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terça-feira, 28 de julho de 2015

A cultura do apedrejamento


Quando a gente publica um livro ou faz qualquer coisa que seja pública tem de estar preparado para tudo. Há os amigos, os fãs, os leitores que podem gostar ou não, assim como há também um tipo de gente raivosa que gosta de atingir os outros, uma raiva aparentemente gratuita. Estava demorando, mas outro dia apareceu um desses na Amazon, fazendo um comentário sobre A Conquista do Brasil, usando porém o livro para me ofender, sabe-se lá o motivo. Depois o post foi retirado, creio que pelo próprio autor, mas ele dizia em palavras bem baixas, resumindo, que ler o livro era perda de tempo e eu sou um zero à esquerda.

Ninguém faz mal aos outros de propósito, acredito, e menos provavelmente se faz mal a gente que nem se conhece, mas parece que há pessoas que se comprazem em atacar os outros gratuitamente, talvez para descarregar seus complexos. O rancor do leitor desconhecido é da mesma categoria que tem como maiores vítimas o presidente da República, o técnico e o juiz de futebol. E agora também o jornalista, que anda recebendo sua cota parte da hidrofobia alheia.

Mais recentemente, quando aceitei o desafio de dirigir a revista Playboy num momento já muito crítico das finanças da publicação, sofri bastante recebendo mensagens ou lendo coisas de "leitores" aos quais eu nem podia responder, porque a gente precisa manter a compostura, do cidadão e do profissional. Cansei de ler barbaridades que deixariam qualquer um abismado, só por estar num lugar de visibilidade para os apedrejadores randômicos. Me xingavam, me chamavam de burro, faziam acusações obscenas, me denegriam. Ao mesmo tempo, exigiam que eu escutasse a eles, blogueiros, como se fosse não um funcionário da Editora Abril, mas um criado deles, que se arvoravam o papel de representantes dos leitores. E faziam demandas irrealizáveis, do tipo "se o Corinthians não contratar o Neymar é porquesão todos uns idiotas". Sem conhecer nada, especialmente a realidade, a situação, e sobretudo a pessoa.

Ao chegar, tive de saída que demitir metade dos profissionais da redação para acertar as contas da publicação, algo que já é muito desgastante, não só para quem sai, como para quem fica. Precisava fazer uma revista melhor, que vendesse mais, num mercado declinante, com metade do dinheiro e do pessoal. Tive que diminuir drasticamente o cachê das mulheres que posavam para a revista, com uma dificuldade e um desgaste enormes de convencimento . Conseguimos algo: tivemos novamente repercussão, Playboy teve ótimos resultados para o momento, com as melhores vendas em muito tempo e ganhou uma sobrevida, num momento em que a própria empresa já ia anunciando o seu fim. Mesmo assim, fui tratado por alguns blogueiros e afins como se fosse mais um culpado pela decadência da publicação que dizem amar. Coloco "dizem" porque esses eram os mesmos que faturavam em cima de notícias sobre Playboy e pirateavam as fotos da revista, e dessa forma eram muito mais responsáveis pelas suas dificuldades do que seus salvadores.

Em Playboy, passei a sentir na pele como vivem os profissionais de futebol, como Muricy Ramalho, com seu propalado mau humor, fama que o acompanha muito por conta do tratamento ríspido que ele dispensa aos jornalistas. Conheço Muricy pessoalmente, é uma pessoa alegre e amável. Mas é submetido diariamente à crítica, muitas vezes irracional, tanto de torcedores quanto da própria imprensa. Isso acaba envenenando o ser humano, por melhor que seja, ainda mais alguém sensível, como ele - Muricy é uma pessoa amorosa, afetiva, e que, mesmo sendo reconhecidamente um vencedor, sente a necessidade de criar uma carapaça para sobreviver ao veneno destilado ao seu redor.

Esse aprendizado reforçou em mim uma convicção. Eu já fui duro como crítico de futebol, mas revi minha postura. Não falo mal de técnico de futebol. Não acho que todo mundo tem obrigação de ganhar. Entendo a paixão clubística, mas acho que ela não está acima do respeito às pessoas. Campeão só tem um. Se não soubermos reconhecer o mérito também dos outros, praticamente ninguém tem valor.

Esse é o defeito maior da sociedade americana, que cultua a divisão do mundo entre os célebres "loosers" e "winners". Como os "winners" são poucos, gera-se uma sociedade de perdedores, ou que se acham perdedores. Com isso, cria-se a animosidade geral e um clima de guerra em que sobretudo os homens vão se tornando profundamentes infelizes, rancorosos e amargurados. E projetam seu fracasso nos outros, exigindo que vençam por eles, para se sentirem menos mal.

Falar mal dos outros, como dono da razão e da moral, parece ser uma atitude muito típica do brasileiro. Para o brasileiro, mais até do que para o americano, só presta o vencedor. E muitos acham que a rede social é como futebol, em que o torcedor já vai para o estádio preparado para xingar o juiz, chamar o técnico de burro e coisas piores sem consequência. E todo mundo acha isso normal.

O mesmo se pode dizer de boa parte dos críticos no Brasil - e falo dos criticos em geral, do futebol à literatura. Eles pensam pouco no esforço de quem produz e não valorizam o brasileiro produtivo. Com duas canetadas, querem provar sua superioridade sobre quem faz, sua inteligência superior. Falar mal é uma norma. A menos que se trate de uma celebridade já formada. Quando já existe o sucesso, o crítico demolidor se transforma num dócil gatinho. São dois lados de uma mesma postura acovardada: a truculência contra os "fracos" e a subserviência aos "fortes".

Eu acho que está na hora de combatermos a cultura do apedrejamento. Primeiro, porque a raiva causa mais mal a quem a sente. O perdão não é feito para quem recebe, e sim para quem o dá. Este é o maior ensinamento das Escrituras. O perdão alivia o peso que a pessoa com raiva sente, com possíveis consequências para a própria saúde, já que não é possível alcançar o bem estar vivendo envenenado.

A raiva incubada no indivíduo se estende para toda a sociedade, que vai se tornando disfuncional, insatisfeita e, no limite, violenta. Hoje essa violência latente se propaga nas redes sociais, tem se manifestado na violência das ruas e me dá a impressão de que vivemos num caldeirão de ressentimento e intolerância: enquanto a tecnologia avança para o futuro, em mentalidade a Humanidade continua a mesma da Idade da Pedra, com a diferença de que o barbarismo agora é manifesto e catalputado pelos novos meios digitais e em tempo real. É como colocar metralhadoras na mão dos guerrilheiros tribais africanos. Eles continuam tribais, só que agora matam muito mais do que no tempo em que tinham apenas um chuço.

Eu preferia que o post rancoroso estivesse lá, na Amazon. Não só porque ele não me preocupa, nem por falta de comentários elogiosos. Há um impressionante boca a boca a favor do livro que, já em reimpressão, é um sucesso de vendas. É que sou do tipo que acha que nos definimos mais pelos inimigos do que pelos amigos. Eles mostram quem somos. Eles nos dão força. O post do meu desafeto involuntário falava mal, na verdade, dele mesmo. Acho que ele percebeu, e por isso retirou o que escreveu.

A raiva, o ressentimento e a intolerância se tornaram doenças contemporâneas. O remédio não é a repressão, porque não há como ser contra a liberdade, ao menos a de expressão. Pode-se impedir um sujeito de sair nas ruas jogando coquetéis molotov, mas não se pode proibir os xiitas sociais de falarem o que pensam, por pior que seja. O que fazer? Pessoalmente, eu recebo elogio e crítica da mesma forma, agradecido, quando tudo é tratado com educação. E é com educação também que procuro neutralizar os cães ladradores. Eles nos lembram da necessidade da sobriedade e nos ajudam a passar adiante enquanto fazem seu barulho.