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quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Como começa um escritor


Agora, como autor, e também como editor, vejo todos aqueles que ingressam com seus originais no Prêmio Benvirá de Literatura, muitos deles com o mesmo sonho dos meus 17 anos, quando vivia fascinado com as histórias de meu avô materno, que eu achava dignas de um romance, e alimentava a ideia de viver de escrever. Fico satisfeito de poder, com o incentivo do prêmio, ajudar a dar uma oportunidade a gente como eu de realizar esse sonho, encontrar talvez uma profissão e, sobretudo, tendo sucesso financeiro ou não, ser feliz fazendo algo pessoalmente tão importante.

Muita gente que tem me encontrado pede um conselho. Nenhum escritor dá conselhos a outro, e editores também não o fazem, porque o jeito em que se começa nesse negócio é tão individual quanto cada ser humano. É difícil encontrar alguém que te ajude de fato ou te aponte um bom caminho. Eu mesmo estou nisso meio por obra do acaso, algo tão difícil quanto ganhar um prêmio literário.

Pensando bem, minto: eu tive alguém que me ajudou, ou que eu poderia chamar de professor, embora tenha mais me desencaminhado que encaminhado para alguma coisa. Falo de Walter George Durst, dramaturgo celebrizado por suas adaptações para TV de grandes romances brasileiros, como Grande Sertão: Veredas, e a primeira versão de Gabriela, Cravo e Canela, com Sônia Braga no papel principal - um grande sucesso na época.

Durst era pai de um colega de classe, Marcelo Durst, com quem eu cursava por coincidência duas faculdades, a de Comunicação e a de Ciências Sociais, ambas na USP. Eu era um estudante duro e não perdia oportunidade de filar a bóia na casa de Durst, pai, não apenas para escapar do bandejão desestimulante do Crusp, o restaurante da Universidade, como para conviver com aquele homem que admiravelmente vivia somente de escrever.

Aos meus olhos ele levava não a vida que pediu a Deus, mas a vida que Deus pediu. Tinha uma bela casa numa rua arborizada, na vizinhança da USP, e trabalhava numa edícula recheada de livros e pôsteres de filmes brasileiros, alguns deles estrelados por sua mulher, Barbara Fazio, na época já uma senhora, ser deixar de ser bela. Vivendo entre livros, e cheio de tempo livre para amadurecer as ideias, Durst só tinha um compromisso, que era sagrado. Ia semanalmente à feira livre, não para fazer compras, mas escutar. Queria saber o que o povo estava falando, o que gostava, sentir a temperatura do que sabia ser seu público.

Naquela época, Durst era o único escritor de novelas da TV Globo que morava em São Paulo, e começou a formar um grupo de jovens autores, início de um núcleo de dramaturgia na cidade, que trabalharia para a TV Globo sob seu comando. Vínhamos conversando bastante sobre a arte de escrever, naqueles momentos após o almoço, em que o mundo parecia parar para o café. Eu me sentava com ele em sua sala de trabalho, onde havia um par de poltronas pequenas, e ali extraía dele tudo o que queria saber.

Formado na escola do cinema, Durst tinha em mente que o fundamento de qualquer obra de ficção era a criação de um conflito, essência não apenas da novela como de todo trabalho literário. Essa tensão era para ele o gerador de interesse contínuo, e não apenas momentâneo, na obra ficcional, de modo a fazer com que o espectador (ou o leitor, no caso do romance) permanecesse entretido até o desenlace.

Foi o único profissional das letras que me deu algum alento - e também conselhos. "Esse é um mercado muito pequeno, isto é, para pouca gente", dizia ele. "Mas, se você for bem, ficará rico". Naquela época, eu começara já a trabalhar como jornalista na revista Veja, onde ganhava um salário bastante razoável para alguém com pouco mais de vinte anos. E completou. "Vou te convidar para participar do núcleo de roteiristas, mas não largue seu emprego. Ainda."

O primeiro trabalho do núcleo paulista de dramaturgia da TV Globo foi uma série para as cinco da tarde - episódios de uma hora, que deveriam ter começo, meio e fim. Eram voltados para um público de mais idade, que segundo pesquisas era a maior audiência do horário. Durst pediu então a cada um uma sinopse, que mais tarde seria desenvolvida para se transformar em episódio. Cada autor entraria regularmente com um episódio inteiramente seu, numa sistema de rodízio.

Por aqueles dias, eu havia recebido na redação de Veja, dentro de um envelope meio sujo, uma longa carta de um executivo que soava em desespero. Narrava suas desventuras desde um acidente: batera o carro no veículo de um casal de velhinhos, que o ameaçara de processo e depois passara a chantageá-lo. Numa sequência kafkiana, o missivista dizia que tinha perdido em sequência o seu emprego, o dinheiro e, ao cabo, a mulher. Eu não via nenhuma reportagem a fazer com aquela história, mas achei-a de primeira mão para produzir o meu primeiro episódio da Série Brasileira.

Entreguei a sinopse a Durst, que a remeteu para avaliação da Globo no Rio de Janeiro. Chamou-me em sua casa para dar o retorno. "Olha, eles adoraram a história", disse ele. "Mas pediram para você tirar essa persona sacana dos velhinhos. Como o público é idoso, eles acham que isso pode indispor o telespectador com a série."

Protestei, claro. Se os velhinhos da história fossem bonzinhos, ela perderia completamente a graça, que estava justamente aí.

Por coincidência, naquela mesma semana, devido a uma série de mudanças nos quadros de Veja, recebi a notícia de que seria promovido a editor de assuntos nacionais da revista. Era um cargo importante, sobretudo para alguém tão jovem, e chave para a publicação. Eu cuidaria de editar todas as reportagens de alcance nacional, sobretudo da política, numa época em que o Brasil estava em plena ebulição, saindo de uma pesada crise econômica e entrando na reta para a primeira eleição presidencial em 30 anos, depois de uma angustiante e longa transição da ditadura militar.

Pensei no conselho de Durst ("não largue seu emprego"), e na frustração de, na TV, não poder escrever a história como eu desejava, mas moldado pela opinião dos executivos e seus charts do Ibope. De certa forma, mesmo tão jovem, eu partilhava da velha escola de Durst, que se valia muito mais de seus ouvidos, sua "pesquisa qualitativa" na feira de rua, de onde também vem a matéria bruta ficcional - a experiência humana, o contato pessoal, a emoção. Liguei para ele, agradeci, expliquei que com aquele convite de trabalho não poderia me dividir mais com o núcleo de dramaturgia e que tinha feito a minha opção pelo emprego.

Ele entendeu - e foi a última vez que falei com Walter George Durst, falecido há alguns anos. Muitas vezes pensei se deveria ter me arrependido dessa decisão, se não teria sido mais feliz (ou ficado rico) escrevendo para a TV. Mas a verdade é que, por muito tempo, não pensei mais em escrever ficção de qualquer espécie, dedicado como estava ao jornalismo. E voltaria a escrever ficção, novamente, por mero acaso - ou melhor, por uma indicação de outro dramaturgo, que, como nas melhores novelas, viria a ser o autor da segunda versão para a TV de Gabriela, Cravo e Canela.

Depois de Veja, trabalhei como editor de VIP, na época então um suplemento de Exame, onde dei emprego a certo dramaturgo que, depois de algumas tentativas não muito bem sucedidas, decidira voltar ao jornalismo para ganhar a vida até poder se recolocar na profissão com a qual sempre sonhara. Walcyr Carrasco, que já trabalhara em Veja, aceitou um modesto cargo de editor assistente, e escrevia reportagens de comportamento, o que ele fazia muito bem, devido à sua sensibilidade para abordar as pessoas e captar nuances - uma qualidade do jornalista que tem talento literário.

Walcyr escrevera alguns livros infantis e, quando sua editora, Maristela Petrilli, lhe pediu indicação de um autor, apontou meu nome. Levei uma hora para escrever Liberdade para todos, uma obra que, ao longo de uma década, seria adotada em muitas escolas e venderia mais de 150 mil exemplares. Era um livro singelo, mas que me despertou a vontade novamente de escrever ficção, e me ajudou a lembrar do que realmente os livros eram feitos - não de inteligência, mas de matéria emocional. E que o trabalho do ficcionista é ajudar os outros a trilhar caminhos, apresentando a si mesmo e suas experiências como uma espécie de laboratório.

Retomei o projeto de escrever o livro inspirado nas histórias de meu avô, que nunca foram além de uma transcrição de velhas fitas que eu guardava já como lembrança. Vinte anos depois, o romance finalmente tomou forma, diariamente, entre as cinco e as 9 da manhã, quando eu saía para o trabalho.

Naquela época, a mesma editora que lançara meu livro infantil incursionava na ficção adulta e me pediu os originais. tempos depois, voltou a resposta. A editora preferira me enviar o longo texto do parecerista, em que ele me chamava de "o Dostoiévski brasileiro", e acrescentava que, se vivesse no mundo contemporâneo, Dostoiévski teria seus livros recusado nas editoras, porque eram muito grandes. Por fim, recomendava que eu cortasse o texto pela metade, para que pudesse ser publicado com fins comerciais.

Aquilo, para mim, era um não - eu preferia procurar outra editora. E foi o que fiz. Junto com um livro do editor de moda Fernando de Barros, que eu ajudara como colaborador a se tornar um best seller (fazendo com ele "Elegância,", um guia de moda masculina), ofereci meu manuscrito à Siciliano. O editor, Pedro Paulo Sena Madureira, olhou-o como todo os editores - com um certo ceticismo, ou desdém. Porém, me conhecia como jornalista, e se viu obrigado a pelo menos ler algumas páginas.

Tempos depois, Pedro Paulo me anunciou que o livro seria publicado. Lera mais do que algumas páginas - bebera tudo. "Realmente o livro é grande", disse ele. "Mas o que é o seu defeito, é também sua qualidade." Surpreendentemente, o livro de Fernando de Barros venderia menos do que a editora esperava. E meu romance, do qual não se esperava nada, foi para a segunda tiragem e mais tarde para uma segunda edição. Logo eu publicaria na Siciliano meu segundo romance, O Homem Que Falava com Deus, que teria sua primeira reimpressão ainda antes da noite de autógrafos. Eu começara, dessa forma, uma carreira paralela, como sugerira Durst - até me sentir confiante o suficiente para deixar, enfim, meus empregos e viver, como vivi oito anos, apenas de escrever livros.

Hoje, Walcyr Carrasco desfruta o sucesso da segunda minissérie Gabriela. Por indicação dele, novamente, mudei-me há alguns anos para a Objetiva, quando a Siciliano foi tragada por dificuldades financeiras, junto com sua rede de livrarias. Certa vez, Walcyr me disse que era meu amigo porque sabia que eu não tinha inveja dele - algo raro entre intelectuais das letras. De fato. Eu não trocaria sequer um dos meus livros por todas as novelas de Walcyr, mesmo que não ganhasse dinheiro algum com eles.

Não é que eu desgoste das novelas de Walcyr, pelo contrário. Ele é um mestre no que faz. Só que eu, revendo minha trajetória desde as conversas com Durst, sei mais do que nunca que meu negócio é o livro. Não há maior recompensa do que escrever a sua própria história, aquilo que você quer, olhando para a rua, e não os charts dos executivos. Funciona. Descobri, como Durst, que fazendo isso a gente obtém a maior das recompensas, que é saber que a gente escreve sempre tem ressonância. Há gente que gosta, que compra, e ainda agradece por isso. O que faz de mim, dessa forma, entre todos, o mais grato.









quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Prêmio Benvirá: como se tornar um escritor de verdade


Raphael Montes é um moleque de sorte.

Há dois anos, quando abrimos o primeiro Prêmio Benvirá de Literatura, e recebemos 1932 inscrições, achamos um texto que chamava a atenção por duas razões. A primeira: era um livro policial denso, consistente, que mergulhava no universo da juventude carioca, do tipo que entretém e faz pensar, uma combinação excelente para uma obra de ficção. Selecionado entre os dez finalistas, recebeu elogios de todos os jurados, especialmente do crítico e jornalista Nelson de Oliveira. "Normalmente não gosto muito de policial, ainda mais para prêmio", disse ele, na época. "Mas gostei muito deste - eu o consideraria."

A segunda coisa que chamou a atenção foi a quilometragem do autor: Raphael, que mentia a idade, tinha apenas 19 anos. Começara a escrever Suicidas três anos antes, com somente 16.

Suicidas não ganhou, e Raphael achou que estava fora do baralho. Entregou os originais para uma pequena editora. Tinha já um contrato assinado. Quando recebeu um telefonema meu, interessado em publicar o livro pela Saraiva, selo Benvirá, mudou de ideia na hora. Conversou com o editor, desfez o contrato. "Ele entendeu", me contou, depois.

Por alguns meses, enquanto preparávamos os originais de Suicidas, eu costumava brincar na Editora que ele se tornara o autor não publicado mais famoso do Brasil. Estudante de Direito, a um semestre de completar o curso, no Facebook e aonde ia, Raphael se autointitulava "escritor". E se enfiava em cursos, seminários, até na imprensa. Foi entrevistado como "autor" pelo jornal O Globo, durante a Bienal do Rio. Foi convidado para dividir mesa de debates literários com autores de renome, já publicados por grandes editoras. Um prodígio da vontade.

Raphael deu sorte, mas também porque estava em todo lugar. Há dois anos, apareceu na minha frente em Paraty, durante a Flip, e se apresentou. Rapaz simpático, falante, acabou entrando para o grupo que estava lá reunido - os autores da Benvirá, Luis Felipe Pondé, o mexicano Enrique Krauze, a romancista argentina Pola Oloixarac, a "musa' do evento. Conviveu com os autores na intimidade, nos jantares que promovemos na casa de Benoir Gautier, um amigo querido, e conheceu por dentro o clima dos grandes eventos literários. Me pediu um conselho. E eu dei: "Forme-se e não largue seu emprego - por enquanto".

Lógico que a primeira coisa que Raphael fez, ao se ver um autor prestes a ser publicado, foi contrariar meu primeiro e único conselho: largou o emprego (na verdade, um estágio de Direito), com o pretexto de ir de novo à Flip, este ano. Talentoso, ousado, a ponto de ser meio abusado, lá estava ele de novo, no meio da massa de Paraty, com suas bermudas balançando ao redor dos cambitos de garoto. Teimoso, o "escritor".

No Rio de Janeiro, quando lancei um livro do hoje ministro da Defesa, Celso Amorim (Conversas com jovens diplomatas"), quem estava lá, na sessão de autógrafos? Raphael Montes. Queria ver o lançamento de perto, sentir, cheirar, estar com as pessoas que faziam tudo acontecer. E a conversa boa atravessou um jantar e foi parar alta madrugada na casa de seus pais, em Copacabana, onde ele nos apresentou a coleção completa das obras de Conan Doyle que é o orgulho da biblioteca em seu quarto. Depois foi abrir a adega de cachaças do pai - um colecionador do destilado, que felizmente dormia.

Raphael Montes não deixou de ser garoto. Enquanto Suicidas entrava na gráfica, ele estava na Disneylândia, fazendo poses ao lado do Mickey e do castelo da Cinderela, postados no Facebook. Ontem, em uma Saraiva do Rio de Janeiro, foi sua vez de estar sentado à mesa autografando seu romance. Estavam lá amigos, professores desde o jardim da infância, membros do Clube da Cachaça, colegas do karaokê, mestres de Direito e uma porção de gente que comprou o livro e, para sua surpresa, ele nem conhecia.

Ontem, afinal, Raphael Montes se tornou um escritor de verdade. Disse ele no Facebook que foi a melhor noite de sua vida. Espero que tenha muito disso pela frente. E que não largue seu novo emprego. Ainda.




quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Prêmio Benvirá: por que existe, por que participar


Quando assumi a direção da área de Ficção e Não Ficção da Editora Saraiva, há cerca de 3 anos, lancei na companhia a ideia de desenvolver um prêmio literário, que recebeu apoio entusiasmado de toda a equipe editorial, de vendas e marketing, além do presidente da companhia, José Luiz Próspero. E eram muitas as razões para isto, além de conquistar novos autores para o novo selo Benvirá, criado com a finalidade de lançar livros da Editora Saraiva em todo o mercado.

Claro que o Prêmio, em primeiro lugar, teve a finalidade de divulgar o selo Benvirá, mas havia, e ainda há, muito mais. Um dos seus objetivos é criar um canal para o novo e profissionalizar cada vez mais o mercado brasileiro de livros, como acontece em outros países, como a Espanha, em que várias editoras possuem seus próprios prêmios de incentivo ao surgimento de novos autores, como a Alfaguara e a Bruguera.

Em prêmios como o Benvirá, não é somente o vencedor que sai ganhando (em nosso caso, 30 mil reais, mais toda a promoção do livro, por conta da divulgação do resultado). Na primeira edição, contamos com outros quatro autores que chamaram a atenção e já tiveram suas obras publicadas. Um quinto ainda tem seu livro por ser lançado.

É um prazer encontrar novidades por aí - e o prêmio nos permitiu fazer boas descobertas. Primeiro, que o modelo de enviar originais em papel está superado. Creio que esse é o principal fator para fazer com que nosso prêmio tenha sido recordista em inscrições (1.932 originais, em sua primeira edição), enquanto outros prêmios, como o da Leya, não ultrapassaram 800 concorrentes. Foi gente de todo o Brasil, graças ao acesso democratizado e simples que a tecnologia permite.

A segunda e mais importante descoberta é que existe uma geração de novos bons autores, criados no ambiente cibernético. Entre os inscritos no primeiro prêmio, estavam diversos autores já publicados, e por editoras importantes. Porém, os jovens ganharam a preferência, não apenas entre os dez finalistas, como entre as obras que procuramos para publicação, posteriormente ao anúncio do vencedor. Não por uma política editorial que apontasse nesse sentido, e sim, simplesmente, porque os originais eram de melhor qualidade.

Acredito que esse fenômeno tem sido estimulado pela internet, um ambiente que tornou a escrita mais importante e presente no dia a dia, do e-mail aos blogs e sites literários. A proliferação de fanbooks, clubes de autopublicação e comunidades que seguem concursos literários ou comentam livros, como o Skoob, são um grande avanço para a consolidação de um amplo e livre espaço para a criação literária.

Os prêmios literários têm sucesso ainda antes de divulgado o seu resultado. Para concorrer ao prêmio, muita gente começa a escrever, ou aprimora seus originais, mergulhando no campo da criação e das ideias. O Prêmio Benvirá, dessa forma, funciona como um estimulador da criação e da cultura brasileira.

Com isso, creio que a Editora Saraiva, que possui 2.700 autores brasileiros, de onde vem 95% de seu catálogo, dá mais uma grande contribuição à produção cultural nacional. E é um prazer poder colaborar, pois ninguém está no negócio do livro apenas por compromissos de trabalho - nunca se perde de vista o principal, que é o ideal de fazer um Brasil melhor por meio da Educação.




quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Prêmio Benvirá: gêneros, tamanho do texto e outras questões


Mais questões têm surgido a respeito do Prêmio, aí vão as respostas que atendem à maioria delas.

Gênero
O prêmio Benvirá de Literatura aceita qualquer forma de texto ficcional, isto é, romance, conto ou poesia. Isso inclui romance histórico, que também é ficção.

Tamanho
Não existe um tamanho minimo ou máximo. Para ter chance real de ganhar o prêmio, porém, é preciso enviar material suficiente para dar um livro. Não adianta apenas 1 conto ou um poema. Na primeira edição, em 2010, dos 1.932 originais inscritos, somente uma dezena eram textos pequenos ou insuficientes para um livro, sinal de que a imensa maioria dos concorrentes entendeu bem a proposta, que visa a publicação em livro da obra do autor premiado.

Quem já concorreu pode concorrer de novo?
Claro. Quem já concorreu na edição anterior pode ter melhorado a obra, ou escrito uma nova. Demos o prazo de dois anos entre uma premiação e outra justamente para permitir esse tempo de produção. Conforme o regulamento, só não podem concorrer funcionários da Saraiva Livreiros Editores SA e autores já publicados pela própria Editora. O que inclui aqueles que já tiveram seus livros publicados por meio da primeira edição do Prêmio Benvirá.

Quem tiver seu livro publicado poderá continuar publicando outras obras pelo selo Benvirá?
A proposta do selo Benvirá é desenvolver a carreira dos autores, lhes dando uma oportunidade de entrar no mercado profissional do livro. Para isso, é importante que o autor siga escrevendo. Os autores já publicados foram convidados a fazer uma segunda obra para dar continuidade à carreira. Lívia Brazil, cujo primeiro romance (Queria Tanto) foi muito bem nas livrarias, já entregou os originais de um segundo romance, que deve ser publicado ano que vem. Os outros, estamos aguardando. Escrever um bom livro em geral demora.

Como é o contrato de publicação do livro?
É um contrato de direitos autorais como qualquer outro contrato de autores publicados pela Editora Saraiva. Depois de anunciado oficialmente o vencedor, os autores dos outros originais que interessaram aos editores serão procurados, por meio dos dados obtidos no cadastro.

A editora influi na decisão dos jurados?
Não. Eles são livres para escolher a que acharem ter mais qualidade, sem necessariamente se preocupar com questões de mercado (o que vende mais, de acordo com o interesse do público no momento). A decisão é tomada numa reunião de portas fechadas da qual nós, editores, não participamos. Porém, temos a liberdade de também editar outras obras, especialmente entre os finalistas, que são selecionados por nós, que acreditamos ter potencial de vendas ou alta qualidade. Estes não recebem prêmio, mas entram para o nosso catálogo de autores - o que já é muito bom.

Não deixem de ler o regulamento, no site do selo Benvirá, da Editora Saraiva: www.benvira.com.br.



quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Prêmio Benvirá: o que é importante saber

Como editor de Ficção e Não Ficção da Editora Saraiva, e responsável pelo selo Benvirá, tenho recebido as dúvidas de interessados em participar do segundo Prêmio Benvirá de Literatura, que dará 30 mil reais ao vencedor. Vou manter aqui um canal aberto para aqueles que quiserem mais esclarecimentos, de modo a responder às perguntas mais frequentes.

Preciso escrever a sinopse?
As inscrições só podem ser realizadas pelo site www.benvira.com.br, mediante um breve cadastramento. Nesse cadastramento, é pedida uma sinopse do livro, sem a qual o original não é enviado. Sei que às vezes descrever em meia dúzia de linhas o que nos tomou tanto suor e sacrifício pode ser difícil ou incômodo, mas essa é uma etapa importante do processo de análise. Na primeira edição do Prêmio, recebemos 1.932 originais, o que torna impossível ler tudo até o final. Cada original é examinado, porém a sinopse é importante para que se tenha uma ideia geral do propósito da obra e influi na decisão.


O que é melhor? Mandar o texto agora ou no final?
Na primeira edição, dos 1932 originais enviados, cerca de 600 chegaram no último dia. Boa parte, na última hora, quase à meia noite. É compreensível que os autores queiram burilar o texto até a exaustão, mas enviar os originais antes tem suas vantagens. Como a carga de originais é menor no começo, as pessoas envolvidas no processo de seleção têm mais tempo para análise.

Como é o processo de seleção?
Os originais enviados para o Prêmio Benvirá passam por um exame da equipe de editores do selo Benvirá, os mesmos profissionais que editam os livros de Ficção e Não Ficção da Saraiva. Na primeira edição, dos 1932 textos enviados, 130 foram escolhidos na primeira análise. Houve uma segunda peneirada, ainda mais criteriosa, que deixou na disputa somente 30 originais. Três editores fizeram então sua lista de preferências e, a partir das coincidências nas listas, foram selecionados os 10 finalistas. Estes foram passados à comissão julgadora, que leu os dez originais na íntegra para chegar à decisão final, que tem de ser consensual.

Como o livro será publicado?
No anúncio do vencedor, é feito também um contrato para a edição do livro, nos termos normais de um contrato de publicação. A Editora Saraiva paga ao autor 10% dos direitos autorais sobre o preço de capa de cada exemplar vendido. O dinheiro do prêmio não é descontado dos direitos autorais.

Incide imposto de renda sobre o valor do prêmio?
Sim.

Além do vencedor, outros originais podem ser publicados?
Sim. Na primeira edição do Prêmio, entre os originais enviados, além do vencedor (Nihonjin, de Oscar Nakasato), foram publicados A Casa Iluminada (de Alessandro Thomé, cujos direitos também já foram vendidos ao cinema), Suicidas (de Raphael Montes, um estudante de 20 anos, recém publicado), Queria Tanto (Livia Brazil, que já terá seu segundo romance publicado no ano que vem) e Diante do Abismo (de Benedito Costa Neto).

Quem faz parte da comissão julgadora?
Ela será anunciada em breve, no site da Benvirá, e por meio da imprensa. Oportunamente falarei dela aqui.

Fiquem à vontade para enviar perguntas por aqui ou no canal de dúvidas na Benvirá, em www.benvira.com.br. E boa sorte.








terça-feira, 7 de agosto de 2012

Oito jovens e uma arma


Raphael Montes tem vinte anos, está no último semestre de Direito, mora em um apartamento confortável em Copacabana, que divide com os pais, no Rio de Janeiro, e a prateleira de livros em seu quarto, com a coleção completa das obras de Conan Doyle, revela qual é seu maior interesse. Desde os 17 anos, com diligência rara para alguém tão precoce, ele escreveu um romance que surpreende pelo número de páginas, pela qualidade, e por coisas que provavelmente nem mesmo ele ainda sabe.

Suicidas, que está sendo lançado agora pelo selo Benvirá, já nasceu com uma história surpreendente. Concorrente entre mais de 1.900 originais da primeira edição do Prêmio Benvirá de literatura, em 2010, já seria extraordinário chamar a atenção entre tantos originais. A idade do autor surprende ainda mais – e revela uma curiosa faceta dos tempos virtuais, em que os jovens escrevem bastante, cada vez mais cedo, e melhor. E, por fim, o livro tem uma admirável densidade. A pretexto de uma história de mistério, Raphael acaba revelando muito mais: como pensam, agem e vivem os adolescentes e jovens da geração do próprio autor.

O ponto de partida de Suicidas é palpitante: um grupo de jovens se reúne no porão de uma casa para se matar. Um ano depois, uma investigadora policial convoca as mães para colaborar com o esclarecimento da caso, a partir de um novo achado: o diário de um dos suicidas, com pretensão a escritor. A partir desse texto, as mães passam a discutir e compreender melhor não apenas a morte brutal de seus filhos, que vem à tona da forma mais crua e chocante, como descobrem o quão pouco os conheciam e os motivos que teriam levado suas “crianças” a uma roleta russa.

Trata-se de uma versão extrema do dilema comum à maioria dos pais, que buscam entender um pouco mais os filhos nessa fase da vida em que eles se desligam da família e se tornam mais independentes – para o bem e para o mal. Os pais não sabem tudo o que acontece com os filhos lá fora e em geral descobrem os problemas muito tarde – especialmente envolvimento com drogas e outras encrencas. Numa geração que parece sem objetivos, movida de um lado pelas facilidades proporcionadas pelos pais, de outro pela aflição diante de um mundo sem perspectivas além das virtuais, a proposta do suicídio coletivo repentinamente se torna verossímil – e alarmante.

Ao escrever Suicidas, Raphael Montes procurava construir um romance policial, que intriga pelo ponto de partida e pela surpresa final. Crime ou suicídio? Porém, ao desfiar a vida dos integrantes do pacto suicida, ele acaba por forjar um profundo e interessante retrato da alma de pais e filhos nestes tempos em que os adolescentes e jovens vivem sob identidades secretas na internet.

Raphael vai apresentando seus personagens e suas complexidades sem pressa. O fio condutor da trama, a revelação paulatina do diário do jovem Alê, faz com que a sociologia da juventude ganhe fôlego e interesse reais de um thriller. Cada um pode tirar do livro o que achar mais interessante: a diversão pura ou o maior entendimento de quem é essa geração à qual o autor pertence.

Abusado e ambicioso, Raphael mostra que sua presunção tem algum fundamento. Não tem vergonha de querer aparecer e já se autointitulava “escritor” no facebook antes mesmo de ter seu livro publicado. Agora, Raphael Montes é finalmente um autor profissional, com um livro publicado - e mais. É desses escritores que não se sabe se é mais autor, ou personagem dele mesmo.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Luz sobre as sombras


Maior sucesso comercial americano de hoje, a trilogia Fifty Shades of Grey (Cinquenta Tons de Cinza, por conta de um trocadilho intraduzível no título, recém lançada no Brasil), já recebeu enorme atenção da imprensa como fenômeno literário. E é campeã de especulações sobre as causas de seu sucesso - mais de 10 milhões de exemplares vendidos em seis meses, sobretudo nos Estados Unidos. Sucessos sempre são mistificados. Nesse caso, devido ao seu conteúdo sexual, ainda mais.

Uma das teorias para o sucesso da trilogia, conforme a expressão cunhada pela imprensa inglesa (“pornô para mamães”), é de que ela oferece uma história libertadora para a mulher moderna, para quem a submissão sexual seria uma espécie de novo sonho de consumo, depois que ela ganhou poder, independência financeira e novas responsabilidades no mundo pós-feminista. Outra explicação para o alcance de Fifth Shades é a de que a pimenta fetichista daria um gostinho novo, mais liberado e de fantasia aos ingredientes que sempre agradaram o público feminino – a garota romântica apaixonada pelo rapaz lindo, rico e um tanto misterioso.

Um pouco de luz sobre as múltiplas sombras elimina rapidamente as mistificações. O primeiro mito sobre Fifty Shades é de que se trata de uma trilogia. Na verdade, os três livros são um só – ler qualquer deles de forma independente é insuficiente e não faz sentido. A divisão da obra numa suposta trilogia é uma solução esperta, criada no lançamento do e-book. Como o preço do livro virtual nos Estados Unidos é baixo, os editores o cortaram em três pedaços, para forçar o leitor a pagar por ele em três vezes. Cada livro sai no kindle a 9 dólares. Assim, o leitor gasta 27 dólares com Fifty Shades, preço de um livro impresso convencional.

Críticos já apontaram no livro “inverossimilhanças”, como a ideia de que a personagem principal ser virgem, aos 21 anos, não seria algo do Século XXI. Na verdade, a Anastassia de Fifty Shades segue uma antiga tradição do romance erótico, consagrada pelo Marquês de Sade, que teve seu próprio nome associado a certo tipo de perversão, em função de sua obra literária e de seu comportamento. Nas obras de Sade, que levavam o nome de suas heroínas, a personagem principal é sempre uma jovem inocente (e virgem) levada para uma iniciação no mundo de preferências sexuais de seu amor/algoz – e do autor, o que no caso de Sade eram a sodomia e a flagelação.

Ao final dos livros de Sade, personagens como Justine e Pauline deixam para trás a antiga inocência para conhecer um tipo de prazer que lhe faz descortinar dolorosamente aonde pode chegar o ser humano. São livros pulsantes de um misto de crueldade e lubricidade que chocam pelo que revelam dos subterrâneos mais inexplicáveis do ser humano. Perseguido e preso pelo teor de sua obra e seu comportamento, Sade foi um escritor polêmico em seu tempo e se tornou um clássico maldito. E.L. James não deixará nada para a história da literatura, exceto um exemplo de sucesso comercial que a tem feito ganhar um bom dinheiro enquanto cai no vazio o discurso moralista.

Não é o fetiche sadomasoquista a verdadeira fantasia de Fifty Shades. Para quem ler com cuidado a dedicatória do livro, fica claro que o sadomasoquismo é parte da vida da autora, que sugere possuir um relacionamento dessa ordem com o marido. Para ela, o ambiente desse tipo de fantasia é bastante real. A fantasia verdadeira do livro, e que lhe dá o gosto especial, é justamente o que ele tem de antigo, isto é, a fantasia feminina de sempre: o príncipe encantado rico, bonito e inalcançável, que Anastassia quer atrair para si, e nos seus próprios termos. O que faz da história um jogo fluido e envolvente.

Fifty Shades não é nenhuma obra prima, mas é uma leitura fácil e intrigante e nos leva a pensar um pouco sobre os relacionamentos. No livro, Anastassia luta para trazer o complicado milionário Grey para um relacionamento normal, e redimi-lo de um passado tortuoso ao qual ela associa sua dependência do fetiche sexual. No entanto, ao mesmo tempo em que ela o traz para o amor que o senso comum chamaria de normal, começa também a se sentir atraída pelos prazeres que no começo lhe causavam medo e repulsa. A autora não tem pressa em fazer essa passagem, na qual a Justine da era digital passou a ter a possibilidade de descortinar a beleza de um relacionamento em que prazeres e maltratos se confundem – de acordo com os novos tempos, de forma consensual.

A literatura erótica sempre existiu e encontrou no e-book a forma ideal de propagação para um velho conteúdo. Você pode ler Fifty Shades no ônibus ou no metrô sem que se desconfie qual é o objeto do seu interesse. Muita gente, inclusive no Brasil, um país onde o puritanismo é um inibidor da venda em massa desse tipo de obra, teria dificuldade de levar para casa um livro que tem na capa um par de algemas ou uma gravata com uma função igualmente sugestiva. Existem algumas coisas que nem mesmo o mundo contemporâneo mudou e que jamais vão mudar – incluindo as opções que as pessoas só fazem à vontade num ambiente privado.

domingo, 15 de maio de 2011

Perguntas na China

Uma tarde com o pequeno André e João na Liberdade. A rua dos Estudantes, onde eu nasci, as lanternas na rua, a feira, comer no tatami com o hashi de elástico para crianças, André adorou tudo. Rolou pelo tatami, comeu yakisoba como se fosse macarronada italiana. No final, apertado de tanta laranjada, perguntou à mãe.
- Tem banheiro aqui na China?
Andamos pela rua, entramos para comprar coisinhas gostosas e exóticas no supermercado japonês. Curioso, André sai fuçando pela loja e acha uma portinha que dá para uma despensa meio escura. Vai abrindo primeiro, pergunta depois:
- Mãe, aqui é que ficam os bandidos?
Fomos de metrô, para André andar de trem (segunda vez na vida) e matar saudade de Nova York, quando o menino hoje com quatro anos ainda estava na barriga da mãe e caminhávamos pela cidade aos domingos. Para ir embora, pegamos um táxi.
- Moço - disse ele ao motorista. - Vamos voltar agora para o Brasil?

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Saudades de escrever. Vou voltando, aos poucos.

domingo, 3 de abril de 2011

Quixote

O escritor é muitas vezes um Quixote, pois não é fácil ser contra tudo e contra todos o tempo todo. Porém, assim é seu espírito, pois se há algo de comum entre todos os que escrevem é a sensação de que mais vale passar a vida de lança em riste contra moinhos imaginários que levar a vida ruminante dos conformados.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Um livro curtido no tempo


A história de um romance que levou dois séculos para poder existir e sete anos para ser escrito

Não sei bem ao certo quando comecei a escrever meu primeiro romance, Filhos da Terra. Talvez tivesse começado ainda criança, quando ouvia as histórias de meu avô José.O mais certo, no entanto, é que tenha começado naquelas férias de verão, em 1983.

Eu tinha 19 anos de idade. Ainda estava fazendo duas faculdades, jornalismo e ciências sociais, e pude aproveitar uma semana inteira de férias para visitar vovô, a bordo de um Fiat 147 preto, com rodas de liga leve e volante de couro costurado, com a lataria meio carcomida pela ferrugem. Era o meu primeiro carro, comprado com o dinheiro apurado de maneira esparsa, trabalhando como modelo em comerciais de televisão.

Vovô se mudara para uma pequena chácara em Suzano, junto com minha tia Malfisa, com quem passara a viver sozinho desde a morte de minha avó, seis anos antes. Ficava a pouco mais de meia hora de carro de São Paulo, pela rodovia dos Bandeirantes. Mais dez minutos por uma estradinha vicinal, que se infiltrava sinuosamente pelo que se tornara com o tempo um vasto campo verdejante. Ali, desenhava-se o mosaico de propriedades dos pequenos agricultores, que formava o cinturão verde da metrópole, abastecedor do mercado central de frutas e verduras.

Aquela chácara era historicamente um refúgio. No final da década de 1960, minha tia a cedera a amigos que eram militantes de esquerda, para esconder-se da polícia política, durante o regime militar. Meio aposentada, foi dar aulas na escola de Suzano e mudou-se para lá, numa espécie de exílio involuntário para vovô. Como titia não se casara, ou melhor, se casara tardiamente e se separara do marido de forma meteórica, encarregara-se ela, entre os cinco filhos de vovô, de cuidar dele - já passado dos noventa anos de idade. Tia Malfisa desbastou o matagal ao redor da asa, a estrada de terra que ligava a chácara à estradinha de asfalto foi alargada e clareada, e o lugar se tornou mais aberto, embora ainda bastante retirado.

O terreno já limpo era um aclive onde tia Malfisa e vovô lutavam com suas parcas forças para que brotasse um pouco de grama e um rarefeito pomar. A casa, com o chão de cimento queimado vermelho, típico das casas de interior, uma cozinha pequena, uma sala ampla e um puxado de alvenaria recém-construído, onde ficava o novo banheiro e os dois quartos, era mobiliada com os móveis de madeira negra que outrora ocupavam a casa de vovô quando minha avó Dileta ainda vivia: a cristaleira da sala, a pesada mesa de pernas em X, as cadeiras de espaldar trabalhado e uma estante de livros, alguns dos quais eu mesmo havia dado a minha tia de presente.

O lugar preferido de encontro, contudo, era a cozinha. Fresca, refrigerada pelo vento que entrava calmamente pela janela, com o filtro de barro de onde vinha uma água cristalina, aquele era o lugar para fugir ao calor tropical, sentar, ouvir meu avô cantar, o que ele mais gostava fazer. E ouvir as histórias com que ele entremeava suas cantorias, atividade em que podia passar horas intermináveis, indiferente ao possível aborrecimento da audiência e ao desgaste do corpo e da garganta, que ele combatia a partir de certa altura com pequenas doses de pinga com limão. Escarradas desobstruidoras se seguiam, para permitir que prosseguisse no seu impávido monólogo.

Digo monólogo porque a essa altura vovô José já era quase completamente surdo, o que dificultava de saída qualquer comunicação de mão dupla. Tentara utilizar diversos aparelhos para surdez, mas nunca se ajustara a nenhum. Tia Malfisa dizia que, diferente de surdo, ele na realidade não queria escutar mais ninguém. Apenas sabia que gostávamos de ouvir suas histórias, eu, minha irmã Lara e meus primos, e começava a falar de enfiada.

Possuía memória extraordinária. Podia cantar dezenas de canções sertanejas, ou “modas”, como dizem os caipiras, sem repetir uma sequer. Além disso, dispunha de um vasto repertório de canções italianas, algumas das quais raridades que ouvira cantar ainda em criança e das quais se lembrava quase à perfeição. Era um verso engatado no outro, em porfias que podiam durar até uma hora sem parar dentro de um mesmo poema. Assim foi que aprendi histórias como as dos briganti Passanante e Il Passatore, galantes e sanguinários bandidos da antiguidade, e canções dramáticas como a de Salvador Misdea, que possui talvez o melhor começo de poema que conheço, depois do célebre “As armas e os barões assinalados” dos Lusíadas: “Canto um drama terribile e funesto, da caserna de Pisa Falcone”...)

Continuei a gravar tudo o que meu avô dissesse. Passei a visitá-lo regularmente, não só com o intuito de encontrá-lo, mas de deixar um registro vivo de tudo o que dizia, agora certo de que naquele sertão onde vivera podiam ocorrer coisas realmente extraordinárias. Tomava do meu Fiat 147 e lá ia para Suzano, com meu gravadorzinho, cuja chegada ele recebia com festejos, pois a presença da máquina era sinal de audiência garantida por algumas horas. De vez em quando, eu pedia alguma coisa, ou o dirigia para outro assunto, canção ou história, munido de um caderninho onde anotava minhas observações; esse era nosso meio de comunicação, embora não surtisse muito efeito. Na verdade, ele cantava o que lhe dava na telha, e ignorava meus esforços de pedir alguma coisa em especial. Antes de começar, apenas olhava animado para a maquineta de gravação e proferia a pergunta preparatória:

- Tá ligado?

Meu dia preferido para essas visitas era o sábado. Vovô começava a dissertar por volta das duas horas da tarde, quando terminava o almoço, e podíamos ir naquelas tertúlias sem interrupção até dez ou onze horas da noite, quando, vencidos pelo cansaço e os apelos de minha torturada tia, íamos enfim para a cama.

Daquela maneira, fui juntando um farto material. Mais do que a música, o que aumentara meu entusiasmo era a visão do mundo que se revelava pelo meu avô; suas opiniões simples mas particularíssimas sobre as pessoas e o mundo; e, sobretudo, as histórias e os personagens que ganhavam vida nas suas memórias. Aí começara a nascer o romance do velho José, embora ele mesmo nunca tivesse se interessado pelo assunto. Numa daquelas tardes, por meio do uso do caderninho rabiscado a lápis preto, comuniquei a ele que estava pensando em escrever um romance, inspirado nas histórias que me contava. E pedia seu auxílio. Ao ler o meu bilhete, contudo, vovô apenas riu.

- Está pensando em escrever um romance? – disse. – Isto está em você.

Logo terminaram as férias de verão e voltei à minha rotina de estudante. As fitas com as histórias de vovô ficaram guardadas, mudando de gaveta para gaveta, sem destino certo. Muitas vezes pensei em iniciar o tal romance que havia imaginado. Seria o relato de um homem desconhecido, mas que tinha grandes coisas a contar; um homem simples, elevado à condição de herói pelas suas atitudes e pelo ambiente épico que conseguia enxergar à sua volta durante toda a vida. Eu queria tornar aquele reles José num personagem à altura do homem que meu avô via nele mesmo, e que de certa forma todo ser humano vê em si próprio. Aos poucos, comecei a transcrever as fitas, pensando simplesmente em arrumar as histórias como ele as havia contado. Seria um relato em primeira pessoa, com as expressões e maneirismos da fala de meu avô. No entanto, aquilo não tomava corpo, e eu não sabia por quê. Era jovem demais, destreinado, e teimava que aquela tinha de ser a história de José Fiorini, contada por ele mesmo.

Nos anos que se seguiram, fiz algumas tentativas de arranjar aquele texto, pouco burilado em relação ao original. Mostrei-o a algumas pessoas, que jamais demonstraram grande entusiasmo. Por cerca de dez anos, aquilo permaneceu nas minhas gavetas, como um sonho de juventude, praticamente abandonado. Ainda mais quando meu avô veio a falecer, alguns anos depois, deitado em sua cama, numa noite em que se encontrava sozinho em casa, sem que alguém estivesse por perto para socorrê-lo. Muitas vezes pensei em como teria sido essa noite, o homem sozinho, diante da morte. E mais, diante da perspectiva do esquecimento eterno. Aquilo me deixou profundamente abalado e certo de que precisaria fazer alguma coisa para trazer aquele homem de volta à vida.

Só mais tarde comecei a refletir que o romance só começaria realmente a se transformar em livro quando as histórias reais, contadas por meu avô, começassem a entrar no terreno da imaginação. Seria um passo difícil, porque não seria mais ele a narrar a história, mas eu a conduzi-la por meio dos seus olhos. Poderia aproveitar alguns trechos, idéias, personagens herdados do relato de meu avô, mas teria que inventar a maior parte de tudo, a partir de uma teia complicada, tecida por muitos personagens. A essa altura, eu já trabalhava há dez anos como jornalista; decidi abandonar um bom emprego como editor da revista Veja para que pudesse ter mais tempo de dedicação a escrever. Antes de voltar aos meus alfarrábios e às fitas de meu avô, procurei escrever algumas histórias curtas, como um treino para o trabalho que viria a seguir. Dois anos mais se passaram, até que eu me senti enfim à altura da história que considerava realmente grande.

Então aconteceu um pequeno milagre. Tantas vezes eu já ouvira as histórias de meu avô, que sequer voltei a consultar minhas anotações. Elas haviam se incorporado a mim de tal forma que por vezes eu já nem distinguia mais o que ele havia me contado de minha própria imaginação. A narrativa corria fácil, surgiam personagens, novas tramas começava a tomar forma. Eu sabia aonde queria chegar, mas não imaginava quantos caminhos surgiriam até que todos os personagens pudessem encontrar o desfecho pretendido. O livro foi ganhando corpo. Saído do zero, em seis meses tinha mais de 100 páginas. Depois de um ano, estava quase pronto, com mais de trezentas páginas. Cansado, contudo, encerrei-o abruptamente e deixei-o dormir novamente. Tinha preguiça de encontrar aquela tarefa hercúlea outra vez pela frente; adiava-a, relutava. Retomei o trabalho somente um ano mais tarde, sem rever o início, puxando o fio onde a meada acabara, de maneira a enfrentar com fôlego o trecho final.

Quando terminei, as histórias de meu avô já eram parte diminuta do conjunto do texto. Elas ganharam cores, outras histórias e novos sentimentos nasceram. Foi só então que percebi o que meu avô queria dizer, quando afirmava que aquele livro estava dentro de mim. Filhos da Terra, que então eu chamava apenas de Iusfen, o apelido doméstico de meu avô, não era um livro do desconhecido José Fiorini. Era o meu livro, sobre um homem chamado José Fiorini - um outro contador de histórias. E era um livro sobre todas as personagens que ambos vimos de forma material ou imaginária passando pela vida, como nós próprios. Com o desejo, muito íntimo, de que nossas histórias pudessem se cristalizar, registradas no papel, e ficar na memória de todos para sempre.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

O que significam os desenhos?

O que passa na cabeça ao desenhar e explica os desenhos.

Virgulino: na época eu escrevia o romance Amor e Tempestade, no qual o célebre capitão surge como personagem, senti vontade de criar uma imagem dele por alguma razão.

O porquinho: escrever sobre o sertão me lembrou vias secas, como Graciliano já tem a cachorra Baleia me ocorreu o porquinho sofredor sob o sol inclemente.

A cama com lençol de rosas: na verdade é um auto-retrato escrevendo no frio de 13 graus negativos de Manhattan sob um edredon que minha mulher comprou no Soho; estava na vitrine sob um retrato da Mirilyn Monroe e lembro muito bem não somente por causa da Marilyn como pelo fato de ter custado 500 dólares.
caravela: adoro caravelas, velas enfunadas me dão ideia de liberdade, exploração, conquista do mundo. Vivo desenhando isso.

Passeio ao lado do Hudson: onde caminhávamos quase todos os dias, ficava ao lado de casa, no Battery Park City.

A loirinha brava: ninguém em especial, apenas a fúria feminina em estado puro.

O feto com o coração: minha mulher estava grávida, acho que eu até sonhava com isso, é o primeiro retrato do Guinho (baseado num ultrassom).

A rua que termina no rio: vista da janela do nosso quarto.

O garoto gordinho: começou com apenas um círculo.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Meu romance preferido



Existem os livros preferidos dos leitores. E os preferidos de um autor, entre seus próprios livros.

A quem pergunta qual de meus livros é meu preferido, uma só resposta: Campo de Estrelas. Talvez não seja meu melhor livro, em técnica, resolução ou mesmo ambição. Certamente é o que foi pior lançado. Todos os romances de um autor falam ao seu coração. Ele é meu preferido por uma só razão: as pessoas que envolve.

A primeira delas: meu pai. Claro que o pai do livro, inspirado nele, é quase ele. Claro que a viagem do livro, entre pai e filho que juntos rumam por terra a Macchu Picchu, foi também uma viagem de verdade. Coisas da literatura, a fantasia que acrescentei ao romance às vezes me parece muito real, tanto quanto a realidade pode parecer às vezes fantástica ou fantasiosa. O mendigo misterioso, travestido de rei em farrapos, foi um personagem que vimos de fato em La Paz. Que eu e ele não esquecemos.

Meu pai diz que não se lembra de detalhes que eu conto no livro. Fatos que eu tenho como reais podem ser mesmo fruto da imaginação. E ele lembra de coisas que já me escapam. Nunca saberemos ao certo. Já lá vão mnuitos anos, há a traição da memória e a diferença de pontos de vista. Mas foi estranho esse encontro de memórias por meio do livro. Foi estranho o simples fato de meu pai ter lido o livro. Ele, que me fazia ler todas as noites, antes de dormir, quando eu era um projeto de gente (ainda sou).

Sim, meu pai lendo um livro que escrevi. E, depois de ler, me deixou uma mensagem. Esta:

"Querido filho, prezado autor Achei lindo e comovente este final. É claro que sou suspeitíssimo não apenas por ser personagem, companheiro de personagem e pai do autor. Mas sobretudo admirador do estilo e sobretudo da coragem de se revelar publicamente. Fica sendo um livro de aventuras, diário de viagem, literatura juvenil, novela romântica, tudo dependendo da página em que o leitor estiver."

*

Outro personagem caro do livro é o do médico, identificado como Roger. Houve um Roger de verdade - Eric Roger Wroclavski, que tratou do pólipo na bexiga de que fui vítima, me salvando a vida.

Eric morreu há cerca de um ano, vítima de câncer na próstata, que descobriu quando já era tarde demais - ironia cruel, caiu pela doença que tratava. Eric era um herói, que lutava diariamente acima de forças humanas para salvar a quantos pacientes podia. Não sabiamos que ele mesmo sofria do mal que combatia diariamente, pois a ninguém contou da doença. Nem à família. Nem aos médicos que com ele trabalhavam.

Fui ao hospital visitá-lo. Li para ele os trechos do livro em que aparece. Achou que eu devia ter posto o nome dele de verdade. Se eu soubesse o que ele sabia, pensei, teria escrito um romance muito melhor. Nem o mais imaginativo ficcionista poderia imaginar que o médico estava mais doente que o pacioente, e as perguntas que me fazia sobre a vida, literatura e como encarar a vida tinham para ele interesse capital. Comungávamos do mesmo medo.

Depois de saber que ele era um homem marcado para morrer desde o início (ficamos doentes na mesma época), todas as nossas conversas ganharam para mim um novo sentido. "Você devia ter me contado", disse eu. Eric riu. Mal se movia na cama, e riu. Eric salvava vidas, mas só temporariamente. Só os livros podem eternizar realmente as pessoas. Essa é a pretensão da literatura - perenizar estrelas tão fugazes com um brilho capaz de ficar no tempo. O sentido desse meu Campo de Estrelas, onde está reservado lugar para todos nós.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

A Flip do povo


Durante cinco dias Paraty foi capital, tomada de assalto pela Flip, que invade suas calçadas centenárias, suas casas ancestrais e sua geografia congelada no tempo para um espantoso evento cultural. Saem de seus tugúrios em todo o mundo os autores convidados, desembarcam na cidade com sua bagagem desajeitada, en vans que se aproximam do alvo pulando nas pedras feitas para incomodar estrangeiros e invasores, mais do que favorecer a visitação; e o povo acorre em massa para ver aquela gente estranha, com ideias velhas e novas, importantes e inúteis, agudas ou enfadonhas; uns para aprender, neste país cuja sede de saber é proporcional à nossa imensa ignorância, outros apenas para aparecer, ou estar perto de algum centro de acontecimentos; uma cidade é transformada em vitrine, com todos os cantos vigiados pela imprensa, grande circo armado ao redor das tendas armadas com precisão de primeiro mundo. Filas para comprar livros, gente de mão no queixo, embasbacada diante de tanta inteligencia: é o Brasil andando, o Brasil ao qual só falta educação para decolar rumo ao verdadeiro progresso, o Brasil lindo e trigueiro da música proverbial.

Como a Fórmula 1 do saber, o circo se instala; flanam pela cidade aqueles estrangeiros de todos os matizes, autores desembarcados de outro planeta, jornalistas, editores, assessores para tudo; vagueiam com suas dúvidas, suas ânsias, sua pressa, suas questões metafísicas, sua insônia permanente, suas psicoses, sua vontade de mudar, sua esperança cetica de que num encontro de cabeças brilhantes alguma faísca de progresso se possa produzir como que por milagre; são uns crentes, os intelectuais. Desfilam suas certezas inócuas, sua vaidade anacrônica num anfiteatro onde esquecidos da cultura ganham de novo súbita importância, devolvidos à notoriedade; e quando chega o domingo, tomam suas malas e embarcam de volta para a sombra das vans, para suas noites de insônia solitária, enquanto as centenas de pessoas invisíveis, aquelas que até então estavam no segundo plano, aquelas que chamamos de povo, que nesses dias paracem ocupar anonimamente a praça, invisíveis para a mídia, para aqueles alienigenas céleres e efêmeros, as pessoas que fazem número, a massa informe à qual ninguém até então havia prestado atenção, retoma o controle de seus território, e a cidade é tomada pelo batuque de escola de samba; a alegria se espalha, como se sentisse novamente livre para ficar à vontade.

O povo volta a ser ele mesmo, distante das ideias, distante do que leva aquela gente ensimesmada a tantas perguntas, e portanto a tantas angústias; a alegria pura e simples retoma seu espaço, enquanto os varredores de rua jogam em sacos de plástico preto os restos de festas desesperadas, esforços inúteis, das utopias elitistas, das mais ilustradas ilusões.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Um panteão de mármore frio


A morte do Nobel a quem faltava um pouco de amor

Sequer na morte o "L'Osservatore Romano", jornal oficial do Vaticano, perdoou José Saramago, falecido aos 87 anos em sua ilha espanhola. Expatriado voluntário, que não contava muita popularidade em seu país de origem, do qual se distanciou, ou foi por ele distanciado, ao despedir-se da vida o primeiro Nobel em língua portuguesa foi subtraído da benevolência devida às almas pela igreja católica. Em vez disso, a santa imprensa preferiu descontar sua ira contra o cadáver indefeso.

Com o irônico título "O grande (suposto) poder do narrador", o órgão de imprensa do Vaticano definiu Saramago como "um ideólogo antirreligioso, um homem e um intelectual que não admitia metafísica alguma, aprisionado até o fim em sua confiança profunda no materialismo histórico, o marxismo." E acrescentou, em outra passagem do texto obituário: "colocou-se com lucidez ao lado das ervas daninhas no trigal do Evangelho".

Sim, Saramago era ateu, e marxista. Como comunista convicto, defendeu o joio que vinha com o trigo: as atrocidades cometidas em nome dos bons ideais do comunismo. Para Saramago, como para todos os comunistas da velha cepa, os fins justificam os meios. Embora também condenasse muita coisa no mundo. "Ele dizia que perdia o sono só de pensar nas Cruzadas ou na Inquisição, esquecendo-se dos gulags, das perseguições, dos genocídios e dos samizdat (relatos de dissidentes da época soviética) culturais e religiosos", salienta o editorial.

O Vaticano usou com Saramago uma ironia que não se devia ter com os mortos e uma impiedade que não deveria combinar com a igreja. Também o Vaticano cometeu aí uma atrocidade, que é a de esquecer a função precípua delegada por Jesus: perdoar e compreender mesmo quem rejeita a doutrina ou o próximo. Porém, o editorial acerta quando detecta o que faltava, se não ao ser humano Saramago, ao menos ao romancista: um pouco de amor.

Como revela sua obra, Saramago era um intelectual brilhante. Seus romances são, como diria o velho bardo português, repletas de engenho e arte. Sua obra-prima, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, que desgostou a Igreja muito compreensivelmente, nos introduz à ideia ao mesmo tempo marota e intelectualmente provocadora de que Jesus deve seu papel não a sua santidade, mas ao diabo. E nos coloca diante da importância e utiidade do Mal para o Bem – e a própria História.

O intelectual, porém, é o esgrimista da razão. Se aos romances de Saramago sobra inteligência, falta um pouco da sensibilidade, assim como ao homem Saramago faltava um pouco de vivacidade. A maioria de seus romances tem a mesma rica engenharia de linguagem, ideias e conceitos, mas são intelectuais demais. Um bom exemplo é o Ano da Morte de Ricardo Reis, que parte de um princípio instigante: o heterônimo de Fernando Pessoa volta a Lisboa para encontrar o poeta que é seu criador, como um personagem real. O resultado dessa bela ideia, porém, resulta numa filosofia arrastada, às vezes de uma chatice terrível.

Saramago escrevia como quem comprovava belas teses, mas não emocionava. Morava numa ilha não por acaso. No trato, era um senhor doce e educadíssimo, mas parecia manter uma certa distância olímpica do mundo. Como Jorge Luis Borges, que morreu amargurado, certo de que era “admirado, sem ser amado”, carecia daquele elemento fundamental que os escritores devem possuir: a necessidade não de demonstrar sabedoria, mas de se aproximar do outro.

Saramago teve seu Nobel, merecido pela qualidade de sua refinada obra. Porém, não teve seguidores apaixonados, como um Garcia Marquez, outro comunista de carteirinha, nem jamais os terá. O tempo tornará ainda mais frias as letras de quem as urdiu para falar ao cérebro, e não ao coração. Pois os tempos mudam, as ideias e convicções também - somente a essência humana permanece. Saramago morreu para entrar na glória, mas, como supõe a igreja, passará a um panteão de mármore frio, em lugar do Reino dos Céus.

sábado, 29 de maio de 2010

Literatura para pisotear


“Aqui nesta casa não há livros nem quadros, o diabo mesmo os levou.”


Frase extraída de D. Quixote, diante da casa onde viveu e morreu Miguel de Cervantes Saavedra, em Madri. Número 2 da calle Cervantes, que no tempo do artista tinha entrada pela Calle de Leon.

Tanto lugar para ir em uma cidade inteira e parei parei descansar e fumar um café crème justo aqui. Só depois percebi onde me encontrava. Mera coincidência?

Cervantes estava certo, este é o destino do escritor. O próprio diabo leva tudo o que prezamos, mas pelo menos nos países que dão algum valor a seus escritores, sobra alguma coisa.

*
Madri imprime em letras de bronze versos e frases de seus escritores no calçamento do centro histórico. Dá valor à sua cultura. Ali seus herois culturais são pisoteados, mas ao menos não são esquecidos, o que lhes dá ao menos um pouco de honra e glória, a única coisa que se pode roubar ao diabo. Diferente do Brasil, onde os escritores nacionais parecem não merecer sequer lamber a sola dos sapatos.

domingo, 16 de maio de 2010

Diferenças entre yin - yang


Yin carrega poesia para a prosa, algo sempre muito difícil: exige o trabalho do ourives, o talento e paciência. Mas que, bem feito, produz resultados maravilhosos. É como escrever ao modo dos chinês, nanquin sobre papel de arroz, com cuidado, arte milenar. Busca a essência, até mesmo nas palavras; por isso, é profundo sem ser rebuscado; é elegante sem exageros; é apenas pleno de significado. Yin é intimista, no tema, no tratamento, no resultado.


Yang dá mais ênfase à trama, ao enredo, que à linguagem. Conduz o leitor menos pela profundidade das idéias que pela sequência da ação. Não aplica poesia à prosa, não busca seu poder nas imagens; ele apenas sugere a emoção como consequência da ação; mais do que diz, importa o que deixa de dizer, e que apenas se sente, como resultado do ato, como acontece na própria vida.


Yin quer só escrever, não importa onde, nem que seja numa masmorra, como Dostoiévski e Graciliano; alimenta-se de si mesmo. Yang quer somente escrever, mas onde tenha liberdade; precisa viver para alimentar sua criação, seja como um plongeur em Paris como Orwell ou estivador como Hammett en Nova York.


Yin gosta do mar, do sal e da brisa marinha; seu mundo é povoado de imágens aquáticas. Adora navegar, sentir o vento bater no rosto, a imensidão perigosa das águas, mas tem de voltar para a praia, a casa, o fogo, como o pescador; não suporta muito tempo a solidão do universo ao redor, precisa de companhia, de gente, de carinho; busca a comunhão com todas as criaturas, em harmonia com a natureza, faz parte dela.


Yang adora o mar, mas não depende de um porto aonde voltar; os vagalhões não são apenas movimento da vida, pelos quais nos deixamos levar; ao contrário, são um desafio a enfrentar. Prefere todo lugar mais isolado, que desperte seu instinto para a aventura, como o alto das montanhas, os extremos gelados da terra ou o céu estrelado e o silêncio dos desertos. Está em desarmonia com o mundo; rebela-se contra ele; embora seja livre, é o verdadeiro amigo da solidão.

Yin e Yang, dois caminhos, ou um só?

terça-feira, 4 de maio de 2010

Uma mulher em sua ilha

Falo por e-mail com a escritora e poetisa Wendy Guerra, em Havana. Guerra diz que vive “longe de tudo e de todos”. Que pouco fala com editores. Lê mal em inglês, criada como foi no regime comunista, que ensinava russo às suas crianças. Vive em uma cobertura em Miramar, “rodeada de mar e luz”, onde come “entre cristais”.

Em seu mais recente romance, Nunca Fui Primeira Dama, que acaba de ser lançado pelo selo Benvirá, sua personagem habita um casarão “cheio de sal” no Malecón, a célebre fachada da cidade diante do mar, semi-abandonada. Sempre me perguntei se havia gente morando ali, naquela galeria fantasma. Na obra de Wendy, há. Um pouco dela está lá. Como acredito que a ficção diz mais sobre o escritor do que a vida real, vejo Wendy em seu palácio abandonado, como se ali vivesse de verdade.

Decidiu usar sua presença em Cuba como manifesto. Seu romance, belo e pungente, conta a história de uma mãe foragida do país por escrever um livro sobre a falecida secretária de Fidel, Celia Sánchez. Por isso, a mãe teria abandonado a filha em Cuba, aos dez anos de idade. Ao contar a história da mãe, a narradora de Wendy conta também a de Celia. Resgata a figura da mãe, em todos os sentidos. E completa o trabalho materno, publicando a história proibida da mulher que mais perto esteve de Fidel. Como autora, coloca-se no papel de sua própria personagem.

Wendy fica em Cuba, como estandarte de uma cruzada pessoal. Não quer sair, como tantos que saíram, esgotados com o regime. Ao fim dos termos, sua história pessoal é também de defesa da liberdade, da literatura e da expressão, em uma Cuba que não precisa abandonar suas utopias para voltar a ter tudo isso, e mais o progresso. Como ela diz, pertence a uma geração que não é nem da de seus avós revolucionários, nem mesmo a de seus pais, os operários a quem se atribuiu a tarefa de construir na vida real os velhos sonhos.

Ela é uma geração que quer igualdade social, mas também quer liberdade. Que faz da vida comum e das necessidades mais simples, como a de reconstruir a família destroçada pelas antigas gerações, a sua verdadeira bandeira política e o seu manifesto.

Em seu castelo feito de memórias, Wendy não está sozinha. Com ela, estão os injustiçados do passado, os banidos, os inconformados. Os que vão embora, mas sobretudo os que não vão. Os inconformados que ficam, marcam posição. Os que tentam reconstruir algo sobre um passado incompleto e desolador.

Hoje já não existem ilhas completamente isoladas. Como sua personagem, Wendy rasgou as capas que cobriam os livros proibidos da biblioteca de sua casa, também como um gesto simbólico. Cuba aos poucos muda. Ela não tem seus romances publicados em Cuba (por lá saíram apenas os de poesia), mas também não precisa fugir de sua ilha para escrever.

Cuba nunca foi uma ilha e hoje menos que nunca. Ernest Hemingway viveu lá. Precisava apenas da brisa do mar, da linha de pesca, do sol cubano, do mar cerúleo, do rum para os daiquiris na Floridita. Era um homem ilhado e ao mesmo tempo estava mais presente no mundo que muita gente plantada em Paris e Nova York. Wendy também é assim.

Wendy Guerra está em Cuba. Escritores são ilhas, vivendo dentro de si mesmos, cercados de suas obsessões por todos os lados. Não importa se vivem numa cabana nas montanhas, numa praia deserta ou num apartamento da megalópole. Ao mesmo tempo, se correspondem com todos. Onde quer que estejam.

Wendy Guerra vive entre velhos cristais, mas ao mesmo tempo está em todo mundo, onde se pode compartilhar dos sentimentos que ela generosa e corajosamente abre como a flor do coração.

Sim, o Malecón à noite é semiabandonado, escuro, feio e sombrio. Dá medo. Mas lá há vida que se espalha sobre o mar.

domingo, 18 de abril de 2010

A pobreza, a riqueza e a arte


O escritor Francis Scott Key Fitzgerald, um dos membros da tríade dos grandes romancistas da literatura americana, ao lado de Henry James e Herman Melville, costumava dizer que, sem a sua obsessão pela riqueza e a vida dos ricos, teria escrito uma obra completamente diferente.

Com seus três principais romances (O Grande Gastby, Suave é a Noite e O Amor do Último Magnata), Fitzgerald foi o autor que melhor captou a aura da riqueza e o seu efeito sobre a alma humana. Sua obra mais famosa, O Grande Gatsby, é considerada pelos críticos o romance central da literatura dos Estados Unidos, pela maneira como retrata o Sonho Americano, seu endeusamento e suas vicissitudes.

Em Suave é a Noite, obra marcante da Geração Perdida, mostra a vida perfeita dos ricos na era próspera dos anos 1920, crônica de uma época em que a América decolava num binômio de prosperidade e hipocrisia que se tornou novamente muito atual.

“Scott Fitzgerald foi ao mesmo tempo o grande celebrante e o satirista do sonho que virou pesadelo”, define o crítico literário Harold Bloom, no ensaio “Gênio”, sobre os maiores mestres do mundo das idéias em todos o os tempos.

O cenário de O Grande Gatsby é a América da Lei Seca, na qual um garoto pobre das ruas de Nova York chegava ao Sonho Americano pela via do crime organizado. A apresentação da máfia como um negócio qualquer, confundindo um bandido a um grande homem de negócios, é típica do estilo de Fitzgerald, no qual o brilho e a euforia da riqueza contém também os genes do seu trágico fim.

No romance, ele se dá com a morte do protagonista, Jay Gatsby, assim como na História a derrocada veio com o crack de 1929, que levou à bancarrota não somente os milionários da época como seu estilo de vida e a ilusão um tanto hipócrita de toda uma era.

Tudo isso parece familiar? Por trás da fuga do volátil capital globalizado e dos homens-bomba enviados vingativamente pelo mundo marginalizado dessa riqueza, há um cheiro permanente de que o paraíso dos ricos americanos está ameaçado. “Hoje em dia, no início do Século XXI, não está claro o que opera o sonho americano como mito estruturante”, escreve Harold Blom. “Na Era de Ouro de George W. Bush e seus Barões do Roubo, haveremos de dizer: expandir ou explodir?”

Em vida, Fitzgerald vendeu apenas 25 000 cópias de O Grande Gastby e, a despeito de ter se casado com uma mulher de família rica, conheceu tanto o lado looser (“perdedor”) quanto o winner (“vencedor”) no qual o Sonho Americano dividiu seus cidadãos - e, por extensão, a Humanidade. A linha demarcatória do dinheiro, que para o padrão americano estabelece se uma existência pode valer ou não a pena, é o denso e ao mesmo tempo sutil material de trabalho do escritor, que constrói seu ponto de vista pelos detalhes aparentemente mais prosaicos.

Como na cena em que Gastby mostra ao narrador, Nick Carraway, sua coleção de ternos, trajes a rigor, gravatas e camisas acondicionadas meticulosamente em pilhas de 12 unidades. Eram compradas para ele na Inglaterra, depois de uma rigorosa seleção entre as novidades da estação:
“Tomou uma pilha de camisas e se pôs a exibi-las, uam a uma, puro linho, seda ou flanela, que, ao caírem sobre a mesa, em uma desarrumação colorida, perdiam os vincos das dobras... De súbito, emitindo um ruído de dor, Daisy curvou-se sobre as camisas e pôs-se a chorar, convulsivamente. “Que camisas lindas!, ela soluçava, a voz abafada pelos tecidos. “Fico triste porque jamais vi tantas... tantas camisas tão lindas assim.”

Essa fina construção é também o esteio de Suave é a Noite, publicado por Fitzgerald em 1935. Nele, a frivolidade de uma vida perfeita apenas na aparência é desvelada de maneira tão mais chocante quanto sutil.

A história de Dick Diver, um jovem e brilhante psiquiatra que interrompe sua carreira para casar-se com Nicole Warren, uma herdeira bela, rica e mentalmente perturbada, é vista pelos olhos de uma aspirante a estrela de Hollywood. Esta conhece Dick e Nicole em uma temporada na Riviera Francesa, onde se apaixona não só pelo protagonista como pela imagem de perfeição produzida pelo casal. Para sua surpresa, ela os reencontrará anos mais tarde. Nicole, recuperada, continua a levar a sua vida de distanciamento da realidade, como se o tempo não tivesse passado.


Descartado depois de cumprida a sua finalidade, Dick torna-se um médico obscuro no interior do Estados Unidos, fadado a lutar no fim da vida contra dificuldades materiais e o vazio de, depois de ter entrado naquele círculo de sonhos, ser enviado de volta ao que socialmente determinou-se ser o seu lugar.

Em sua própria biografia, Fitzgerald lutou para firmar-se nesse mundo mais aristocrático que ele acreditava sempre rejeitar corpos estranhos. Nascido em 1896 em Saint Paul, Minnesota, ele descendia de uma família católica irlandesa, o que significa estar no centro da mentalidade que se tornou a base do comportamento e da sociedade americana. Estudou na Universidade de Princeton e se alistou na primeira guerra mundial, sem no entanto chegar a combater. Numa época em que os escritores podiam ganhar tanto dinheiro quanto hoje o fazem autores de novelas na TV, arriscou-se na atividade literária.

Em 1920, publicou Este Lado do Paraíso, romance que lhe deu grande popularidade e lhe abriu espaço em publicações de prestígio, como a Scribner's e o The Saturday Evening Post. Seu segundo romance, Os Belos e Malditos, foi publicado em 1922.

O sucesso financeiro foi suficiente para aproximá-lo de Zelda Sayre, sua futura mulher, que já o havia rejeitado em tempos de vacas magras. Filha de família rica, Zelda seria um componente importante e trágico na vida de Fitzgerald. Dividia com ele o gosto pelas coisas boas e as viagens que os levaram a temporadas na Europa e à companhia de milionários como Gerald e Sarah Murphy, americanos que recebiam os amigos artistas em sua casa de veraneio na Riviera Francesa.

Emocional e psicologicamente instável, Zelda deixava fundadas suspeitas de trair o marido e causava escândalo com suas bebedeiras e um comportamento inconsequente. A partir de 1930, seria internada sucessivas vezes em sanatórios para tratamento psiquiátrico, rendendo a Fitzgerald farto material para Suave É a Noite.

Mais tarde, Zelda escreveria um livro de memórias acusando o marido de tê-la plagiado, entre outras declarações que somente podem ser explicadas como produto dos sanatórios onde ela fazia terapia ocupacional.

Com a saúde já abalada pelo alcoolismo, Fitzgerald mudou-se para Hollywood, onde trabalhou como roteirista cinematográfico, último refúgio para ganhar algum dinheiro. Em 1939 começou a escrever seu último romance, The Last Tycoon (O Último Magnata), publicado postumamente em 1941. A obra era sua última tentativa de retratar a personalidade de um grande artífice do "sonho americano", inspirada em um grande produtor hollywoodiano.

Nesse livro incompleto, o escritor americano John Dos Passos veria a libertação de Fitzgerald de sua obesssão pelos ricos. “pela primeira vez, ele escreveu sobre eles como se fala de um outro ser humano, numa relação entre iguais”, disse Dos Passos, num artigo sobre a morte do amigo. Sim, Fitzgerald estava enfim livre, mas, como nos mais trágicos romances, não de maneira que pudesse aproveitar, pois deixaria o livro incompleto. Morreu aos 44 anos, fulminado por um ataque cardíaco que terminou de liquidar seus corpo já devastado pelo alcoolismo.

Por suas idéias e estilo, Fitzgerald ajudou a criar a aura da Geração Perdida, um grupo de romancistas que precedeu o existencialismo na sua técnica e propósitos. Outro expoente desse grupo, Ernest Hemingway, seguiu na esteira da obra de Fitzgerald em romances como O Sol Também se Levanta, no qual a sensação de inutilidade e crueza da vida passa pela narrativa da viagem de um homem impotente pela Espanha das touradas e de uma amante inalcançável.

O homem castigado pela sua própria natureza, ou o que o destino lhe reservou, são o traço comum no estilo do Hemingway de seus primeiros anos e Fitzgerald, a quem o amigo descreveu no memorialístico Uma Festa Móvel como um ser já decadente e apodrecido pela bebida – tudo verdade, mas resultado de uma ponta de inveja por uma literatura superior. Impotente como seu alter ego de O Sol Também se Levanta, o livro no qual procurou mais aproximar seu estilo ao de Fitzgerald, Hemingway não terminaria a vida melhor que o antigo colega. Alcoólatra e deprimido, matou-se com um tiro de sua espingarda de caça.

O valor da obra literária de Fitzgerald perdura, mesmo que tenha passado por altos e baixos tão grandes quanto os de sua vida. Adaptado para o cinema e a Broadway, O Grande Gatsby mergulhou no esquecimento no longo período da depressão e só ganhou fama ao ser republicado depois da Segunda Guerra mundial, quando foi aclamado como a obra prima da literatura americana.

Está de volta às prateleiras nos Estados Unidos como um alerta muito presente dos perigos da prosperidade, agora que ela não parece ter freios senão ela mesma. Assim como o personagem-título de O Grande Gatsby, há nos Estados Unidos de hoje aquele mesmo materialismo que ameaça corroer a alma humana. 

É essa condenação ética que faz se voltar contra o país o olhar indignado do mundo, cansado da resposta aos problemas sociais dos marginalizados com a política do “big stick” – a expressão cunhada por Franklin Roosevelt para esclarecer que aos americanos estão sempre dispostos a usar a diplomacia da paulada. 

Na obra de Fitzgerald, como na vida, a abundância carrega em si mesma uma certa arrogância visível para todos – exceto, evidentemente, para quem a encarna.

domingo, 10 de janeiro de 2010

O caminho certo

A volta do prazer da leitura para muita gente

Nos últimos tempos, voltei a ler livros em série, por conta do trabalho – recentemente, assumi a direção editorial da Editora Saraiva para fazer livros de ficção e não-ficção. Não me dava conta de quanta falta estava sentindo de ler; recuperei assim um prazer de menino.

Não deixei de ler bastante por falta de tempo ou de interesse. Quando enconram em um livro uma ideia que os interessa, muitos escritores param a leitura, compelidos a escrever. Quando algo me desperta, passo imediatamente para o papel. Depois de certo tempo, o que temos a escrever passa a ser mais importante do que aquilo que queremos ler, exceto quando isso traz informação ou contribui de alguma forma para o texto. Então o autor acaba sempre ocupando o tempo do leitor.
Agora que o editor se impõe, o leitor volta a tirar o tempo do autor. Tenho de criar produtos e ler, não como diversão, mas com os olhos do avaliador de mercado.

É enorme o número de livros que eu gostaria de ler por interesse prático ou puro prazer. Muitos deles passaram para o final da fila; agora, a prioridade são aqueles que devo ler, por razões profissionais. Fico feliz, no entanto, de saber que o Brasil está no bom caminho. Sabemos que o desenvolvimento de um país depende da educação, e a educação depende da formação de leitores. E nossos leitores estão aumentando em número e qualificação.

Um sinal disso é que já não são tão raros os livros que alcançam números expressivos de vendas. Há livros que chegam aos 500 mil exemplares vendidos. No mercado de livros para adolescentes, em que estão títulos da série crepúsculo e Harry Potter, as cifras superam a casa do milhão. É gente cujo interesse pela leitura certamente não se perderá.

Pouca gente sabe, mas o Brasil tem um dos maiores, se não o maior programa de distribuição gratuita de livros do mundo. Todos os anos, o governo compra e distribui cerca de 130 milhões de livros didáticos e paradidáticos. Com isso, acaba aumentando o número de pessoas que tem acesso ao livro pela base, ainda que o ensino de massa somente aos poucos venha ganhando qualidade.

Quem começou esse programa maciço de distribuição de livros foi José Sarney, quando ocupou a presidência; no meio de tantas barbaridades por ele cometidas, o presidente que é também imortal da academia acabou pouco reconhecido pela melhor coisa que talvez tenha feito - o seu Bolsa Família na área educacional.

A leitura aumenta também porque nunca tivemos tantos alunos de segundo grau e de nível universitário. As escolas são fracas, dizem os especialistas, mas é assim que se começa. Quando há mais oportunidade de estudar, o topo de pirâmide acaba também por aumentar com o crescimento da base. E, com o tempo, a qualidade vai crescendo, depois do salto inicial da quantidade.

Para completar, creio que a internet, em vez de destruir o livro, só vem a ajudá-lo. Democratiza, barateia e estimula o acesso à informação e à cultura. Nunca se leu e escreveu tanto quanto hoje, graças à internet. O preço de todo produto virtual será mais baixo e com certeza provocará muitas transformações no mercado editorial. Mas ao final disso a escala de vendas será como nunca jamais se viu.

A Câmara Brasileira do Livro estima que o brasileiro compre, em média, 1 livro por ano. Nos Estados Unidos, são nove. Creio que essa é a distância que nos separa do primeiro mundo. No entanto, significa que há um grande espaço para crescer. Quando se fala tanto em desaparecimento do livro por conta do meio digital, acredito que no Brasil seu futuro está apenas começando.