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quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Metal queimado e o coração

A mulher, morena, cabelos soltos, camiseta regata, shortinho e chinelos de dedo, segura a carta entre as mãos – isso mesmo, uma anacrônica carta, papel com uma mensagem riscada de Bic, que sai de seus dedos guardando ainda a memória da dobradura no envelope. “Não vou mais fumar, porque desse jeito não terei saúde pra matar mais gente”, ela lê, em voz alta, para duas outras mulheres que a rodeiam na calçada. “Vocês viram aqui o que ele escreveu? Não terei saúde pra matar mais gente.”

É meio da tarde, tempo abafado, e passo meio com pressa, meio com vontade de parar e perguntar. Quem é o presidiário: será um filho, um irmão, um marido, ou namorado? O que terá feito para estar preso, ou melhor, quantos crimes cometeu, e quantos mais terá cometido depois, na prisão? As palavras saem doces na voz feminina, mas eu as escuto dentro da cela fétida, de paredes descascadas, perto da latrina barrenta. “Matar mais gente. Matar mais gente”, reverberam as palavras. E o pensamento: até um assassino tem para quem escrever, até um assassino encontra compreensão, um assassino tem amor.


Faz alguns meses que estou na Barra Funda, como uma espécie de rito de passagem entre o passado e o futuro, o desconhecido já visto e o desconhecido a ver. Caminho pelas calçadas onde se espalham mesas de bar; numa esquina a caminho de casa, um grupo de desocupados todos os dias joga baralho; dali controlam a calçada, o jogo e até o trânsito: gritam com quem vem na contramão, dão informação, e me lembram os personagens daquele filme espanhol com Barden, Segunda-feira ao Sol, sobre a vida dos desempregados.

Barra Funda: galpões antigos, com portas de metal, onde ficam restaurantes por quilo, oficinas mecânicas, pequenos negócios. À noite algumas dessas portas se abrem, são casas noturnas que funcionam tarde da noite, onde vão alguns clubbers e muitos bêbados da madrugada. As ruas mesmo durante o dia têm algo de abandono: as lojas de tatuagem, os entregadores delivery de água, as mulheres suburbanas, opulentas e suadas, na porta dos cabeleireiros.

Aqui já houve mais indústria, os migrantes do passado, que deixaram os galpões fantasmagóricos e o costume de sentar fora. Nas ruas ficaram os estudantes da Faculdade Oswaldo Cruz, a dona do bar de comida mexicana com um cardápio de neon, os tatuadores e as tribos da contracultura, que gostam do clima do lugar, o que de mais perto São Paulo poderia ter do Soho novaiorquino, que nunca terá. E, sobretudo, os homens de baixo clero, os barbados que perambulam sem rumo, roupas puídas, catando lixo; o negro que ao me ver muda súbito de rumo, vem na minha direção,  penso que vai pedir dinheiro, ou é um assalto, e não: "Na rua de cima você vai achar o templo", ele diz, "vá lá, Jesus salva, o Senhor te ajudará."

As ruas estão sempre cobertas de lixo; na redondeza da escola pública, traficantes circulam sem serem incomodados. É um gueto, quase um campo de concentração: o trem espreme a Barra Funda entre a linha férrea e o Minhocão. Bate em meus ouvidos, repetitivo e rude; os guinchos durante a noite, rilhando na alma, os apitos inopinados, longos e escandalosos silvos e o cheiro de metal queimado, que impregna a roupa, as narinas, mas não parece vir de fora, e sim de dentro, do coração.

A quadra de futebol onde levo meu filho; o apartamento pequeno, onde se amontoam móveis embrulhados em papel bolha, à espera do dia da mudança: purgatório que não devia ter acontecido, abismo entre o passado e o futuro, parênteses no tempo, parado mais do que deveria.

Na rua, todas as noites a moça ruiva leva o cachorro para passear; tem cabelo curto de rapaz, que ressalta o queixo quadrado, o rosto bem feito, o corpo torneado sob a roupa preta de ginástica; leva sempre o cachorrinho peludo na coleira; ela me cumprimenta, quando me vê passar. Sigo em frente, sem pensar; sou um estranho, ou sempre fui; estou aqui de passagem, como sempre tenho estado; isso, como tudo, vai ficar para trás, mais uma possibilidade que não aconteceu: a minha será uma Barra Funda sem lembranças, apagadas junto com tudo aquilo que não posso mais.

Aqui todos são solteiros ou têm crianças pequenas, fazem esteira no salão de ginástica, esperam também o fim do intervalo, ou o momento de pegar o trem e ir para longe dali. Imagino que muitos ficarão à espera por toda a vida, olhando tudo passar: deserto dos tártaros urbano, que me faz olhar o relógio, contar as horas, minutos, os cabelos enbranquecendo no espelho, como se a vida se esgotasse a cada instante.

Subo pela rua, e a ideia de ir embora me faz sorrir levemente. O sol bate forte na cara; enfim faz verão sem chuva, e eu me encho de energia; na Barra Funda fiquei seis quilos mais leve, e caminho na calçada na ponta dos pés. Quando baixo os olhos do céu, vejo uma menina, que deve ter dez, onze anos, não mais; encontro, no ar, seus olhos de mel. Tem cabelos longos, pele mourisca, senta numa mesa na calçada em frente de casa com a mãe e os irmãos; experimenta aquele alumbramento de quem viu um homem em estado de graça; os olhos dela me acompanham quando eu passo, e eu sei que ela se lembrará de mim para sempre, o moço da rua, que ela viu sorrir sozinho, distante e distraído, e isso, um instante, mexeu alguma coisa dentro dela.

Eu ainda posso fazer isso, penso: posso causar isso em alguém e posso fazer muitas outras coisas. Sobretudo, posso novamente ser eu, o mágico que reconstrói a vida, que inventa tudo de novo, que faz palpitar o coração; eu sigo sendo eu, a recomeçar.

sábado, 26 de dezembro de 2009

A história por trás da história


No final do Século 19, a Europa vinha de um período de guerras e grande pobreza, especialmente a Itália. Antes um país dividido, recém-reunido em uma campanha militar liderada pelo rei da Lombardia e do Piemonte, Vitor Emanuel II, havia pouco emprego, sobretudo no campo. No final dos anos 1800, começou a migração de mutios italianos para os países do Novo Mundo, que ofereciam oportunidades distantes, como os Estados Unidos e o Brasil.


Entre 1880 e 1930, vieram para o Brasil cerca de 1,4 milhão de italianos, de acordo com um levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE. Trazidos por navios a vapor, desembarcaram principalmente no Rio Grande do Sul, onde foram trabalhar como artesãos ou camponeses na serra gaúcha, e em São Paulo. No interior paulista, que precisava de mão de obra com o fim do trabalho escravo, eles eram contratados como colonos, trabalhadores assalariados.


Além de seus rendimentos, aos colonos era permitido também plantar para seu próprio sustento entre os pés de café nas terras do patrão. Com isso, os imigrantes italianos, bem como os portugueses e espanhóis, tinham uma renda adicional. Eles moravam em “colônias”, conjuntos de casas construídas especialmente para abrigá-los, e que acabavam por aproximar as famílias, incluindo pelos laços de casamento.

A união das famílias de mesma nacionalidade permitiu que os imigrantes juntassem recursos para mais tarde comprar suas próprias fazendas em sistema de consórcio e depois novas propriedades para cada uma das famílias. Muitos deles enriqueceram no início do Século 20 com as plantações de café, então o principal produto de exportação do Brasil, enviado ao exterior por meio do porto de Santos.

Nessa época, a cidade de São Paulo passou a brilhar com os casarões dos fazendeiros de café, que tornaram famosa a Avenida Paulista, onde se construíam casas com telhas importadas da França, mármore de Carrara e madeira de lei brasileira. Os primeiros italianos a se aventurar na indústria fizeram fortuna, como o Conde Francisco Matarazzo (1854-1937), que a partir da venda de barris de banha de porco construiu o maior império industrial do país (as Indústrias Reunidas Matarazzo). O nome Matarazzo, desde então, se tornou um símbolo de riqueza, especialmente em São Paulo.

No interior de São Paulo, os colonos italianos não encontraram uma vida fácil. Seu trabalho era desmatar o sertão, para permitir o plantio do café, uma cultura favorecida pelo clima e a célebre “terra roxa”. Esse nome é também uma influência italiana, pois terra roxa não existe. Trata-se de uma terra muito rica em nutrientes, de cor vermelha (ou “rossa”, em italiano).

No sertão paulista, além das dificuldades naturais do trabalho e de um país diverso de sua terra natal, os italianos enfrentavam o preconceito dos brasileiros, que os consideravam uma gente bronca, mal educada e temperamental. Em sua maior parte contadinos, como eram chamados na Itália os trabalhadores da terra, eles tinham pouca instrução, mas muita vontade de trabalho. E, aos poucos, começaram a se impôr e influenciar também a cultura do país com sua comida, sua língua e seus costumes.

Com a crise mundial de 1929, quando as exportações de café praticamente foram paralisadas, muitos italianos que possuíam fazendas ficaram com pesadas dívidas e voltaram à pobreza. Muitos deles migraram para o norte do Paraná, onde ainda havia terras virgens e baratas a serem exploradas. Outros deixaram o campo e migraram para São Paulo, instalando-se em bairros como o Brás, Móoca e Bela Vista, que tiveram uma forte influência da cultura italiana.


Eram os bairros das cantinas e das cadeiras na calçada, onde se jogava baralho e bingo aos domingos, e de festas como a da Nossa Senhora Achiropita, promovida pela igreja do mesmo nome, que existe ainda na rua Treze de Maio, na capital paulista, realizada uma vez por ano.
Hoje, a influência da migração italiana ainda está muito presente na vida cultural e econômica do Brasil. O consulado italiano em São Paulo estima que existam hoje cerca de 25 milhões de descendentes de italianos no Brasil, o que seria cerca de um sexto da nossa população.


Os italianos participaram ativamente do primeiro grande ciclo de crescimento do país, agrícola e exportador, na era do café. Fizeram parte também da primeira fase de industrialização do Brasil, no papel dos primeiros grandes empreendedores de origem popular, como o Conde Matarazzo, ou como formadores do operariado brasileiro.

Deixaram sua marca no urbanismo, não apenas nos casarões neo-clássicos da Avenida Paulista como nos bairros operários. Sua identidade ficou na religião, de predominância católica, assim como entre descendentes de portugueses e espanhóis, e na culinária. A influência italiana é forte sobretudo no gosto do brasileiro pelas massas.


Em São Paulo, a pizza foi incorporada como um prato “local”. No Rio Grande do Sul, a influência italiana na culinária pode ser vista também nos cafés coloniais, onde se pode desfrutar de uma mesa farta; nas galeterias, onde o frango é servido com polenta e uma massa fina, conhecida como “cabelo de anjo”; e no vinho, que por influência italiana, e com o auxílio de um clima mais favorável, passou a ser produzido na serra gaúcha.


Essa influência se estende até ao futebol, onde ainda há clubes cuja tradição se liga ao passado do imigrante italiano, como o Palmeiras, de São Paulo, antigo “Palestra Italia”, que mudou de nome por causa de Segunda Guerra Mundial, quando os italianos passaram a ser hostilizados por estarem ao lado dos alemães no conflito. E o Cruzeiro, em Belo Horizonte, cuja fundação também se liga à tradição da colônia italiana.


É possível dizer que, assim com a mão de obra escrava fez do Brasil um país racialmente miscinegado, com grande presença dos descendentes do negro e sob forte influência das culturas africanas, o país seria outro sem os imigrantes italianos. No Brasil, a Itália hoje se encontra em toda parte, o que ajuda a fazer do nosso país um pedaço do mundo onde a diversidade melhor encontrou uma forma de convivência pacífica: não uma fonte de discórdia, mas de enriquecimento da vida.