sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Nós e nossas obsessões


Olá Roberta, tudo bem?

Desculpe invadir o seu tempo, não sei nada da sua vida, nem como você apareceu aqui na timeline, deve ser coisa dos algoritmos. 

Você pode perfeitamente me ignorar, ou me bloquear se quiser, mas ainda assim eu vou escrever. É bom escrever, mesmo com a possibilidade de que você não leia, de que ninguém leia, ou de que alguns leiam, mas não compreendam. 

Acabei de ver The Pillow Book e queria te agradecer a involuntária indicação. E fazer alguns comentários, de qualquer maneira.

É preciso certo refinamento para apreciar desse filme, certamente: não é só uma só uma questão de gosto, ou de estética, como também de certos sentimentos e preocupações, que a meu ver pouca gente tem. 

Não é todo mundo que tem o prazer de ver a vida como ritual (algo que japoneses e chineses fazem tão bem). Para esses, certamente o filme  ajuda a gente a pensar e aceitar como a vida é feita de nossas obsessões, que influenciam tudo: o que fazemos, como amamos, enfim, como vivemos. E a vida, assim, certamente, é muito mais rica.

Para mim, que vivo de escrever, há esse interesse adicional, de quem procura dar a tudo algum significado. Somos todos tela em branco e nós mesmos vamos escrevendo o que nos interessa, beneficiários e ao mesmo tempo vítimas de nossas mais particulares obsessões.

A mulher (que linda mulher), o editor (também um obsessivo), o namorado (ah, como é possível sofrer por uma mulher). A atmosfera do filme, como naquela canção em francês (que perturbadora cena de amor).

Ficam as perguntas, que eu sempre me fiz. Será a infância dela, a relação com o pai, que a fez assim? Ou as obsessões vêm da natureza, nascemos dessa forma?

O que fazer com isso: tentar superar ou vencer as obsessões, ou deixar que elas nos levem a um mundo às vezes misterioso?

Para nós, que escrevemos, não importa aonde, sobre o que, ou em cima do quê, escrever se confunde com a vida. A vida acontece e todo o tempo refletimos sobre o que fazemos, escrevendo.

E nada mais bonito, especialmente no amor, que deixar isso marcado no próprio corpo, mesmo com a leveza das palavras que depois escorrem com a água do banho. Assim a matéria, de existência tão banal e efêmera, fica ainda mais bela, e chega a um estado superior.

Só quem transforma a vida em ritual, em símbolo, conhece a si mesmo melhor, e leva uma vida mais profunda e com significado. Temos uma vida só, não é? E são as nossas obsessões, algumas inobserváveis à flor da pele, que tornam essa passagem, para muitos tão sem sentido, em algo que realmente vale a pena.

Thales

PS. Queria te contar, Roberta, que já escrevi nas costas de uma mulher. Saiu este poema, e gostei dele tanto que depois quis copiar:

Quero escrever um poema

Não em uma folha qualquer

Mas na tua pele morena

Poema em forma de mulher


Quero gravar no teu rosto

A certeza de um sorriso

Que espanta todo o desgosto

A luz de que eu tanto preciso


Nos teus seios atrevidos

Desenharei os desejos

Nunca mais reprimidos

Libertados por muitos beijos


Nas tuas pernas indecorosas

Estendidas no nosso leito

Desenharei muitas rosas

O caminho por onde me deito


Nos teus pés retesados

Ao se torcer de prazer

Deixarei registrados

Os extremos que podemos ser


No teu dorso de bailarina

Pousado contra o meu peito

Escreverei a uma menina

Que o torto pode ser o direito


No teu ventre liso e fecundo

Farei versos do mais puro amor

Onde eu deixo o meu mundo

E as sementes do meu ardor


Quero escrever-te em poema

Não para fazer mais um livro

Será, meu amor, um sistema

Capaz de manter-me mais vivo


Gosto, Roberta,  do cinema japonês, como de outras coisas do Japão. Especialmente o Kurosawa. Quero um dia aprender o shodo, que é essa escrita artesanal. E quem sabe escrever na pessoa certa. Porque só tem sentido escrever na carne de alguém que não escorra da vida com a água do banho.


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