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sexta-feira, 11 de abril de 2014

O arquiteto da vida



Meu tio, Ary Albano, era uma das poucas pessoas no mundo que eu já invejei. Talvez a única.

Fácil de explicar. Verdadeiro gentleman, era elegante, educado, observador e cheio de opiniões. Arquiteto, tudo nele trazia certo senso estético, inclusive o comportamento. A própria vida, para ele, era estética. Sempre viveu como quis. E ele vivia bem.

Passou anos construindo a sua casa, de vidro e concreto aparente, encostada na mata atlântica, na beira da reserva da Cantareira, em São Paulo. Lá viveu o resto de sua longa vida, vizinho dos macacos que ele nunca cansou de admirar. A casa era laboriosa, tinha muitos caminhos, parecia pouco prática. Mas ele seguia suas ideias. Passava horas explicando cada pequeno detalhe daquela construção. Não falava da casa, nem de si mesmo. Falava do que acreditava, sempre com a paixão mais juvenil.

Segundo. Meu tio soube trabalhar e também ter tempo para a vida. Pôde desfrutá-la, sem pressa. E ao lado da mulher que foi da vida inteira, ou da vida desde que ele a conheceu. Com minha tia Anna Carmelita, ou Lenita, jamais deixou rebarba de dúvida de ser um homem feliz. Estavam sempre juntos. O tempo todo, em tudo. É verdade que minha tia é mulher de rara sabedoria, que sabia levar tudo com certo bom humor, inclusive algumas manias do marido. Mas até nisso tio Ary merecia inveja: encontrou a mulher perfeita. Para ele, creio, a única.

Meu tio não era tanto arquiteto de projetos particulares. Voltava-se para a arquitetura pública. Formado numa das primeiras turmas da FAU, a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo, quando os estudantes eram altamente politizados, dedicou grande parte de sua vida a defender suas ideias de urbanismo, dentro e fora da administração municipal. Foi um dos primeiros a trabalhar na secretaria do meio ambiente de São Paulo, quando ela ainda se chamava "secretaria do verde". E um dos fundadores do Defenda São Paulo, importante marco em defesa de um urbanismo mais humano e racional na cidade. Complicou a vida dos empreiteiros na construção do Rodoanel, com sua defesa dos mananciais, hoje um tema crucial diante da seca da qual a cidade está ameaçada. Lutou contra os loteamentos ilegais. Em qualquer discussão sobre preservação ambiental, uma coisa era certa: ele estava lá.

Construtivista, era um purista em todos os sentidos, incluindo os materiais. Em Ilhabela, onde fez seu retiro de fins de semana, construiu uma casa feita inteiramente de tijolos baianos, o mais menosprezado dos materiais de construção. E deixou-os aparentes. Queria provar que era possível fazer uma casa sofisticada com o material mais popular. Toda suspensa, incluindo a piscina, a casa de tio Ary em Ilhabela parecia um grande Lego enfiado no meio de mansões num dos mais chiques condomínios da ilha. Quando dirigi, entre outras publicações, uma revista chamada Reformar & Construir, mandei colocá-la na capa. Também houve gente que achou que eu estava doido. Mas eu, como ele, sempre achei que os intelectuais são feitos não apenas para derrubar preconceitos com suas ideias, mas com a prática. (Minha tia, a vida inteira, sempre pediu que ele rebocasse a casa. Tio Ary fez algumas concessões, nas áreas internas. Mas lá está ainda sua casa - do jeito que ele a imaginou).

Quando lhe perguntei por que a casa era suspensa, ele me contou uma história. Certa vez, foi procurado por uma empresa que se instalava na Amazônia. Pediam que ele lhes resolvesse um problema. As casas da colônia recém construída eram tão quentes que os operários não suportavam morar nelas. Não sabiam o motivo daquilo, nem o que fazer.

Antes de qualquer coisa, meu tio foi pesquisar como moravam os nativos amazônicos. Ao contrário do que ele (e eu) imaginava, as palafitas amazônicas não eram levantadas apenas nas zonas de alagamento. Ele entendeu, então, que os povos do Norte levantavam as casas em palafitas não por causa das enchentes dos rios, e sim para criar um espaço entre a terra e a casa. No trópico, o calor esquenta a terra durante o dia. À noite, o calor irradia do chão, transformando a casa num forno. Nas palafitas, o vento que passa sob o assoalho serve para refrigeração, impedindo a transmissão do calor do solo. E mantém o piso longe da umidade. Resultado, meu tio mandou levantar do chão todas as construções da colônia. E os operários enfim puderam voltar para casa.

A casa suspensa de Ilhabela era apenas um dos muitos sinais de que meu tio não só aprendia, como vivia pelo que aprendia. Tinha muitas outras história para contar, o que fazia com o mesmo entusiasmo com que combatia os descalabros de governos e empresas privadas no trato urbano.

Meu tio Ary teve seu primeiro AVC num arborizado parque da zona norte de São Paulo, enquanto caminhava - um dia comum de sua vida tão calma e tranquila que não se imaginava que algo assim pudesse lhe acontecer. O acidente vascular lhe tirou muito da antiga vivacidade. Outras complicações o deixaram por três meses hospitalizado, sem poder desfrutar do nascimento de seus netos gêmeos, filhos de meu primo Mauro,e afinal o tiraram do nosso convívio para sempre, no final de março passado, aos 85 anos. Soube da notícia na minha casa, que beira a mata, onde há macacos, todo tipo de pássaros e é feita completamente de madeira e vidro, bem distante da grande metrópole. Meu tio não teve oportunidade de conhecê-la, nem eu tempo hábil de viajar para lhe dar um último adeus. Mas acho que ele ficaria satisfeito de saber o quanto aprendi com ele - e como seus ensinamentos são imortais.