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terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Um homem sem medo do seu próprio mito



Em dezembro de 1990, eu dirigia a revista 2000, publicação de domingo do jornal O Estado de S. Paulo, que teria vida breve, mas palpitante. A última edição era uma retrospectiva dos acontecimentos daquele ano, recheado de momentos marcantes: a posse do primeiro presidente eleito do Brasil em 30 anos, Fernando Collor, a queda do Muro de Berlim, o lançamento ao espaço do telescópio Hubble, as mortes de Cazuza e Greta Garbo e o bicampeonato de Ayrton Senna na Fórmula 1. Quando entreguei a revista ao responsável por publicações especiais do Estadão, João Vítor Strauss, no entanto, ele abriu os olhos quando leu o que eu havia escrito sobre outra notícia que a muitos pareceu menos relevante: a libertação do líder sul-africano Nelson Mandela. "Isso é uma das melhores coisas que eu já li na vida", disse ele.

Eram apenas cinco linhas, uma legenda debaixo da foto de Mandela, com uma gravata com as cores da bandeira sul-africana, punho cerrado para o alto e um sorriso no rosto:

"Em 11 de fevereiro, um homem de cabelos brancos saiu da prisão de Victor Verster, na África do Sul. Pela primeira vez em 27 anos, um mitológico líder da luta contra o apartheid, Nelson Mandela, pôde ser visto em público - e ajudar a fazer História em liberdade."

Faço essa referência não apenas pelo prazer de lembrar João Vítor, como pelo que essa recordação explica sobre a extraordinária trajetória de Mandela. Condenado à prisão perpétua por sabotagem e incitamento à greve, Mandela se tornara, na prisão, um símbolo da luta contra o apartheid, a segregação racial dos negros na África do Sul, e mais - um símbolo da luta contra o racismo em todo o planeta. O mito cresceu ao longo dos anos, justamente pelo fato de que, impossibilitado de sair sequer para o funeral da mãe e do filho, e isolado no cárcere, sem que pudesse jamais ser visto, Mandela se tornara um personagem legendário.

Libertado na onda de protestos mundiais que se juntaram à queda do Muro de Berlim, Mandela poderia ter se curvado ao peso da própria lenda. Na cadeia, ele se tornara mais do que pode aspirar um ser humano. Como lenda viva, ele teria de enfrentar, fora da prisão, a realidade de se tornar novamente um homem. Poderia desapontar os milhões de pessoas que olhavam para ele, dentro e fora de seu país. Como pode estar um homem à altura do seu próprio mito?

Muita gente feneceu por muito menos. Chico Buarque, por exemplo, é um dos que declaradamente receiam ser comparados a uma imagem construída no passado. Preferiu renunciar a fazer música para não ser colocado lado a lado com ele mesmo no seu auge. Chico representa uma fase de belas canções da música popular brasileira, com uma leve passagem pela musica de protesto durante a ditadura militar, e acha melhor ser Francisco Buarque de Hollanda do que tentar repetir o mito. Imagine-se então na pele de Mandela, o homem sob a sombra da própria lenda, e mais - o homem diante das expectativas de um país inteiro, e depois do mundo inteiro, à espera de alguém capaz não apenas de simbolizar uma luta, como ser capaz de encarná-la, torná-la real, lutá-la e vencê-la.

Mandela não teve medo. Saiu da prisão como um gigante, e viveu os 24 anos restantes como um gigante de carne e osso ainda maior. Negociou as condições para uma nova Constituição, elegeu-se o primeiro presidente negro da África do Sul e, mesmo contras as dificuldades econômicas e sociais, sem falar na intolerância, que não desapareceu do dia para a noite, transformou a África do Sul num exemplo de igualdade, liberdade e civilidade. Um país ainda cheio de problemas, mas que plantou a base essencial para o futuro.

Transformado em estadista, Mandela foi também uma espécie de pajé, um velho sábio que fez jus ao mito graças a uma qualidade rara e contraditória em mitos: a humildade. Da mesma forma que arrumava sua cama todos os dias no palácio presidencial, despiu-se de ressentimentos, que poderia ter tido, por força da segregação, dos anos da prisão, da injustiça. Compreendeu que somente lançaria a paz em seu país se fosse o primeiro a baixar as armas. Com humildade, base da sabedoria, Mandela tornou-se superior. Algozes e vítimas de ambos os lados, negros e brancos, o seguiram pela força do exemplo. Uma boa história de Mandela está contada no filme Invictus - um exemplo esportivo de como ele conduzia um país beligerante à pacificação.

A intolerância, seja racial, econômica ou religiosa, é ainda a maior ameaça à civilização no Século XXI. Está por trás das guerras contemporâneas e provavelmente das que ainda virão. Mandela, morto semana passada, aos 95 anos, deixa dois grandes exemplos. O primeiro, que também é o de Gandhi, é o de que a paz prevalece sobre qualquer violência e que a tolerância extingue o rancor. O segundo é de que a igualdade, a democracia e a liberdade são e serão sempre princípios inerentes ao homem, e que líderes servem apenas para lembrar que os valores fundamentais da Humanidade são defendidos não nos grandes momentos da História, ou por mitos sobre-humanos, mas no dia a dia, pelo cidadão comum.