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quinta-feira, 31 de julho de 2014

Redford e Fonda: o bom finalmente é marginal



Nos últimos tempos, assisti a três grandes filmes, estrelados por astros do cinema que tiveram seu auge nos anos 1.960-1970: Robert Redford e Jane Fonda. Ambos têm muita coisa em comum. Representaram no passado uma geração de artistas ligados nos Estados Unidos aos movimentos de protesto, à contracultura, e mesmo assim sempre foram estrelas do cinema mainstream. Ambos foram sempre celebrados por sua beleza na juventude. Ambos protagonizaram alguns grandes clássicos do cinema. Ambos, especialmente Jane, filha de outro astro, Henry Fonda, são tão parte da indústria do cinema quanto a Paramount ou a 20th Century Fox.

Agora, eles têm mais coisas em comum. Uma delas é que continuam em grande forma. Ambos envelheceram bem. E têm feito bons filmes.

Redford, que criou e promoveu o Sundance, maior festival de cinema alternativo, e foi celebrizado por clássicos como Butch cassidy & Sundance Kid, ou Todos os Homens do Presidente, fez recentemente dois filmes excelentes. Um deles, Sem Proteção (cuja romance, de Neil Gordon, lancei no Brasil, como editor da Saraiva), conta a história de um ex-guerrilheiro foragido que é obrigado a revelar sua identidade por conta de um problema com o filho. Seu filme mais recente, Até o Fim, é uma poderosa história sobre um náufrago que praticamente não precisa de palavras para ser contada.

Fonda está em Paz, Amor e Muito Mais, uma comédia sentimental primorosa, em que faz um papel bastante ligado a ela mesma. A estrela de Amargo Regresso, Julia e outros papéis que lhe deram 7 Oscars, agora já uma senhora, vive a mãe de uma advogada que se ressente de sua opção pela vida hippie, a vida sexual livre e a plantação de maconha debaixo da casa, mesmo que tudo isso já pareça fora de moda. A pergunta que a personagem faz à filha (“o que fiz de tão grave que não posso ter o seu perdão?”) ressoa alto para gente como eu, que se coloca a mesma questão diante de familiares que nunca deixam de alimentar a raiva ou rancor.

Redford e Fonda têm ainda uma terceira coisa em comum. Nenhum de seus mais recentes filmes entrou em grande circuito. Mesmo sendo ótimos, passaram direto para a TV a cabo ou o DVD, onde podem ser vistos hoje. Finalmente conseguiram, de fato, ser alternativos, ou marginais. Seus filmes nem sequer chegaram aos cinemas.

Claro que isso se explica. A disputa hoje por espaço nos cinemas é muito grande. E os executivos do cinema talvez tenham outras prioridades. Talvez achem que os grandes astros do passado não tenham mais o mesmo apelo. Talvez os filmes que eles fazem hoje sejam finos demais para a maior parte do público atual. Talvez hoje as pessoas prefiram menos arte, e mais entretenimento. Talvez as pessoas se interessem cada vez menos pelo relacionamento humano, e procurem no cinema somente qualquer coisa cheia de efeitos especiais. Talvez a Humanidade tenha caído um degrau na escala evolutiva em certos aspectos.

De todo modo, Redford e Fonda continuam aí, para quem quer diversão e arte. Se a mídia digital trouxe um grande bem, é a possibilidade de se ter acesso a tudo, de alguma forma. Inclusive ao que é vintage e o que é bom.


quarta-feira, 13 de março de 2013

Os dez melhores filmes de todos os tempos

O cinema está tão perto da literatura que ambos para mim são uma coisa só: a arte de contar histórias escrevendo produz imagens, e as imagens para mim se tornam como referências literárias. Segue aqui a minha lista de filmes preferidos, que para mim vale como a lista dos dez melhores filmes de todos os tempos. Assim como a lista dos dez melhores livros, cada um deve ter a sua. Fica esta como inspiração.

1. Cidadão Kane. Pode parecer óbvio citar este que tantos consideram o melhor filme de todos os tempos, pela novidade narrativa (um filme de ficção feito como se fosse um documentário), a força elementar da ideia central (o significado de "Rosebud", somente revelado ao final), e sua ligação com a questão essencial da felicidade. Os clichês sempre têm um fundo de razão. O delírio de poder e dinheiro do milionário Kane, barão da imprensa, é confrontado com sua solidão final. A ironia é que o repórter em busca da resposta para o enigma de Kane jamais a encontra - ela fica como uma espécie de segredo reservado ao espectador.



2. Zabriskie Point. A obra prima de Antonioni, sobre um estudante que foge da polícia, encontra uma mulher no deserto e tem com ela um parênteses de amor, é uma elegia da liberdade. O final antológico ainda me faz palpitar o coração. O mundo sempre quer enquadrar o indivíduo, submetê-lo; nenhum outro filme representa tão bem a liberdade, nem mostra como ela está perto da paixão. Pelo tema, e também a estética, ele é também o expoente de uma geração marcada pelos movimentos de libertação, fosse contra as ditaduras que havia pelo mundo como dos costumes, desde a roupa ao Woman's Lib. Se querem saber como a geração de 1960 mudou o mundo, este filme mostra qual era a sua força interior.



3. O Esporte Favorito do Homem. Estrelado por Rock Hudson e Paula Prentiss, é uma deliciosa comédia sobre um expert de equipamento de pesca convidado por uma charmosa e desastrada marqueteira a participar de um torneio num lago turístico. Até mesmo eu não entendo bem o fascínio que esse filme exerce sobre mim, ainda mais sendo uma comédia aparentemente sem maiores pretensões. Acredito porém, que o motivo seja esse: ele é uma parábola irresistível sobre a inevitabilidade do amor, a conexão entre duas pessoas que aparentemente se detestam, e a natureza paradoxal da ligação entre homem e mulher, cujo encontro sempre parece ir além das coincidências, como uma prova da existência do destino. Isso contado sem nenhum intelectualismo, mas com a graça que deveria haver em todos os relacionamentos amorosos.



4. Blade Runner. Este é o filme que marcou minha geração; perdi a conta do número de vezes que o assisti, e sempre encontro nele alguma coisa de novo. Tenho certeza de que nem Ridley Scott se deu conta, quando o fez, da importância que esse filme teria; não é por acaso que tenha gerado tanta discussão ao longo dos anos. Persistem ainda duas montagens, uma feita pelo estúdio, no seu lançamento, outra que é chamada de "a versão do diretor". Eu gosto de ambas as versões, embora nos últimos anos tenha preferido a do diretor, que é mais sutil, e ao mesmo tempo mais abrupta e cruel. A ideia dos androides que adquirem sentimento e querem mais tempo para viver pode parecer um antigo clichê, mas a criação de um futuro onde o passado faz parte do cenário, do bairro chinês às bicicletas, o clima chuvoso de um planeta que se tornou inóspito, e sobretudo o personagem central, um detetive noir, fazem dele uma espécie de quebra cabeça cultural onde entretenimento puro e filosofia se fundem de um jeito que até parece natural. E é cheio de momentos antológicos, como o encontro do ciborgue assassino com seu criador, parábola de um encontro do Homem com Deus, sua declaração no momento da morte ("lágrimas na chuva") e a frase final que fecha o filme, de um impacto macabro que não fala somente ao personagem, mas a todos nós.



5. Os Embalos de Sábado À Noite. Clássico de um tipo de cinema considerado trash, foi um estrondoso sucesso de bilheteria e um fenômeno de massa em seu lançamento, que mudou o comportamento de toda uma geração. O que mais chamava a atenção eram os malabarismos de John Travolta ao som de Saturday Night Fever, mas o que o filme representava era a possibilidade de um sujeito comum e sem esperança de melhorar de vida e se tornar alguma coisa diferente - um nome com significado, por meio de um talento especial. Isso teve um impacto expressivo em todos aqueles garotos que viviam na periferia, como não mais que um número de RG. E que achavam que, como Tony Manero, poderiam sonhar com alguma coisa, numa época em que a sociedade de consumo de massa e a busca pelo hit alcançavam o seu auge. O figurino datado, a estética brega, os diálogos que hoje soam bisonhos retratam uma época que não existe mais; talvez esses sonhos de fama e riqueza também sejam hoje coisa do passado, ilusão passageira daqueles que, como eu, gostariam de recuperar esse tempo em que tudo era possível, até mesmo ser inocente.



6. O Cão Andaluz. Lembro quando vi o filme de Buñuel, quado ainda estava na faculdade, em uma sessão na Biblioteca Mario de Andrade, em São Paulo. O filme ainda causava escândalo, embora por razões diferentes das que provocara no seu lançamento. O gerente teve de vir à plateia irada, explicar que a projeção não havia sido interrompida de repente; para exasperação do público que reclamava seu dinheiro de volta, revelou que a obra prima do surrealismo tinha, de fato, apenas 20 minutos. Esse delírio que tanta gente buscou inutilmente explicar, onde Salvador Dali aparece puxando um burro morto dentro de um apartamento e um olho é cortado a navalha, numa sequência de cenas absurdas, foi feito para não ter sentido, ou para chocar; é uma provocação à imaginação, a ver diferente, a abandonar a necessidade humana de explicação para tudo; é uma elegia do caos universal, uma desconstrução do que sabemos. Por isso, mostra que a tarefa humana é desaprender, para entender melhor: nenhuma outra obra de criação tem esse peso intelectual, estético e histórico.



7. O Gabinete do Doutor Caligari. O impressionismo alemão nos deu essa pérola, que nos faz ver como podemos nos acostumar com a loucura; ao nos fazer entrar na realidade do louco, ao ponto de parecer a normalidade, passamos a duvidar de tudo, sobretudo de nós mesmos. Uma das grandes tarefas do cinema, a meu ver, é nos fazer mudar de perspectiva; seja para entrar no mundo do sonho, da fantasia, ou mesmo da loucura, seja para quebrar conceitos e pensamentos pré-estabelecidos como para entender o outro e anós mesmos; aí ele se transforma em arte. Com isso, abrem-se novas portas; ver diferente, quebrar paradigmas, é o que faz a sociedade dar novos saltos, assim como permite aos indivíduos compreender melhor uns aos outros, fugir da mesmice e encontrar melhores caminhos.


8. Amarcord. Federico Fellini fez grandes filmes, mas entre eles este é meu preferido, pela sua leveza; o retrato de um pequeno paese italiano, onde os humores, os sentimentos e o próprio modo de vida mudam conforme a estação é uma amostra perfeita do que é a Humanidade; faz com que entendamos como somos parte do mundo e, embora o homem tenha fundado sua subsistência no artifício das cidades e das máquinas, se integra à natureza em espírito. É um filme, por isso, instigante e cheio de humanidade; o gênio de Fellini em encontrar a beleza e a extravagância no cotidiano faz a gente olhar com mais atenção e enxergar de verdade a vida ao nosso redor.



9. Doutor Jivago. Um épico em todas as suas dimensões, mostra ao mesmo tempo a grandeza e a iniquidade da vida; a história do médico que encontra a ruína e a felicidade, ainda que breve, as trapaças do destino, a crueza da realidade, a beleza do momento; há pouca coisa que faz o fascínio, o drama e a complexidade da vida que não esteja dentro desse filme. Julie Christie, como está aqui, é a mulher mais bela que já vi no cinema; nem mesmo a interpretação lacrimosa de Omar Sharif tira a força da história de Pasternak. E são inesquecíveis os cenários grandiosos, como a cabana mergulhada na neve onde se realiza o amor de Jivago e Lara, da qual eu não consigo me lembrar sem ouvir o lírico som da balalaica.



10. 2001, uma Odisseia no Espaço. Stanley Kubrick só fez grandes filmes; todos eles poderiam estar numa lista dos melhores de todos os tempos, assim como todos os romances de Gabriel Garcia Marquez estariam numa lista dos melhores livros. A visão de passado e futuro como uma coisa só, numa espécie de cosmogonia, porém, faz com que este seja seu trabalho mais ambicioso. Recentemente, tenho pensando também em como Kubrick foi profético. As panes de computador, que hoje fazem aviões caírem, e carros acelerarem em vez de brecar, tornam bem realista o HAL - o computador de bordo que toma conta da nave e passa a matar seus tripulantes. Um filme ainda misterioso, intrigante, com um ritmo que nos obriga a entrar em outra dimensão, e que esteticamente não envelheceu, mesmo com a visão bem mais precisa que temos hoje do espaço; esta é aquela obra de arte que qualquer criador gostaria de ter feito, ainda que forneça mais perguntas que respostas. Porém... Não será assim a vida?







segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Realismo feito de sangue


The Strain (ed. William Morrow, U$26.99, 401 pág.)

É difícil explicar de onde vem a fascinação humana pelo sangue – e tampouco pelo medo, que transformou os filmes e livros de terror num gênero tão popular quanto as histórias de amor. É certo que esse magnetismo macabro começa na adolescência, fase em que o ser humano começa a entrar em contato com a excitação do perigo de forma imaginária – para muita gente, ela não acaba nem na vida adulta. Também é certo que não há nenhuma versão mais rica e aparentemente inesgotável no filão das histórias de terror quanto o vampirismo, fórmula que se renova com a mesma facilidade com que a clássica figura do Conde Drácula se levanta do caixão, como se nascesse de novo a cada noite.


Essa atração pelo sangue é que move Guilllermo del Toro, um aficcionado das histórias de terror que conseguiu transformar sua obsessão adolescente num negócio lucrativo como diretor de cinema e, agora, na ficção literária, também com todos os ingredientes para um futuro filme. Nascido em 1964, em Guadalajara, no México, Del Toro acaba de escrever em parceria com o escritor e roteirista de cinema americano Chuck Hogan o primeiro volume do que se anuncia como uma trilogia: The Strain (“Tensão”), que está sendo publicado nos Estados Unidos pela editora William Morrow (U$26.99, 401 pág).

Del Toro pode ser considerado um mestre do terror contemporâneo, com a ajuda que os recursos hiper-realistas da era digital podem dar aos seus filmes sedentos de sangue. Em The Strain, ele ressuscita o velho vampirismo com um enredo que tem tudo de roteiro cinematográfico e adicionado ao hiper-realismo. Esse efeito é obtido com uma riqueza de detalhes e um enquadramento tão perfeito na vida contemporânea que a multiplicação de vampiros entra quase como uma consequência natural da vida de hoje.

A partir da descoberta de que todos os passageiros de um avião pousado no aeroporto JFK, em Nova York, estão mortos – mas uns tão mortos quanto os outros -, o leitor pouco a pouco é levado a envolver-se com a história de uma ameaça em escala mundial, graças à transmissão de um virus vampirizante, cuja origem está na lenda de um misterioso conde, alto, bonzinho, meio esquerdo e misteriosamente desaparecido chamado Sardu.

Hoje a ameaça dos virus é uma grande paranóia mundial - vide a disseminação do receio da gripe suína, por acaso, vinda também do México, onde a tendência ao exagero e à mistificação parecem ser parte da índole nativa. Del Toro sabe disso – e trata de misturar esse medo contemporâneo à mais clássica e proverbial das paúras, nascida desde o tempo em que os pobres aldeões da Romênia olhavam para os sombrios castelos medievais e diziam com seus botões que algo de bom não podia sair daquelas silhuetas sinistras.

Del Toro não é um versátil especialista novato no mundo do terror. Começou sua carreira nos anos 1980 com uma empresa batizada de Necrofia, onde prestava serviços de maquiagem para filmes do gênero - trabalhou, por exemplo, para Dick Smith, de O Exorcista. Sua obstinação no tema o levou a dirigir o primeiro filme em 1993. Cronos é a história de um antiquário que adquire a eterna juventude graças a um achado entre os objetos de sua loja. O preço secreto disso, porém, é que ele se torna um vampiro.

Com Cronos, roteiro original assinado por ele mesmo, Del Toro obteve sucesso imediato. Não apenas ganhou os principais prêmios do cinema mexicano como levou s prêmios de crítica e público em Cannes e recebeu uma indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Catapultado pela fama em uma indústria sedenta por talentos para o entretenimento, estreou em Hollywood em 1997 com Mimic (Mutação, em português), no qual colocou Mira Sorvino como protagonista no combate de uma criatura geneticamente modificada para matar baratas e que acaba virando uma ameaça para toda Nova York.

Del Toro prosseguiu na seara com A Espinha do Diabo (2001), produção espanhola de Pedro Almodóvar , a sequência de Blade (2002), com Wesley Snipes incorporando o velho caçador de vampiros, a adaptação para o cinema da graphic novel Hellboy e o Labirinto do Fauno, sucesso de público e crítica, com três indicações ao Oscar, ambientado na Espanha franquista. Agora, prepara a filmagem de O Hobbit, romance que precedeu O Senhor dos Anéis na obra de Tolkien.

Fã de Alfred Hitchcock na infância, ele cultiva como o velho mestre uma forma de aparição em todos os seus filmes: católico praticante, em algum momento, coloca neles imagens de santos de sua coleção particular. Fiel à sua obsessão, é meticuloso e não abre mão de fazer apenas o que gosta. Já possuiu uma empresa própria, a Tequila Gang, e transita bem tanto como produtor alternativo como entre os grandes estúdios de Hollywood. “Ter opções é uma das chaves para ser desobediente”, afirma.


The Strain possui, claro, aquela esperada série de chavões que fazem a delícia dos amantes do gênero – um milionário que deseja a imortalidade a qualquer preço, Manhattan como cenário inicial da ameaça mundial, aquela mulher sedutora que uma com mordida se transforma em atração letal. Como nos romances e filmes de James Bond, as histórias de vampiro são um gênero em que o leitor sempre sabe mais ou menos o que vai encontrar – o que nesse caso é sinônimo de diversão garantida.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

A razão sem razão


Por que podemos estar certos e ao mesmo tempo nos sentir tão mal

Cruz e Souza, um de nossos grandes poetas simbolistas, escreveu certa vez: “Não tenho orgulho do que penso, eu me orgulho do que sinto”.


É a frase que me vem à mente depois de assistir em DVD ao filme A Dúvida. No filme, na realidade a adaptação de uma premiada peça de teatro, a personagem de Meryl Streep, uma freira que desconfia de pendores pedófilos do padre interpretado por Philip Seymor Hoffman, alimenta-se de sua certeza e conduz um processo informal que força o suspeito à renúncia. Mesmo com todas as evidências de que estava certa, porém, a implacável madre termina sentido-se tão mal quanto se tivesse cometido um pecado capital.


Há em A Dúvida uma brilhante interpretação de um fenômeno que presenciamos e sentimos no dia a dia. Muitas vezes, podemos estar com a razão – e nem por isso nos sentimos melhor do que se não tivéssemso razão alguma. Muitas vezes, tudo o que fazemos de certo no final acaba parecendo errado pela maneira como conduzimos as coisas. Ou porque o objeto da razão – a verdade – é tão tênue que faz com que jamais possamos ter certeza absoluta de nada, e que a condenação de um ser humano é sempre injusta.

O que define o filme está no se início – a parábola segundo a qual o náufrago que nada sems aber se vai na direção correta não está sozinho. Contada por um padre no seu púlpito, ela sugere que o indivíduo em dúvida nunca está sozinho – teria Deus a seu lado. No final, proém, somos indizidos a uma outra interpretação da mesma história. O náugrafo não está sozinho na dúvida, porque não é o único. Quem não está?

A Dúvida é um belo filme, que faz pensar, sobretudo aqueles que se acham donos da razão. E que não compreendem, apesar de todos os seus bons motivos, o motivo de serem malvistos ou a sensação de que ainda assim fizeram algo de errado.

Isso acontece porque a razão em geral passa por cima dos outros. Podemos estar absolutamente certos de algo, mas para que nossos motivos prevaleçam atropelamos sentimentos alheios. A verdade às vezes é ambígua, ou não existe. Mesmo quando ela é cristalina, o exercício da razão mostra que ela no final não tem tanta importância. A razão eprde a razão quando mostra a intolerância com os outros, não vê a humanidade no erro alheio, o que tira do ser humano com razão a sua humanidade.

A razão pode ser justa, mas pode ser cruel, pode ser má. É a nossa humanidade, a sensibilidade de perceber os outros e a nós mesmos, que faz com que possamos dormir com a consciência mais tranquila. Cada um tem suas razões, mas o sentimento pe compartilhado. Para isso, temos de aceitar que o adequado para o outro nem sempre é o melhor.

Não se deve subestimar os outros; se agem de certa forma, por vezes é por uma necessidade interna, uma vontade alheia à razão, ou à nossa razão. Ao forçá-la a mudar, assumir suas tarefas ou induzi-la a agir de outra maneira, nos colocamos não contra umerro, mas contra os seus sentimentos. E isso, mais tarde, é difícil consertar.

Cruz e Souza, com a capacidade ímpar da poesia de resumir belamente sentimentos importantes, disse tudo. O que importa, aquilo de que devemos ter orgulho, não é do que pensamos, o fruto da razão, mas do que sentimos, o fruto do coração.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Vastas emoções


Doutor Jivago lembra do que são feitos os grandes romances
Revi na TV, domingo passado, o grande Doutor Jivago, clássico de Pasternak, tão belamente transposto para o cinema - a história de amor impossível protagonizada por um médico e poeta tragado pela revolução bolchevique na Rússia. Para mim, a mais bela cena do filme é a noite que ele e Lara passam em uma velha dacha, nos campos cobertos de neve da estepe russa, feita de amor pleno, sem saber que em breve serão separados para sempre.


No meio da madrugada, ele se levanta, acordado pelo uivo dos lobos; sai na noite gelada e espanta os animais, breve metáfora de alguém que decide esquecer o medo e as ameaças. A luz de uma vela tremula quando ele entra em casa e senta-se à mesma mesa onde aprendeu a escrever na infância. Atravessa a noite escrevendo poemas num país que condenou a poesia em nome de uma ideologia onde não se permite mais a individualidade. Sim, na Rússia revolucionária, a poesia era perseguida como a feitiçaria pela Inquisição.


Pela manhã, ao acordar, Lara encontra sobre a mesa aqueles papéis. Ela os lê e diz que o retrato pintado por ele é melhor do que ela; ele reafirma o que escreveu, lendo o nome de Lara, que é também o título do poema; é como ele a vê. Naquele mesmo dia eles voltarão a se separar, ameaçados pela chegada de revolucionários, e Lara levará no ventre um bebê em gestação; deixa para trás o amor de sua vida, salva por outro homem, aquele a quem mais odeia.


Eles desaparecem para sempre, mas seu amor tumultuado, entrecortado, proibido e pecador sobrevive nos poemas que, apesar da perseguição, resistem graças à paixão do povo russo pelo verso. A poesia sobrevive ao comunismo, assim como a religião. Está também na balalaica levada às costas pela moça que jamais conheceu os pais, herança que somente o tio compreende plenamente.


Isto, mais aquela música que quase leva a gente a chorar, ainda faz de doutor Jivago um grande romance em todos os sentidos; vi o filme e pensei que sempre quis escrever grandes histórias, romances que trouxessem estas vastas emoções, abarcassem a vida, atravessassem ao mesmo tempo o Tudo e o Nada. Doutor Jivago é algo assim, não uma reprodução da vida, mas o mais próximo que se pode chegar disso, e da forma mais sublime.