermos mudá-la, de fato, para algo melhor.

domingo, 24 de março de 2024

A profissão proibida - 2

*

Entrei pela primeira vez na sala de aula do curso de Redação na metade do segundo semestre de 1982. O professor era Alberto Manente, um dos poucos que não eram apenas acadêmicos, mas profissionais atuantes - naquela época, repórter do Estadão. Como cheguei atrasado, fui passando discretamente pelo pessoal já sentado nas duas últimas fileiras do fundo. Achava que Manente nem sabia quem era eu, mas, ao me ver, deslizando entre as carteiras, parou a aula.

- Senhor Thales Guaracy - ele disse, perante a turma, em suspenso, galvanizada. - Que milagre a sua presença. O que houve hoje, faltou a namorada?

Desde que tinha voltado do Enecom em Florianópolis, namorando pela primeira vez na vida, aquilo tinha virado minha prioridade. Muitas vezes chegava na escola e, em vez de entrar em aula, deitava em algum pedaço de gramado para namorar. Os amigos assinavam por nós a  lista de presença, e assim eu ia levando.

Poucos na faculdade tinham namorada fixa. Na minha classe, éramos apenas dois: eu, e o William Bonermes, que então ainda não tinha inventado o sobrenome Bonner, e atendia (como até hoje, entre nós) pelo pelo apelido de Billy. Sujeito de relacionamentos longos, namorou uma colega da nossa turma até o último ano da Faculdade.

Eu queria aprender a escrever, claro, mas fazia isso de outras formas. Na hora do almoço, às vezes ia à casa de Marcelo Durst e me tornei amigo do pai dele, que admirava. Walter George Durst era então um dos dramaturgos mais quentes da TV Globo, depois de adaptar Gabriela, Cravo e Canela para a TV. Eu adorava tudo ali. 

Durst, pai, tinha na edícul da sua bela casa um escritório recheado de livros e cartazes de filmes da mulher, atriz de grande beleza, que adorava receber os amigos dosi filhos e nos servia a comida na cozinha. Depois, ia ao escritório de Durst conversar sobre escrever. Sentávamos em poltronas confortáveis e ele falava sobre a técnica da novela - muito do que penso hoje sobre escrever, aprendi ali.

Durst dizia que toda boa história de girava em torno de um conflito, o elemento essencial da novela. Como naquele tempo não havia o meio digital, e mesmo a pesquisa de opinião do Ibope não era algo tão sofisticado, ele fazia sua pesquisa pessoal sobre o que as pessoas estavam achando das novelas, de forma a orientar a direção das histórias. Para isso, ia toda semana à feira.

- Fico lá escutando o que as mulheres, principalmente, estão dizendo - me explicou.

Por alguma razão, provavelmente meu interesse por escrever, enquanto Marcelo preferia se dedicar à imagem, ele gostava de mim. Mais tarde, chegou a me convidar para integrar um núcleo de dramaturgia da TV Globo que estava formando em São Paulo. Cheguei a escrever para ele uma sinopse, que foi aprovada, para um seriado à tarde, com pequenos contos. 

Porém, nesse mesmo momento fui promovido a editor de Assuntos Nacionais em Veja, posição importante na revista, então o veículo nacional mais influente do país, em pleno processo de redemocratização. Tive de escolher entre escrever em Jornalismo e na TV - e não sei até hoje se certo ou errado, escolhi ficar em Veja.

Por conta de Marcelo, que era da mesma turma da minha namorada, andava mais com o pessoal da classe deles que da minha mesmo. Participávamos dos grandes eventos cívicos, em um momento de grande pulsação da história brasileira. Fomos juntos à grande manifestação do dia 16 de abril de 1984 no Vale do Anhangabaú: estávamos na ladeira gramada em frente ao Teatro Municipal, cuja inclinação oferecia uma arquibacada natural, no grande comício das Diretas-Já. 

Na passarela sob o viaduto do Chá, improvisada como palanque sobre a avenida, discursaram inflamadamente, diante da massa tão espremida que parecia um mar humano, políticos de todos os matizes e as celebridades da época. Osmar Santos, popular locutor esportivo, funcionou como mestre de cerimônias. Fafá de Belém, no auge da fama, conhecida pelos seios abundantes e a voz poderosa, cantou o hino nacional.

Discursaram as diferentes alas da chama Frente Ampla, que deu origem ao que se chamou de Nova República: Lula, Fernando Henrique, Mário Covas, Miguel Arraes, Leonel Brizola, Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Franco Montoro (governador eleito de São Paulo e articulador do evento). Dali saíram os grandes personagens da redemocratização, alguns dos quais seriam os próximos presidentes da República.

Fiz naquela turma um grande amigo, Fábio, aluno de Rádio e TV, que produzia um radionovela satírica  veiculada na Rádio USP de madrugada e por isso chamava Pulga no Lençol. Convidou-me para participar e eu interpretava o papel do rei louco, que andava à noite berrando histericamente pelo palácio. 

Viajámos juntos, vivíamos na casa do H, que morava em uma república na avenida Rebouças, íamos ao cinema, a shows, sempre em bando. Parecia que estávamos vagabundeando, mas ali nos formávamos. Dessa turma sairia, por esses interesses, a mais importante crítica de cinema da imprensa, assim como um dos maiores diretores de fotografia de cinema do país da nossa geração, e assim por diante.

Eu só estava ali por ser o namorado da garota mais popular da turma, meio tímido e esquerdo, mas era bom estar entre eles, e ir à casa de R, minha namorada, porque era bem diferente da minha. Não podia levá-la para minha própria casa, porque minha mãe arranjara um pretexto qualquer para detestá-la, embora nunca a tivesse conhecido pessoalmente. Já eu, na casa dela, era muito bem tratado por seus pais e irmãos e via como era levar uma vida mais normal em família.

*
Foto: Teresa Pinheiro

Eu preferia estudar Ciências Sociais, que me davam estofo para escrever, e levava o curso de Jornalismo como podia, ainda mais quando as coisas ficaram mais difíceis de dinheiro.

Meu pai havia comprado um velho Chevette vermelho de minha tia Malfisa, quando completei 18 anos, para que eu pudesse ir à escola, em vez de tomar o interminável Vila Nilo. Porém, logo depois decidiu construir uma casa em Santana de Parnaíba e me tomou o veículo de volta. Vendeu-o e, com o dinheiro, comprou as portas da casa, ainda em obras.

Fiquei sem carro e dinheiro novamente até mesmo para tomar o ônibus. Disse a meu pai que tinha de trabalhar - e ele respondeu que não, que a escola era mais importante. Eu tinha de fazer alguma mágica, então, para me virar. E fiz.

Apelei, na época, para meu único capital: a juventude. Por conta do Marcelo Durst, cuja irmã, Ella, era fotógrafa de moda, R. havia começado a fazer fotos de publicidade para revistas - e começou a ganhar um dinheiro. Levava a sério a profissão, com requintes para mim admiráveis. Depois do banho, não esfregava a toalha no corpo, apenas tocava-o: assim preservava a pele. Eu achava aquilo desnecessário, para quem tinha 18 anos, mas não dizia nada. Por conta das fotos, ela fazia regularmente sessões de beleza num dermatologista para tirar do rosto cravos e espinhas.

Pensei que, se fizesse também fotos para publicidade, podia trabalhar apenas alguns dias por mês e continuar estudando. Só não sabia direito como começar. Havia um sujeito mais velho, que conheci no Palmeiras, onde ia tomar sol e me divertir na piscina. Pai de família, com três filhos, que gostava de se enturmar com garotões. Vivia me incentivando a entrar para a publicidade e se oferecia para me ajudar, provavelmente com segundas intenções. Quando lhe disse que estava pensando no assunto, ofereceu-me um  empréstimo de 200 dinheiros da época e com isso fazer um “book” – fotos para distribuir em agências e produtoras, que poderiam me dar trabalho. 

Aceitei, dizendo que o pagaria de volta em dinheiro, assim que recebesse o primeiro cachê. Ele ainda me deu o telefone de uma fotógrafa, Teresa Pinheiro, e fui bater no seu estúdio, no Jardim Paulistano. Ali, nas ruas arborizadas do bairro, fiz poses que hoje me fazem dar risada, umas vestindo camiseta e outras de terno e gravata. A fotógrafa me deu o contato de uma produtora de comerciais da Rede Globo. Liguei e ela me passou o endereço de um galpão na Barra Funda, com uma data e hora para eu  comparecer.

Era um teste para figurantes de um comercial das Casas Bahia. Quando cheguei, havia uma fila de candidatos  na escadaria que dava para o subsolo do galpão, onde uma banda tocava vezes repetidas o jingle das lojas. 

Ali, sentado na escada, conheci o Gérson Brenner, que esperava como eu, um lugar antes na fila, e mais tarde se tornaria ator da TV Globo. Era um sujeito extrovertido, carismático, cheio de vida, e nos encontramos muitas vezes depois, em situação semelhante, antes do tiro no assalto na rodovia Carvalho Pinto que o deixou com capacidades limitadas.

A produtora dos comerciais da TV Globo apareceu para anunciar ao pessoal da fila que as vagas estavam preenchidas e nos  dispensou, antes mesmo do teste. Quando me apresentei, logo percebeu que eu estava perdido por ali, era ingênuo e tímido, e me indicou uma agência de modelos, chamada Totem, especializada em comerciais de televisão. "Eles vão te ajudar", disse. 

Fui bater na porta da agência, com minhas fotos debaixo do braço. Depois de muito esperar, fui recebido por  H. e L., sócios da agência. Pediram que eu deixasse as fotos com eles.

- Quando aparecer algo, podemos te chamar.

A primeira vez foi desanimadora. Fui a um teste no estúdio do JR Duran, então um estrela da publicidade, no auge da fama, em uma casa na Avenida Pacaembu, perto do estádio de futebol. A fila para o teste dobrava o quarteirão. Depois de algum tempo ali sentado no meio fio, decidi ir embora - nem consegui me aproximar da porta de entrada.

Vejam como é a vida - nunca imaginaria, nessa época, que ainda seria fotografado por Duran, e mais, muitos anos depois, que o contrataria como fotógrafo, como editor de revistas como VIP e Playboy, e sua mulher, Alex, trabalharia comigo como produtora de ensaios de moda masculina. Fiz também um livro de Duran, como editor da Saraiva, e nos tornamos bons amigos.

*

Apesar daquela frustração inicial, persisti. Da segunda vez, foi melhor. Fiz figuração num comercial da Caixa Econômica Federal, algo para o qual não havia necessidade de qualquer talento especial, já que tinha apenas de andar na rua, no meio de uma pequena multidão de anônimos. Enquanto isso, um ator com dotes de ginasta olímpico dava saltos mortais múltiplos - o tamanho da alegria que devia ser ganhar na Loteria.

Caco (eu) e Luciana (Sandra), by JR
Foi para mim também como tirar a sorte grande. Com aquele dinheiro, o primeiro que ganhei, paguei o empréstimo que tomei para fazer as fotografias, conforme o prometido. Dispensei, porém, o convite do meu solícito apoiador, que me propôs um "jantar" para celebrar aquele pequeno sucesso.

Depois do filme da Loteria da Caixa, as coisas melhoraram. Para minha surpresa, começaram a aparecer testes, e com eles, trabalho. Alguém me ligava em casa, dava um endereço e horário do teste, eu tinha de estar lá. Quem tinha mais disponibilidade, era preferido. E eu dava um jeito na escola, pedindo aos amigos para assinar as listas de presença, de forma a pegar o maior número de testes possível.

As ligações vinham de repente - "vai em lugar tal". Muitas vezes eu nem sabia o que era - e caía em todo tipo de situação. Uma vez, me disseram já na van da produtora que estávamos indo para o Playcenter. Tenho labirintite com frequência e detesto montanha-russa. Já comecei a desconfiar do que se tratava.

 O Playcenter estava nessa época simplesmemte inaugurando a primeira montanha russa com um looping no Brasil. Me puseram na primeira fila do carrinho, com uma garota apavorada do meu ladoe uma câmera de cinema acomplada bem na frente. Perguntei ao diretor o que tinha de fazer.  “Faz cara de medo alegre”, me disse ele. Dei seis voltas completas naquilo, até ficarem satisfeitos com a nossa reação. Na última, já estava tão acostumado que poderia passar o dia inteiro fazendo aquelas piruetas.

Pouco depois, tive meus momentos de celebridade anônima, por conta de dois segundos em um comercial de pasta de dente, em que eu só falava uma palavra, na frente do espelho: “menta!” - com um sorriso na cara e uma escova de dentes na mão.

Para meu total constrangimento, aquilo pegou. Eu passava na rua, entrava na faculdade, ia a um bar, as pessoas olhavam na minha cara, riam e falavam: “menta”! “Menta” pra cá, pra lá, o dia inteiro.

Uma vez, quando eu estava num estúdio fazendo figuração para um comercial de cera de automóveis, vieram me perguntar se não queria fazer um teste para o comercial da Enciclopédia do Sexo. Fui até o segundo andar. O teste consistia em beijar uma mulher, ambos nus da cintura para a cima.

Fiz o teste da Enciclopédia com CP, então  a grande estrela dos comerciais de TV. Durante meia hora, ficamos ali nos beijando, até o diretor estar satisfeito. ("Não deixa aparecer a língua!" - ele dizia).

Anos depois, eu a revi por acaso, numa delegacia. Tinha sido assaltada. Falei com ela, mas acho que não me reconheceu (pudera!). Não passamos no teste, mas eu falava sempre dela, só para provocar LB, um amigo apaixonado por ela, seu admirador da TV, para fazer ele morrer de ciúme e inveja de mim.

*

Fiz um monte de comerciais – tirei inclusive a roupa na TV, num filme das cuecas Zorba, que felizmente ninguém sabe onde foi parar. Até que um dia fiz um teste para uma série de comerciais da Brastemp que resolveu minha vida. 

O teste, fiz com a atriz Giulia Gam, então uma adolescente, mas que já agia como uma estrela de cinema, com quem contracenei numa cozinha improvisada dentro de um estúdio. Repetimos a cena duas vezes: o diretor, Clemente, da Denison Propaganda, me pediu para ser um pouco menos histriônico. Nesse momento, entendi que ele já havia percebido que eu era capaz de fazer aquilo e não precisava mais exagerar para chamar sua atenção.

De fato, fiquei sabendo no dia seguinte que havia ganhado o "papel". Um mês depois, no dia da gravação, em vez de Giulia, que tinha desistido, segundo diziam para ir à Itália, encontrei em seu lugar Sandra Annenberg - depois célebre apresentadora de telejornal na TV Globo, minha amiga e, na época, atriz. 

Fizemos uma foto como os namorados para a campanha impressa, veiculada nas revistas. O fotógrafo era o J.R. Duran. Eu, que da primeira vez nem tinha passado pela porta do seu estúdio, me senti triunfante. A mãe de Sandra guardou um recorte do anúncio, com a filha sentada no meu colo, me espremendo em um sofá. Coisas de mãe (dos outros). Sandra me deu uma cópia disso, divertida, muitos anos depois.

No filme para a TV, eu fazia o papel do namorado, Caco. Tomava um balde de água na cabeça, traquinagem do irmãozinho menor da namorada, para na sequência poderem demonstrar mostrar as virtudes da nova secadora Brastemp. Minha roupa molhada rodava na secadora quando naquele justo momento entrava o pai da namorada e me flagrava vestindo apenas o robe de chambre que lhe pertencia. 

Uma historinha picaresca, cuja encenação, para ficar do jeito pretendido por Clemente, tive que repetir muitas vezes. O balde caía de cima de uma porta quando eu entrava, eu tomava aquele banho e, num outro recinto da casa de mentira dentro do estúdio, uma passadeira esquentava a ferro as mudas de roupa para eu poder tomar outro banho. Lembro, no intervalo dos muitos banhos de água fria que tive de levar, do diretor olhando as muitas plantas do cenário e dizendo: "minha homenagem ao Walter Hugo Khouri", que abusava dos efeitos florais na sua filmografia.

O contrato com a Brastemp foi uma beleza. Pediam exclusividade, então eu fiquei um ano inteiro ganhando um salário mensal, durante a vigência da campanha, para não trabalhar em outro comercial.  Com o dinheiro, pude comprar meu primeiro carro - um Fiat 147 branco -e, com as parcelas mensais da exclusividade, podia completar o curso sem precisar mais trabalhar.

A Brastemp ainda ofereceu aos atores um presente, que podiam escolher, entres os produtos que fabricava. Perguntei a minha mãe se ela queria uma geladeira, uma máquina de lavar roupa ou uma lava-louça. Ela escolheu a lava-louça, que não tinha, até porque era novidade, na época. Não acreditou muito que aquilo era verdade, até ver aquela caixa enorme entrando dentro de casa.

Ao final daquele ano, quando eu estava para me formar, e o contrato de exclusividade por terminar, H., que eu não via há mais de um ano, me chamou na agência Totem. Disse que L., seu sócio, tinha dado um calote na praça e desaparecido com o dinheiro de todo mundo.

Sabia que eu estava me formando em jornalismo e precisava de um favor. Queria que eu escrevesse por ele uma carta ao mercado, dizendo que nada tinha com aquele calote, continuava e precisava trabalhar.

Escrevi a carta. Ele me agradeceu e perguntou, uma vez que o contrato da Brastemp estava terminando, se eu queria voltar à agência. Eu lhe disse então exatamente as seguintes palavras:

- Obrigado, mas essa carta foi a primeira coisa que eu escrevi profissionalmente. É o que vou fazer. Agora, sou jornalista.

Agora sou jornalista. É a frase que, desde então, eu repito com orgulho.

*
No final da faculdade, um dia, R me ligou em casa, chorando. Fabio, em Ilhabela, tinha bebido muito, entrara na água e morrera afogado.

Foi a primeira vez que vi uma pessoa morta. Lembro de meu amigo inexplicavelmente imóvel, com as narinas tampadas com algodão, no velório. Era difícil imaginar Fábio sem vida. Ele, que se vestia de Indiana Jones para um filme da faculdade (e parecia mesmo o Harrison Ford). Ele, o otimista incorrigível. (Uma vez, rodando para a casa de uma amiga no interior em um velho Landau emprestado de um tio, na hora do abastecimento observei que só a tinta da pintura estava segurando a lataria sobre a roda, carcomida pela ferrugem. "Boa essa tinta, não?" - ele respondeu). 

Fábio, para mim, era o melhor de nós. A constatação da fragilidade da vida caiu em mim como um raio. Todo o bando estava também morrendo de tristeza. R me chamou para ir a um lugar, casa de alguém, para falar de Fábio, lembrar de Fábio, consolar-se uns aos outros. Eu disse que não ia. E não fui.

Podem ter pensado que eu não era amigo, deles ou de Fábio, mas o fato é que eu simplesmente não conseguia lidar com aquilo - ou só podia lidar sozinho. Afastei-me de R, afastei-me da turma, caí numa espécie de limbo.

A morte de Fábio fechou trágica e simbolicamente um ciclo: o fim da faculdade e talvez da melhor fase de todas, em que tudo é aventura. Nela, descobri o que queria fazer, o amor, o sexo, enfim, a vida. E descobri também a morte.

Depois disso, nunca mais fui aquele inocente cabeludo que foi se dissolvendo pelo resto da minha vida. Mas, de certa forma, ele ainda está em mim, assim como a lembrança do Fábio e de todos aqueles momentos que, de certa forma, moldaram aquilo que eu fui depois - e ainda sou.

sábado, 16 de março de 2024

A busca das almas mais sensíveis

Ela é casada e mora em outra cidade. Ama o marido, embora diga que ama "também a ele, F". Ele já deixou dois noivados, o último a pretexto da doença - tem tuberculose, algo, naquela época, fatal.

Tem tudo para dar errado, mas Kafka se apega a essa relação, por um motivo: aquela mulher 13 anos mais nova, que mal viu, uma só vez, está traduzindo um conto seu para o tcheco. Ao fazer dela as palavras dele, se estabelece a ponte.

E ela o traduz tão bem. Neste mundo em que ninguém se interessa realmente pelo outro, ou se importa, ela é capaz de entender, olhar por dentro. E essa relação de trabalho de repente se apresenta como uma estreita possibilidade de amor - e isto vale todos os esforços do mundo.

Em cartas a Milena, que reúne as cartas de Kafka a Milena Jesenská, entre 1920 e 1923 - correspondência incompleta, pois não se conhece as respostas dela -, Kafka aparentemente monologa em busca de amor no mundo inóspito.

Esse é o sentido não apenas das cartas, como de sua psique, traduzida em sua obra, expressão e busca das almas mais sensíveis, o que lhe custou também, provavelmente, a saúde.

Kafka é comumente interpretado como uma espécie de mestre do absurdo - o sujeito que se transforma em barata de A metamorfose, ou perseguido por um sistema tão perversamente sem sentido que ganhou justamente o nome de "kafkiano". 

Milena de fato o conheceu bem. Escreveu, de Kafka, que "ele via o mundo cheio de demônios invisíveis que aniquilavam e despedaçavam pessoas indefesas". Esse é o verdadeiro sentido de toda a sua obra - e das aflições pessoais que o mantinham solitário.

Com certa psicologismo, pode-se entender que a solidão de Kafka vem de certo sentimento de abandono, que manifesta sobretudo em sua Carta ao Pai, outra obra epistolar, em que fala sobre ser constantemente desaprovado desde a infância. O amor então se torna um prenúncio do sofrimento.

Suas cartas, como seus livros, são um rico manancial para os analistas, extremamente contemporâneo, numa época em que, apesar da extrema facilidade de comunicação, as pessoas se isolam cada vez mais e a solidão se torna uma epidemia social.

Kafka é, também, um bom exemplo para quem consegue quebrar esse isolamento por meio de um talento artístico, como uma ponte para superar o medo do outro - isto é, de ver seu amor  novamente traído.

A arte - no caso dele, a literária - é a grande válvula de escape para as tristezas inconsoláveis e as pessoas que facilmente se magoam, encontrando, como alternativa à solidão, um campo salvador (ou misericordioso) para a solidariedade.