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sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Lucy e o sentido da inteligência



Assisti Lucy, o filme de Luc Besson com Scarlett Johansson e Morgan Freeman, que acaba de entrar em cartaz no cinemas, e deve também sair em breve, como hoje em dia costuma acontecer. Um filme estranho, sob muitos aspectos; aquela velha e boa sensação de estranheza de que algo ali merece ser explorado, como acontece com grandes filmes de ficção cientifícia, como 2001, Uma Odisséia no Espaço, de Kubrick, ou Solaris, de Andrei Tarkovski.

A primeira estranheza, na verdade, vem da combinação que deu origem à produção: um cineasta francês, a quem se entregou a tecnologia dos grandes estúdios americanos. O resultado é um Frankeinstein cinematográfico: ao mesmo tempo em que procura fazer um filme de ideias, ao estilo francês, Besson cede aos efeitos especiais e a velhos chavões do consumo de massa: o vilão implacável e sua gangue, a perseguição de carros e o policial honesto que se mete na história por acaso. Por trás disso, porém, há uma ideia melhor, mais profunda e interessante.

Sob o impacto de uma overdose involuntária de drogas que carrega em um saco costurado no ventre, Lucy vai atingindo progressivamente 100% do uso do seu cérebro; resultado de uma reação em cadeia da inteligência, equivalente a de uma bomba nuclear. Com ela, podemos nos fazer muitas perguntas; sobretudo, nos aproximamos do conceito de que não existe a morte. E que o verdadeiro sentido da inteligência é o da busca pela imortalidade.

Nos acostumamos a pensar que somos o nosso corpo; o filme de Besson nos lembra que o corpo não importa. Vivemos querendo ser a árvore, regá-la, apará-la, conservá-la por mais tempo que pudermos, mas ela nunca deixará de ser perecível. Lucy entende que a única forma de sobreviver é não ser árvore, é entrar para a natureza, que nunca morre. A evolução do ser humano é abandonar o corpo perecível para ser somente uma forma de inteligência.

Estranho? Pode ser, mas aí está um intrigante caminho, e quem sabe uma visão do futuro, baseada nas possibilidades humanas. Muitas vezes a ficção científica mostra soluções; a própria física começa como uma investigação filosófica, para depois ser demonstrada em fórmulas matemáticas. O filme escorrega nos americanismos, e às vezes alguma cenas parecem patéticas, como o encontro de Lucy com sua versão antropóide, primeiro espécime da desenvolver a inteligência que consideramos humana, ou sua subida pelas paredes, que mais lembra carrie, a Estranha. Porém, não há pasteurização capaz de derrubar o fato de que, ali, há algo interessante no ar, e cada um pode tirar disso suas próprias conclusões.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

As mais duras escolhas

Lincoln, o filme de Steven Spielberg, sem ser um grande filme, tem grandes momentos – especialmente aqueles que dão oportunidade à interpretação de Daniel Day-Lewis e algumas cenas, como o encontro do protagonista com o general Grant, ao fim da guerra, numa conversa de compadres. Lincoln comenta que um permitira ao outro realizar uma porção de coisas horríveis. Há na ironia, junto com uma discreta celebração da vitória, o travo de amargor pelo preço que ela custou.

A história americana é marcada pelas terríveis dissenções que levaram um país a uma guerra civil que matou 600.000 pessoas. O filme mostra a dura escolha de um presidente que decide continuar a matança, por uma questão de princípio: enquanto não houver o abolicionismo, isto é, que se restabeleça o princípio da igualdade, nenhuma paz faz sentido. E isso precisa ser levado às últimas consequências.

Lincoln faz aprovar a lei abolicionista e acaba com a guerra de secessão, mas não por um acordo. No Congresso, compra votos e manipula o que pode para encorajar o voto daqueles parlamentares que receiam represálias; com os sulistas, também não obtém nenhum consenso. Apesar de sua vocação para contar histórias - o pendor daqueles que vivem para convencer os outros pelo bem -, só impõe a paz ao aniquilar os confederados pela via militar. O convencimento vale muito pouco. A democracia e a Justiça prevalecem pela força, mesmo no país que se arvora em ambas como o mecanismo da paz.

O filme é esquemático, mas traz as ideias que representam a chave para o avanço do mundo civilizado. A igualdade de direitos, um princípio que parece tão fundamental, foi o grande desafio de Lincoln, mesmo que, como mostra o filme, ele entendesse os negros tanto quanto um povo alienígena. Acreditava na essência da Humanidade, na Justiça e na igualdade perante a lei. E a força dessa convicção era maior do que qualquer diferença, estranheza ou obstáculo.

As dissenções elementares da sociedade americana não desapareceram até hoje. O desafio de Lincoln foi o mesmo de John Kennedy, um século anos depois, quando, ao lado do irmão Bob, seu secretário de Estado, colocou-se ao lado de um negro para que ele pudesse entrar na universidade em um Estado conservador. Seis meses mais tarde, assim como Lincoln, ele seria baleado na cabeça. E seu irmão Bob também seria assassinado pouco tempo depois.

Foram precisos quase 150 anos desde Lincoln e dezenas de eleições presidenciais para que um negro assumisse seu lugar na Casa Branca. A desigualdade ainda é o maior desafio dos presidentes americanos. Não é por outra razão que, no discurso de posse de seu segundo mandato, Barack Obama viu diante de si, no vasto campo diante do Capitólio, em janeiro deste ano, uma multidão que simbolizava o país galvanizado pela importância do momento.

Obama representa não apenas mais uma vitória da igualdade dentro dos Estados Unidos, como uma esperança para todo o mundo: a expectativa de que os americanos aceitem cada vez mais não apenas a igualdade racial e política como a igualdade entre os povos, e que possam a partir disso respeitá-la.

Os adversários de Obama ainda são os mesmos de Lincoln e Kennedy. Aqueles que ainda é preciso vencer às vezes com o ardil ou com a força, para que a Justiça e a igualdade possam subsistir. A esses perdedores historicamente restou o recurso baixo, torpe e covarde da vingança e do terrorismo. Dessa forma eles colaboram, sem querer, para o avanço do Iluminismo. Cada vez que um gigante cai, sua sombra se levanta. Lincoln foi assassinado porque fez a igualdade triunfar, mas aqueles que desejavam sua morte não perceberam que, ao matá-lo, fizeram dele não apenas um mártir, como consagraram seus ideais.


segunda-feira, 6 de julho de 2009

A razão sem razão


Por que podemos estar certos e ao mesmo tempo nos sentir tão mal

Cruz e Souza, um de nossos grandes poetas simbolistas, escreveu certa vez: “Não tenho orgulho do que penso, eu me orgulho do que sinto”.


É a frase que me vem à mente depois de assistir em DVD ao filme A Dúvida. No filme, na realidade a adaptação de uma premiada peça de teatro, a personagem de Meryl Streep, uma freira que desconfia de pendores pedófilos do padre interpretado por Philip Seymor Hoffman, alimenta-se de sua certeza e conduz um processo informal que força o suspeito à renúncia. Mesmo com todas as evidências de que estava certa, porém, a implacável madre termina sentido-se tão mal quanto se tivesse cometido um pecado capital.


Há em A Dúvida uma brilhante interpretação de um fenômeno que presenciamos e sentimos no dia a dia. Muitas vezes, podemos estar com a razão – e nem por isso nos sentimos melhor do que se não tivéssemso razão alguma. Muitas vezes, tudo o que fazemos de certo no final acaba parecendo errado pela maneira como conduzimos as coisas. Ou porque o objeto da razão – a verdade – é tão tênue que faz com que jamais possamos ter certeza absoluta de nada, e que a condenação de um ser humano é sempre injusta.

O que define o filme está no se início – a parábola segundo a qual o náufrago que nada sems aber se vai na direção correta não está sozinho. Contada por um padre no seu púlpito, ela sugere que o indivíduo em dúvida nunca está sozinho – teria Deus a seu lado. No final, proém, somos indizidos a uma outra interpretação da mesma história. O náugrafo não está sozinho na dúvida, porque não é o único. Quem não está?

A Dúvida é um belo filme, que faz pensar, sobretudo aqueles que se acham donos da razão. E que não compreendem, apesar de todos os seus bons motivos, o motivo de serem malvistos ou a sensação de que ainda assim fizeram algo de errado.

Isso acontece porque a razão em geral passa por cima dos outros. Podemos estar absolutamente certos de algo, mas para que nossos motivos prevaleçam atropelamos sentimentos alheios. A verdade às vezes é ambígua, ou não existe. Mesmo quando ela é cristalina, o exercício da razão mostra que ela no final não tem tanta importância. A razão eprde a razão quando mostra a intolerância com os outros, não vê a humanidade no erro alheio, o que tira do ser humano com razão a sua humanidade.

A razão pode ser justa, mas pode ser cruel, pode ser má. É a nossa humanidade, a sensibilidade de perceber os outros e a nós mesmos, que faz com que possamos dormir com a consciência mais tranquila. Cada um tem suas razões, mas o sentimento pe compartilhado. Para isso, temos de aceitar que o adequado para o outro nem sempre é o melhor.

Não se deve subestimar os outros; se agem de certa forma, por vezes é por uma necessidade interna, uma vontade alheia à razão, ou à nossa razão. Ao forçá-la a mudar, assumir suas tarefas ou induzi-la a agir de outra maneira, nos colocamos não contra umerro, mas contra os seus sentimentos. E isso, mais tarde, é difícil consertar.

Cruz e Souza, com a capacidade ímpar da poesia de resumir belamente sentimentos importantes, disse tudo. O que importa, aquilo de que devemos ter orgulho, não é do que pensamos, o fruto da razão, mas do que sentimos, o fruto do coração.