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sábado, 18 de agosto de 2012

Dos Passos sobrevive a tudo


John Roderigo dos Passos (1896-1970), um dos expoentes da chamada Geração Perdida da literatura americana, é um dos poucos seres humanos que foram enterrados duas vezes em vida. 

Considerado por muitos críticos de hoje o maior escritor americano de sua geração, e uma geração que tinha Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway, Dos Passos teve seus dias de estrela nos primeiros tempos de sua prolífica vida como autor. 

Comunista que vivia insolentemente no maior país capitalista do planeta, conseguia reunir em seus livros a crítica social e análise do seu tempo com uma linguagem renovadora do romance, que incluía recortes de jornais e outros elementos da vida real para compor obras de ficção que, em última análise, refletiam a realidade. 

Capa da revista Time, expoente do Partido, que o utilizava como garoto propaganda da inteligência comunista, Dos Passos caiu em desgraça duas vezes pela mesma postura política.

A primeira vez, quando brigou com o stalinismo, rompimento que se deu durante a Guerra Civil Espanhola, que ele cobriu como repórter. Lá, percebeu que o comunismo real estava longe da cartilha dos idealistas, o que incluira fazer desaparecer, entre as atrocidades da guerra, o professor espanhol Jose Robles, seu amigo pessoal. Afastado do comunismo, que em seu lugar imediatamente entronizou Ernest Hemingway como seu novo ícone, Dos Passos teve as portas fechadas na cara pelos mesmos que antes o aclamavam. Comunista sem lugar no comunismo, foi também sepultado na sequência pelo macartismo, a onda anticomunista, conservadora e liberticida que contaminou os Estados Unidos durante décadas e jogou sua obra e história mais fundo ainda no ostracismo.


Rejeitado por gregos e troianos, como acontece com a grande literatura, ainda mais repleta de significado e importância para seu tempo, Dos Passos e sua obra não desapareceram. Ao contrário, seus livros se tornaram um marco para a literatura moderna. Com auxílio da forma, uma colagem de ficção com a história real, Dos Passos quebra estruturas narrativas convencionais e utiliza a linguagem coloquial para fazer da obra um caos mutante, vibrante e cheio de vida para refletir o caráter do tempo que retrata. Com isso, traz viva a a história americana e do próprio capitalismo.

Numa era em que caem as velhas barreiras, especialmente as do preconceito, seja de direita como de esquerda, a obra de Dos Passos continua importante e atual. As mesmas razões que o levaram a ser jogado para baixo do tapete pelos varredores dos bons ideais agora lhe dão mais brilho no panteão dos grandes autores. A história da imigração na América, o estudo do capitalismo americano por meio de seus personagens anônimos, que ganham vida no romance, constroem algumas das mais extraordinárias páginas da literatura de todos os tempos. Dos Passos, afinal,escapa às definições políticas.

Eu sempre fui um admirador de Dos Passos, pelo seu trabalho como jornalista e escritor, em que uma atividade complementa a outra. Sobretudo, admirei sua postura. Diferente de Hemingway, que com seu peculiar cinismo lhe sugerira que se calasse diante da morte de Robles, Dos Passos sustentou o essencial: preferiu não ceder aos apelos que lhe contrariavam os princípios para manter a fama e conquistar facilidades. Não deixou de ser fiel aos seus propósitos.

Dos Passos ficou de pé, com suas ideias e seus ideais, assim como sua obra. É um prazer agora, como editor, ter a possibilidade de publicar seus livros no Brasil. Os primeiros são Paralelo 42, 1919 e O Grande Capital, títulos esgotados no país há trinta anos. Eles formam a Trilogia USA, considerada uma das obras mais importantes já escritas sobre o fenômeno americano.

Breve deve chegar, também com o selo Benvirá, da Editora Saraiva, Manhattan Transfer, talvez a obra mais famosa de Dos Passos, inédita no Brasil, graças ao esforço de tradução de Ana Luisa Martins, em quase dois anos de trabalho. 

Para vertê-lo ao português, Ana Luisa teve sobretudo que recriar os diálogos dos personagens que reproduzem, em inglês, o sotaque dos migrantes em Nova York, elemento significativo para o propósito da obra, retrato de um país e um mundo híbrido, ou em mutação.

E mais, vamos relançar ano que vem O Brasil em Movimento, reportagem escrita por Dos Passos após uma viagem ao país, em 1963. Nesse caso, uma revisão completa do texto, seguida de anotações de historiadores para complementar os esclarecer informações colhidas no calor do momento fazem desta uma edição também histórica.

Dos passos sobreviveu não apenas ao isolamento político, como sobreviveu á própria morte. Nenhum grande escritor se acaba. Cada vez que um livro é publicado, e encontra um leitor, o autor volta a conversar com alguém, influi e participa no mundo dos vivos, sua marca para sempre. 

Ter Dos Passos no Brasil é uma satisfação ainda maior por isso: manter à luz um grande romancista que nunca se vendeu em nome dos bons princípios e que conta a História para mostrar como se faz dela algo melhor.