Eu já acreditei que poderíamos melhorar o Brasil, que com democracia e liberdade teríamos mais igualdade e este país se tornaria de primeiro mundo. Também acreditei em sonhos de amor, com aquela energia transformadora que se confunde com a energia da juventude.
domingo, 29 de janeiro de 2023
O destino dos nossos sonhos
Eu já acreditei que poderíamos melhorar o Brasil, que com democracia e liberdade teríamos mais igualdade e este país se tornaria de primeiro mundo. Também acreditei em sonhos de amor, com aquela energia transformadora que se confunde com a energia da juventude.
terça-feira, 27 de dezembro de 2022
Aquela hora
Aquela era a hora de você me dizer eu te amo
aquela era a hora de dizer quero ficar com você
naquela hora
eu teria feito qualquer coisa para ficar do seu lado
naquela hora eu te amaria para sempre
Naquela hora você decidiu ir embora
naquela hora você mostrou que nada era real
aquela hora
que eu ainda sinto agora
fez nossa vida virar do bem para o mal
Naquela hora eu ainda te amava
e depois sofri tanto que já nem sei
depois daquela hora nunca mais eu fiz planos
nunca mais eu sonhei
amaldiçoei meus grandes enganos
naquela hora tirei minha coroa de rei
E se hoje não vejo mais o que havia de belo
e encarar a verdade é como morrer
desejando ter sido tudo só um pesadelo
que apenas fosse um pesadelo que eu pudesse esquecer
Thales Guaracy,
siga @livroespelho
sábado, 10 de dezembro de 2022
Você conhece um psicopata?
Você conhece um psicopata? Com certeza, só que provavelmente não sabe.
Por recomendação de uma amiga psicóloga, vejo os vídeos esclarecedores sobre psicopatas, da Dra Ana Beatriz Barbosa, psiquiatra, autora de Mentes perigosas: o psicopata mora ao lado.
Imaginamos um psicopata como o serial killer dos filmes, um criminoso frio, sanguinário e serial. Bem, ele existe, mas são os casos mais extremos. O psicopata, porém, não precisa matar ninguém para ser psicopata. Ele pode ser apenas frio e relevar o sentimento alheio, fingindo afeto, por um interesse próprio. Pode não cometer nenhum crime, mas estraga a vida de muita gente. E pode ser uma mulher.
O “psicopata afetivo”, como Ana Beatriz chama essa espécie mais genérica, representa cerca de 4% da população. “Estatisticamente, numa família, ou no trabalho, sempre tem alguém assim”, diz ela.
O psicopata não tem empatia com o outro. Tem lógica, mas não tem afeto. Não sente culpa, ou remorso. Dentro de uma relação afetiva, é um manipulador. Finge um afeto que não existe. É um mentiroso contumaz. “Para o psicopata, mentir é um jogo, em que o outro cai, e por meio do qual ele reafirma a sua inteligência.”
Pode ser sedutor (ou sedutora). Uma pessoa “maravilhosa, o melhor sexo que existe”, diz ela. Isto porque o sexo, para o psicopata, é um instrumento de envolvimento, de sedução. “Ele pratica o sexo que você quer receber”, diz ela. “É um grande ator”, diz ela. Ou atriz.
Esse transtorno de personalidade faz com que a pessoa se torne uma máquina programada para obter, sempre, na relação com o outro, “status, poder, prazer e diversão”. A outra pessoa é um objeto, ou um veículo para o psicopata chegar a esse objetivo.
“É uma relação inglória”, afirma Ana Beatriz. A outra pessoa existe para ser usada. Psicopatas constituem família para dar satisfação à sociedade e ter algum ganho pessoal. Se a outra pessoa pode proporcionar algum tipo de status, poder ou diversão, o psicopata vai atrás daquilo que a pessoa pode lhe dar.
Quando não há mais interesse, ele desliga. Desaparece. E tenta não deixar traços. Vai mudar para outra pessoa, ser outra pessoa, então corta antigos vínculos, testemunhas do passado.
O psicopata é uma maneira de ser. Vê o mundo de outra forma. É difícil imaginar uma pessoa sem afeto, pois trata-se de uma minoria. Por onde passa, porém, deixa um rastro de destruição, financeira e nas pessoas que fez acreditarem nele.
Como identificar um psicopata? “Atitudes maldosas, praticadas de forma repetitiva, o sarcasmo, fazer o outro se sentir inferior, ou culpado, até pelas coisas que o próprio psicopata fez”, explica Ana Beatriz. “A encenação, se fazer de vítima: ele está sempre contando uma história triste, como tendo sido prejudicado por outros, para que se tenha complacência com ele.” Porque a pena é um dos sentimentos que mais fragilizam os outros. Ao causar pena, a outra pessoa se torna manipulável.
A presa mais fácil do psicopata, diz ela, são as pessoas generosas, que têm brilho próprio, alguma coisa bonita. Psicopatas são parasitas, ou insetos em volta da lâmpada: se aproximam de alguém que brilha. Ele vai na pessoa para sugar o que ela tem de melhor.
“Uma pessoa que se relaciona com um psicopata, se relaciona com um vampiro”, diz ela. “Eles são vampirizadores. Vão tirando a energia do outro: a gente vê a pessoa perdendo o brilho, a alegria. A dominação deles é essa.”
Entram na vida de um homem ou mulher, fazendo o outro achar que é o homem ou mulher da sua vida, sempre entusiasmado, porque o psicopata representa muito bem esse papel. Ele é alegre, é gentil, ele faz tudo. “É um camaleão”, diz ela, por apresentar-se da forma como a outra pessoa deseja que seu companheiro seja.
Quando o psicopata vê que alguém caiu na sedução, seduz também amigos e parentes. Porém, começa a se mostrar na intimidade. Para fora, continua fazendo pose, mas, por dentro, o relacionamento se torna tóxico: tudo o que faz, sempre dá um jeito de a outra pessoa ser a culpada.
Se não consegue jogar a culpa em mais alguém, o psicopata faz a vitimização, para que tenham pena dele. Assim a outra pessoa lhe dá mais uma chance, e depois outra.
O psicopata, ou a psicopata, sabe que é assim, e que se utiliza das pessoas. Não ama, mas se liga pelo “jogo do controle, ou ter a vida do outro sob seu controle".
Antes de sair da relação, é melhor não entrar – é preciso identificar o comportamento pela história patológica pregressa da pessoa. Psicopatas repetem os mesmos erros, porque a memória é marcada pela emoção - se não sofre com os erros, e não se arrepende, ele os repete. Por isso, também, cedo ou tarde acabam sendo descobertos.
O relacionamento com o psicopata é sempre abusivo. Uma pessoa aberta a amar se relaciona a alguém que não amará ninguém, nunca. E apenas a usa, ou abusa. Não tem cura, porque não é doença, é maneira de ser.
Quem se relaciona com um psicopata sofre, porque se relaciona com alguém que faz com que o outro tenha sempre sentimento de culpa. O psicopata nunca erra: é sempre o outro, e ele faz com que o outro se sinta um incapaz. O outro acha estar com aquela pessoa maravilhosa, que é do jeito que ela quer, e isso é corroborado pelo fato de que até seus próprios parentes aprenderam a gostar dela. A realidade, porém, é bem outra.
O outro se apaixona por quem o psicopata se apresenta, mas essa pessoa não é ele. A grande dificuldade de quem se apaixona por um psicopata é admitir que aquilo que ela achava que era amor nem sequer existiu. “Não existe amor com quem não sente amor”, diz Ana Beatriz.
De novo: você conhece um psicopata?
sábado, 3 de setembro de 2022
Dez livros importantes
Uma lista dos dez obras literárias que mais me influenciaram (não necessariamente as melhores, porém as mais importantes para mim):
1. Quo vadis. Poderia ser Ben Hur, mas este livro, escrito por um polonês de nome impronunciável, ainda no século XIX, foi o primeiro romance que li, ainda criança, e me fez gostar de ler, transportado no tempo até a Roma de Nero e dos escravos cristãos.
2. Sidarta. Do mestre do romance espiritualizado, cujas imagens uso em minha obra até hoje: Herman Hesse.
3. Tia Julia e o Escrevinhador, de Llosa. Como não querer viver escrevendo depois disto? Vou espremer aqui Dossiê Odessa, de Frederick Forsyth: como não querer ser jornalista, depois deste romance sobre um repórter solteiro, dono de um Jaguar, com a namorada mais bonita de Munique, e que larga tudo diante da oportunidade que lhe cai nas mãos de fazer... Justiça?
4. Dom Casmurro, Machado de Assis. Admiro o refinamento intelectual, e o conteúdo, tão verdadeiro: aprendi com ele as sutilezas da alma humana e, sobretudo, o quanto a felicidade pode ser enganosa.
5. Incidente em Antares, de Érico Veríssimo. É uma grandiosa parábola do Brasil, sobre uma cidade onde o passado fantasmagoricamente não larga o presente. Mas quando o li, aos 14 verdes anos, o que me impressionou, mesmo, foi a putaria.
6. Metamorfose. Poderia ser qualquer livro de Kakfa, mas este é o que mais me fez entender o coração (quero dizer, o meu).
7. 1984. O romance sombrio, estranho e profético desse gênio, ícone do engajamento da literatura com a vida e vice versa, para mim talvez ao lado de Kafka o maior escritor da era contemporânea: Orwell.
8. Folhas da relva, de Walt Whitman. Toda a vida dentro de um livro. Fica na minha cabeceira, como uma oração.
9. A Bíblia. Li três vezes inteira, de cabo a rabo, parte de minha pesquisa para o romance O Homem que Falava com Deus. O grande épico mitológico da história da Humanidade, com lindas passagens (destaco o Gênesis, os Salmos, o Livro da Sabedoria, o Livro de Jó) e a história de Jesus, o maior revolucionário de todos os tempos, pregando a simples ideia de que todos somos iguais.
10. Os últimos deveriam ser os primeiros: Fédon, o diálogo de Platão que narra a morte (e última aula) de Sócrates, o Jesus dos intelectuais.
Hum... deu 11, e é pouco.🤣
sábado, 6 de agosto de 2022
No mundo do criador. Meu perfil de Jô Soares, para VIP, novembro de 1995
Embora fosse o entrevistador mais célebre do Brasil, o showman Jô Soares raramente concedia entrevistas. Em 1995, abriu-se a janela para uma delas, quando ele promovia o lançamento de seu primeiro romance, o policial satírico O Xangô de Baker Street. Em seu apartamento no bairro de Higienópolis, Jô recebeu a mim e ao diretor de redação de Vip na época, Marco Antônio Rezende, com a condição de que somente poderíamos publicar a reportagem depois que passasse pela sua leitura. No início, pensei ser algo inaceitável na imprensa. Hoje, vejo o pedido dele mais como uma gentileza entre colegas de profissão.
Jô concordou em falar sobre tudo, até mesmo seu filho Rafa, sobre quem sempre deu poucas declarações. Posou de bom grado para uma sessão de fotografias, com o tradicional terno e gravata borboleta, conjunto ao qual fez questão de acrescentar um charuto. Muito cioso e experiente no controle da própria imagem, queria surgir no seu coté mais intelectual.
Voltamos à
casa de Jô uma segunda vez com o texto pronto, para o momento delicado da leitura
por parte do personagem.
– “Luzinhas piscam”? – disse ele, repetindo em voz alta a primeira frase,
com uma careta. – É assim que começa?
– É – respondi.
Jô seguiu em frente e o resultado pareceu agradá-lo. Não fez qualquer
reparo ou pedido de modificação do texto, nem sobre as tais luzinhas. Eu e Marco Antonio voltamos
para a redação aliviados. Tínhamos a capa da revista, sem brigar com o Jô.
O texto original da revista foi publicado num livro de perfis de pessoas célebres, que publiquei pela editora Saraiva (Eles me disseram). Jô virou amigo. Fui entrevistado por ele duas vezes em seu programa, a última delas em 2015, quando lancei A Conquista do Brasil. Eventualmente conversávamos. Jantávamos no Jardim de Nápoli, porque, lá, ele não pagava a conta. E eu aceitava, para pegar carona na gentileza do dono da casa. Eram jantares sempre divertidos, em que gostávamos especialmente de trocar histórias sobre gente de imprensa - ele conhecia muitas, e era uma delícia ouvi-lo contar.
Estranho que o texto termine falando de uma certa aristocracia que só acabaria junto com Jô. Ele acaba de falecer, para tristeza geral, e, tantos anos depois, continuo pensando a mesma coisa. E este perfil, construído no seu auge intelectual e criativo, ainda me parece o melhor Jô.
(texto)
No mundo do criador
Luzinhas piscam
como vaga- lumes eletrônicos na escuridão. Jô Soares acende a luz e aparece a grande
biblioteca de seu apartamento, em Higienópolis São Paulo. Nas estantes de madeira patinada,
sob inspiração do arquiteto Sig Bergamin, acomoda-se 2000 livros, a maioria
encadernados —sem contar os que há em sua casa de Petrópolis. Como o comandante
de uma espaçonave, Jô instala-se na mesa em semicírculo ao fundo do salão.
Sobre ela, o elemento mais proeminente é uma elegante caixa umidificadora de
charutos, de rádica. De um conjunto de som, faíscam as luzinhas sequenciais. À
direita, um poderoso microcomputador Pentium, tela gigante, um aprelho de TV
Philips, e a janela onde pousam duas corujas espanta-pombos , de cerâmica, com
vista para o bairro arborizado.
Na parede do outro lado repousa um
quadro a óleo em estilo pop de autoria do próprio Jô. É uma caricatura dele
mesmo, gostosamente refestelado numa poltrona, com a roupa do Super—Homem e
chinelas. Dorme segurando os classificados de um jornal, ao pé do retrato
emoldurado de um sujeito bigodudo. “O nome do quadro é O retrato de Nietzsche
na casa de seu filho”, explica.
Não é só auto-ironia que quebra a
perfeita organização do ambiente. Pelos cantos, há algumas pilhas do livro que
Jó lançou recentemente: O Xangô de Baker Street, sua estréia como romancista. A
história, um policial protagonizado pelo legendário detetive Sherlok Holmes no
Rio de Janeiro do Segundo Império, é claramente algo com a marca de Jô. Na
trama, personagens reais e fictícios se misturam com a naturalidade que ele
imprime às suas mais finas criações. Para quem se espantou ao ver Jô
romancista,diga-se que o livro já era um sucesso no lançamento. Nas primeiras três semanas, foram vendidos
cerca de 130 000 exemplares de Xangô. Nesse pouco tempo, ele quase alcançou a
marca final de Agosto, último romance de um especialista no ramo, o escritor
Rubem Fonseca( 160 000exemplares vendidos). E aproximou-se a passos rápidos dos
recordistas da sua editora, a Companhia das Letras( Estorvo, de Chico Buarque,
e Paratii, de Amyr Klink, com 200 000 exemplares). “Este vai ser o nosso melhor
ano”, proclama o normalmente comedido editor Luiz Schwarcz.
O Jô romancista cavalga com
desenvoltura um sucesso do mesmo tamanho do Jô da TV. Mas a nova encarnação de
Jô, literato, explodiu de modo um tanto inesperado, até para o editor Schwarcz,
que ao lhe pedir um livro sugerira um compêndio sobre a história da televisão
brasileira. “Não sei porque estranharam que eu tivesse escrito um romance”, diz
Jô, enquanto solicita uma ajudante doméstica, ainda fardada para o seu plantão
noturno, uísque com gelo para os seus convidados. Para ele mesmo pede um
imbatível guaraná diet- bebida predileta dentre as que se permite. “Isso é um
prolongamento da atividade do artista”, prossegue. “Se eu fosse engenheiro ou
neurocirurgião , aí talvez se justificasse algum espanto”.
Não se pode dizer , também, que Jô
seja um neófito nas pretinhas, como os jornalistas costumavam chamar a máquina
de escrever na era pré- computador. “Eu trbalhei pela primeira vez em jornal em
1961, quando escrevia uma coluna diária no Última Hora”, conta Jô, entre
goladas de guaraná. “Era uma coluna com pessoas, artistas e espetáculos.” Na
época, como era costume entre a elite do jornalismo paulistano, ficava até
altas horas da madrugada em debates boêmios no velho restaurante Gigetto com os
colegas da redação .
De certa forma, nem mesmo os oito
anos em que Jô confirmou-se como o melhor entrevistador da televisão
brasileira, no seu tradicional programa Onze e Meia, ou escrevendo na coluna
semanal na revista Veja, foram suficientes para encobrir sua imagem como
humorista e homem de TV e teatro, onde ainda atrai multidões com seu one- man-
show Um gordo em Concerto. Até porque ele faz questão de dizer que como
jornalista seu principal elemento é também o humor.
Pode-se ver muita coisa do Jô
intelectual em Xangô. Persiste no seu livro a graça com que ele coloca um
clássico personagem dos romances policiais, o detetive Sherlock Holmes, e seu
amigo, o doutor Watson, a investigar uma série de crimes no Rio de Janeiro do
Imperador Pedro II. Ao recriar os personagens a seu modo, inventar outros e
ainda entronizar uma participação especial de personagens históricos, como a
atriz Sarah Bernhardt e o próprio Dom Pedro, ele se diverte misturando ficção
ao documento minucioso da época, o que imprime ao livro uma interessante
mistura de graça e erudição.
Com seus dedinhos , JÔ saca um Hoyo
de Monterrey, doble corona, fura a ponta e o acende com prazerosas fumaradas.
Diz que este é um velho hábito seu, embora só tenha vindo a aparecer
publicamente empunhando charutos agora que está lançando o livro, na condição
de entrevistado, e não na de entrevistador. Jô entende de imagens como poucos—e
quer mostrar seu lado sério para que não levem seu livro na brincadeira. “Gosto
muito de charutos, embora não tenha preferência por nenhum”, ele diz. “Fumo
cubanos, porque eles realmente são algo diferente. É como vinho francês e
pastel e sanduíche de botequim. O sanduíche em casa nunca é igual ao do bar.
Faltam os germes, as bactérias e a mão suja de quem faz”.
Entre uma e outra baforada, ele se
entrega com evidente prazer à tarefa de recompor seu percurso profissional e
intelectual. Lembra que em 1965 chegou a passar um dia prestando depoimento no
Dops por participar de reunião de intelectuais de apoio à classe teatral,
quando esteve entre os integrantes da mesa. Diverte-se ao lembrar: “O policial
que me interrogou me perguntou, com grande seriedade: “O senhor sabe que
intelectual é palavra inventada pelos comunistas?”
De
uma gaveta bem à mão, JÔ saca uma pasta com cópia de sua ficha nos récem –
abertos arquivos do Dops paulista, retirada por um amigo. Põe-se a ler, quase
embaraçado pela estupidez de uma era passada e obscura: “Elemento nomeado ministro extraordinário da
eucaristia, formado por Dom Helder Câmara...”Explica: “Eu fazia espetáculo no
Brasil todo e ajudava na eucaristia. Achava que o leigo deveria participar mais
da Igreja e fiz curso em São Paulo com Dom Lucas Moreira Neves. Estive com Dom
Helder apenas quando fiz um show no Recife”.
Ele assesta os óculos e prossegue na leitura: “Autor
da música Liberdade, proibida pelo Dops”... Nova explicação: “Fiz para o Ari
Toledo. A letra dizia que ele queria morar na Liberdade (o bairro de São
Paulo), que a rua tal e tal ia dar na Liberdade, mas que a Brasil e a Estados
Unidos não iam dar na Liberdade... Claro que a gente fazia oposição como
podia”. Jô chegou a ser processado quando trabalhou no Pasquim, naqueles tempos
brabos, por causa de um artigo chamado “A cama”. “Dizia que a cama chamava-se
cama por causa de seu suposto inventor, um homossexual assumido e famoso
chamado Giovanni Cama”, explica Jô. “Daí a frase: Crie fama e deite-se no
Cama”. Ri. “Não tinha nada demais, mas era o Pasquim, e qualquer coisa servia
de pretexto para censurar a esquerda e podar a livre criação.”
Talvez Jô
acabasse conquistando fama no jornalismo se não tivesse iniciado a carreira de ator
no filme “O homem do Sputnik”, em 1958, e começado a trabalhar na TV Rio na
mesma época. Depois, foi convidado para a TV Globo pelo amigo Max Nunes,
cardiologista que nas horas vagas tornou-se um dos mais talentosos autores de
rádio e televisão do país. O mesmo Max Nunes, agora com 73 anos, aposentado da
Medicina, com quem Jô ainda faz parceria – é seu co-autor na TV, em caráter de
exclusividade. “Fizemos o Faça Humor, Não faça Guerra, ele escrevendo, eu
escrevendo e fazendo personagens”, diz. Ele olha para o seu Pentium e lamentou
que ainda não estivesse à sua disposição naquela época. “Escrever naquelas
máquinas era um trabalho estivador”, diz Jô. “Principalmente a Família Trapo,
um programa semanal de 2 horas. E ainda tínhamos de escrever tudo naquelas
folhas de mimeógrafo. Ao final, estávamos completamente azuis”. Mas não se
pense que o Pentium escreve sozinho. “O ato de escrever”, diz o novo
romancista, “é como parir sem ser mãe”.
Jô fez incursões variadas também por outras searas
artísticas, nem sempre com o mesmo sucesso, diga-se. Foi o caso, por exemplo,
de seu único filme como diretor: “O pai do povo”, de 1975. “Foi uma frustração
ter feito um filme que ninguém viu. Pelo menos, virou um cult às avessas”,
disse. O Jô artista plástico participou em 1967 da 9ª. Bienal de Artes
Plásticas de São Paulo, que ficou conhecida como a Bienal da Pop Art .
O ecletismo de Jô na área artística encontrou
correspondência em outros aspectos de sua vida. Declara descaradamente que
prefere um gorduroso cheeseburger às iguarias dos melhores restaurantes, embora
tenha as de sua predileção, como o boeuf bourguignone do restaurante Daniel e o
hambúrguer do P.J. Clark’s, em Nova York, ou o chucrute da Mansion d ‘Alsace,
em Paris.
No Rio, Jô aprecia o cardápio do Hipopótamus e a
carne seca e desfiada do Pantagruel. Em São Paulo, gosta do Massimo e é fã do
polpettone al sugo de pomodoro do Jardim de Nápoli, que oferece a vantagem
adicional de ser perto de sua casa. Jô é consumidor voraz também de livros.
Entre suas leituras prediletas, relaciona clássicos como Eça de Queiroz, Ernest
Hemingway e Dostoiévski, mas também escritores marginais. Como Frederic Brown,
autor de contos curtos que ele degusta com prazer, e de um romance intitulado “Os
Marcianos Se divertem”. Trata-se da narrativa de uma invasão de “marcianinhos
verdes super cafajestes”, descreve Jô, que perseguem as pessoas em toda parte,
inclusive na cama.
“Brow tem um humor ferino de que gosto muito”, diz ele.
“Acho que os gremlins são fruto direto dos marcianinhos dele.” Para provar que
está falando sério, Jô se dirige ao Pentium e tenta puxar o nome do escritor
nos arquivos da Enciclopédia Britânica em versão CD—ROM. Nada. “Ele é tão marginal
que nem na Britânica está”, diz. Depois, olhou para os livros em sua estante,
levanta e busca um volume em francês onde consta uma brevíssima biografia de
Brow. “Está vendo?”
Ao passar da bancada do entrevistador para o
entrevistado, na esteira do romance, descobre-se um Jô Soares um pouco
diferente daquele que todos acham conhecer da televisão. A começar pelas
idéias, que muitas vezes deixa filtrar no seu programa, mas que só então aparecem
inteiramente explicitadas. Sua declarada
posição ideológica, por exemplo: “Eu sou o anarquista que todo artista deveria
ser”, diz. “Preservo a capacidade de criticar a quem quiser.” Essa profissão de
fé tem seu lado muito prático. Jô, por exemplo, foi uma das primeiras - e
poucas - personalidades a disparar contra o presidente Fernando Henrique
Cardoso, uma unanimidade entre seus pares no mundo intelectualizado, ainda
antes das eleições para a presidência da República, em 1993, quando decidiu
aliar-se ao PFL: “Sou um democrata enraizado”, diz. “Essa aliança com o PFL
incomodou todo mundo. E não era necessária”.
Ele também tem opiniões bastante singulares sobre o seu
próprio meio. Acha bobagem, por exemplo, a conversa muito freqüente segundo a
qual a TV imbeciliza o povo. “A função dela é pegar coisa de fora e levar para
dentro da sua casa. Se você não ligar o aparelho , não será nociva, mas também
não trará nenhum benefício - nem notícias, entretenimento, filmes. Nada. Na
verdade, ela democratizou a informação, que antes era elitizada de modo
indiscutível. Tenho empregados que às vezes estão mais bem informados do que eu
sobre o que está acontecendo na economia.”
Casado pela terceira vez, com Flávia, Jô cultiva a
discrição em relação à sua vida particular. Nas últimas semanas, expondo-se na
nova faceta de escritor, acabou tendo de falar de assuntos que antes tenderiam
a permanecer no terreno estritamente privado, como religião. Declara-se devoto
de Santa Rita de Cássia, de quem tem uma imagem de meio metro de altura bem
ali, em seu escritório. Diz que é assim desde criança, por influência da mãe.
“Acho que Santa Rita me protege”, afirma. “Como tudo que é irracional, não tem
muita explicação.”
Durante um programa Roda Viva, da TV Cultura, o
momento mais emotivo foi aquele em que respondeu à pergunta de um telespectador
sobre se tinha filhos. “Eu tenho um, hoje com 31 anos, o Rafael”, diz Jô.
Rafael, que mora com a mãe, Tereza Austregésilo, com quem Jô se casou aos 21
anos, tem problemas semelhantes aos do personagem autista interpretado por
Dustin Hoffman no filme “Rain Man”, embora ele evite mencionar o nome médico
para o assunto. “O Rafinha tem um talento enorme para a música, toca piano e
compõe”, disse no programa. “Mas ao mesmo tempo não consegue fechar sozinho o
botão da camisa.” Alguns dias depois, entrevistado por Marília Gabriela, disse
que para ele o problema de Rafinha era “bem resolvido até onde pode ser bem
resolvido. Ter filhos com dificuldades é algo difícil de administrar. Mas eu
não gostaria de ter outro filho que não
fosse o Rafa”.
Boa parte do dia, Jô passa ali no escritório mesmo,
seu reino encantado, onde se sente muito à vontade. Acorda às 11 horas da manhã
e dorme às 4 da madrugada. “Leio, vejo vídeos”, relata ele. Às segundas e terças,
grava o Onze e Meia. Faz entrevistas também para os demais dias da semana. Grava
ainda um programa de rádio, “Jô Soares Jam Session”, e de sexta a domingo
apresenta no teatro “Um Gordo em Concerto”. Tira férias da metade de dezembro
até março e procura não manter horários rígidos. “Tenho um problema com a
pontualidade”, disse.
Nas férias, vai com freqüência a Nova York, onde se
hospeda em flats alugados. Da última vez, em janeiro do ano anterior, acabou
trabalhando na confecção de Xangô. “Quando estava escrevendo, fui ao Argosy, um
sebo fantástico, com computador, na Rua 59, entre a Lexington e a Park Avenue”,
disse ele. Lá, comprou a coleção completa dos livros de Sherlock Holmes. “Mas
sou cliente fiel da Barnes & Noble, na Broadway com 83”, emenda. Em
Manhattan, freqüenta cinema e teatro. “Aqui no Brasil, as salas são pequenas. A
shopping não dá para ir, porque quando apareço começa aquela algazarra. Mas não
fujo das pessoas, ao contrário, porque sou exibido à beça. Em viagem, ao
contrário de muitos artistas que adoram o anonimato, eu fico carente. Sinto
falta das pessoas que cruzam comigo sorrindo e me cumprimentando. Fico
pensando: o que será que eu fiz de errado?”
Como se veste um escritor grande como Jô Soares? Ele usa jeans feito na Exss, que fabrica jeans de lycra, stone washed, especialmente para ele. Faz seus ternos com a VR. Depois, por amizade ao falecido Rafael Minelli, que confeccionava suas roupas desde a década de 1960, continuou freguês da alfaiataria paulista que leva seu nome. Gosta de gravata borboleta de dar laço — “nunca pinga nada nela” — e cultiva com gosto hábitos europeus, algo muito apropriado para quem estudou na Suíça até a adolescência. “Em Paris, vou à Brasserie Lipp”, diz. “Era amigo do antigo proprietário, falecido monsieur Casè, um fumante de charuto que proibia fumar cachimbo, dizendo que atrapalhava o apetite alheio com aquele ‘perfume adocicado’. Mas ele deixava os charuteiros completamente à vontade” diz Jô, e ri deliciado.
Mesmo sendo
amante de charutos, ele afirma que não tema outras grandes manias, como a de
procurar “aquele” charuto. “Eu invejo as pessoas que não têm a menor fixação
por objetos, como o Max Nunes”, afirma. “Uma vez lhe perguntei qual a cor de
carro de que ele mais gostava. Sabe o que ele respondeu? Nenhuma, eu vou
dentro.” Jô gosta de objetos bonitos, mas não faz questão de quantidade. Adora
relógios, mas só tem três - o preferido era um Cartier modelo Pachá, de ouro
maciço. Carros, também possui três: um Jaguar, um BMW 750 “longo” e um Mercedes
conversível. “Tinha uma paixão pelas motos Harley que, como toda paixão, era
patológica”, diz. Ela acabou depois de um par de tombos que deixou algumas
seqüelas. Jô se levanta, vai até uma parede e empurra o braço contra ela, até
conseguir alçá-lo apontando para o alto, único jeito de fazer movimento. Na
primeira queda de moto, quebrou um braço. Na segunda, quebrou os dois. “O Max
diz que motocicleta, por ter duas rodas, foi inventada para cair”, diz. “Um
dia, ela te vence”.
O ar enfumaçado pelo charuto favorece temas mais
profundos, de maneira que mudamos de assunto, para falar sobre seu método de
criação. Talvez a principal característica de Jô seja a capacidade de reciclar
o que vê à sua volta, transformando tudo sob sua ótica bem-humorada, como fazia
com seus personagens da TV — alguns extraídos da realidade. Era o caso do português
que exclamava “Q’ erias !”, um bordão que ao seu tempo se tornou muito famoso. “Eu
estava com papai e mamãe numa estação de águas na Itália, num hotel
deslumbrante”, conta Jô. “Havia lá um português grossíssimo e engraçado. Certa
vez, vi uma bela italiana ralhando com ele: ‘Farabutto! Mascalzone!’ Era uma
daquelas moçoilas que ficavam no hotel à caça dos ricaços que andavam por ali e
cobravam 20 000 liras por serviço prestados.” Nesse ponto, Jô imita a reação do
português: “’Q’erias! Q’erias vinte, zero é o que vales. Dei-te cinco, lucraste
cinco. Q’erias!’ Contei essa história
para o Max Nunes e ele achou que tínhamos ali um tipo já pronto”.
Essa característica de Jô também está presente em
Xangô, além de um certo romantismo, pela maneira com que ele retrata o Brasil
monárquico - cheio de nódoas sociais, mas também dotado de uma adorável leveza.
Jô trata de monarquia como um tempo despreocupado e propício a uma boemia na
qual se esbarra com figuras como o poeta Olavo Bilac numa mesa de bar ou
Ernesto Nazareth ao piano num sarau chique.
Passa da meia-noite. Jô nos acompanha até a porta.
Na parede do hall, há um grande painel de João Câmara de um lado e, de outro, a
gigantesca estátua de um negro, com um grande sorriso no rosto, usando casaca
decorada de estrelinhas e chapéu-coco, como os personagens que abriam a porta
dos antigos teatros americanos. Estende a mão enluvada, e alguém deixou ali uma
nota de 1 dólar. “Um amigo americano passou aqui em casa e deixou a nota aí”,
diz Jô, divertido. “Eu gostei e colei”.
A história lembra outra, contada por Jô na mesma
noite. Certa vez, acompanhado do compositor Jorge Mautner, ele discutiu com um
negro na Washington Square, em Nova York, em meio a uma passeata de protesto
contra os brancos. Tentava prova a ele que compreendia muito bem a situação dos
negros nos Estados Unidos, porque, sendo de um país de Terceiro Mundo, também
sentia-se discriminado. O negro americano, entretanto, fez pouco caso da
conversa daquele brasileiro cordial. “Você é branco”, fuzilou ele, antes de
lançar alguns impropérios e seguir na sua marcha. Jô não se conformava que o
racismo pudesse ser superior àquela tentativa de aproximação.
segunda-feira, 11 de julho de 2022
Uma conversa com o presidente
Maria João, assessora cultural do governo português, sentada à mesa comigo, me estimula a falar com o presidente Marcelo Rebelo de Sousa, no almoço oferecido pelo governo português dentro do Expo Center Norte, onde acontece a Bienal do Livro - e Portugal tem um pavilhão, como país convidado de honra.
Desço correndo ao piso térreo, onde ficam os estandes, compro dois de meus próprios livros de história (A Conquista e A Criação do Brasil) e volto correndo ao almoço.
- Dois? - diz o presidente, com um sorriso, quando me aproximo de sua mesa, com os livros na mão.Explico que sou autor e editor e lançamos no Brasil o selo Assírio & Alvim, que tem em Portugal os grandes autores nacionais, e meu propósito é não apenas lançar autores portugueses aqui, como fazer com autores brasileiros o mesmo trabalho que a editora faz em Portugal.
- Mas tem de ter autor brasileiro em Portugal também, hein? - diz ele.
Em seus discursos, falou da Bienal como se o Brasil fosse o seu país, ou ele fosse o presidente brasileiro, de tão orgulhoso da pujança do evento. Andou pelos estandes, comprou livros para uma brasileira que teve coragem de abordá-lo, fez fotografia com Deus e todo mundo, foi um sucesso.
Só não encontrou o presidente Jair Bolsonaro, que não foi à Bienal e desmarcou em Brasília um encontro oficial entre chefes de Estado, numa inexplicável represália pelo fato de Sousa ter encontrado Lula, na série de encontros de cortesia do presidente português com ex-presidentes brasileiros, incluindo FHC e Temer.
De acordo com o sistema político português, Sousa não tem funções executivas no governo, isto é, não comanda a administração. Porém, representa o Estado e tem um poder que o presidente do Brasil não tem, que é o de dissolver o Congresso e convocar novas eleições. Sobretudo, dá o tom de comportamento a um país onde o Estado fomenta a cultura, promove-a internamente e também no exterior, como o grande patrimônio nacional, a unir, identificar, valorizar a nação e fazê-la cruzar fronteiras.
sábado, 11 de junho de 2022
Hemingway, Dos Passos e um lugar ao sol
Hemingway (esq.) e Dos Passos
Numa noite da primavera de 1937, um grupo de homens armados invadiu o apartamento em Valência, na Espanha, onde estava José Robles Pazos, professor de literatura espanhola na Universidade John Hopkins, nos Estados Unidos.
Intelectual do partido comunista, Robles tornara-se homem importante na guerra civil espanhola. Era tradutor e braço direito do general russo Mikhail Koltsov, encarregado de liderar as forças internacionais que reforçavam a resistência contra as tropas do general Francisco Franco.
Depois de vasculhar seus pertences, os homens da milícia levaram Robles algemado, sem mandado de prisão, acusações ou explicação, deixando para trás, em desespero, sua esposa Márgara. Naquela noite, em algum lugar perto de Valência, sem julgamento ou apelação, Robles foi fuzilado. Seu corpo jamais foi localizado.
Para entender esse crime, que permaneceu sem esclarecimento muito tempo, é preciso compreender um estranho episódio da História: uma guerra na qual o líder soviético Josef Stalin entrou nos bastidores, sem ser chamado, para defender uma nobre causa e depois abandoná-la. Depois de enviar reforços russos aos republicanos de Madri, Stalin literalmente sacrificou os homens que tinham ajudado a defender a cidade do cerco franquista ― os seus próprios homens, incluindo o general Koltsov, considerado mais tarde um traidor e executado em Moscou. Com a mesma frieza com que realizava expurgos em massa em seu país, Stalin tinha como principal interesse atrair a cobiça imperialista de Adolf Hitler para uma Espanha enfraquecida. E assim desviá-la da União Soviética.O assassinato de Robles e dos oficiais russos na Espanha marcou também a vida de dois escritores americanos célebres, como conta o ex-professor de literatura da Universidade de Columbia Stephen Koch em seu livro O ponto de ruptura ― Hemingway, John Dos Passos e o assassinato de José Robles (Difel, 2008, 352 págs.), publicado no Brasil pela editora Difel. Amigos fraternos, até cobrirem juntos como jornalistas essa guerra insensata, John Dos Passos e Ernest Hemingway saíram da Espanha como inimigos silenciosos. E a partir dali teriam destinos opostos, na literatura e na vida.
Amigo de Robles desde seus tempos de faculdade, Dos Passos era então o romancista mais quente dos Estados Unidos ― pouco antes de viajar à Espanha, tinha sido personagem de capa da revista Time. Ao descobrir o assassinato ― e que fora patrocinado pelos chefes de sua corrente ideológica ―, ele se afastou dos quadros do partido comunista, do qual era a maior estrela entre outros intelectuais e celebridades da época.
Do livro de Koch, emerge um Hemingway hedonista, vaidoso, conturbado. Trai a mulher que lhe deu casa, comida, filhos e tranqüilidade para escrever (Pauline), por Martha Gelhorn ― uma ambiciosa candidata a celebridade que fazia o jogo do apparatschik e o atrai com as armadilhas certas (a beleza física e a bajulação). Ao mesmo tempo em que leva Martha consigo para a ribalta da intelectualidade (e a cama), Hemingway é convencido a demover Dos Passos de investigar a morte de Robles. O que ele faz, munido do mesmo fatalismo seco que encontrava nas guerras e transpunha para sua literatura.
Como compensação, além do reconhecimento de Martha, Koch mostra que Hemingway desfruta, ainda que com um certo desconforto, de novos refletores. Levado por Martha e seu círculo de amigos ligados ao aparato stalinista, que via na propaganda um instrumento de Estado, Hemingway é colocado por eles como o centro dos eventos mais barulhentos da intelectualidade da época. O Hemingway de O ponto de ruptura aceita ser usado, fisgado pelo ego, sua eterna obsessão ("a carreira, a carreira", escreve Koch, citando um conselho que dera Gertrude Stein) ― e uma bela mulher.
Ao afastar-se do comunismo stalinista, Dos Passos entrou no período de declínio de sua produção literária. Depois de cobrir como jornalista a guerra civil espanhola, e perceber como Stalin aos poucos mandava matar seus colaboradores no país, nunca mais conseguiu escrever romances com o mesmo calor.
Enquanto sustentou seu ponto de vista engajado, Dos Passos o usou para a crítica de um país em que cada vez menos se admite, ainda hoje, as falhas do sistema. Destruída sua visão do mundo, traído por aqueles a quem defendera e afastado de Hemingway, Dos Passos se perdeu.
Para os americanos, chega a ser incômodo pensar que um de seus maiores romancistas tenha sido comunista, algo que no país patrocinador da Guerra Fria se tornou uma maldição ― mesmo que o macartismo tenha terminado, ou que Dos Passos tenha se afastado do comunismo, quando a realidade brutal do stalinismo mostrou ao lado de quem ele servia. É muito mais fácil ter como monumento literário um gênio amoral como Hemingway, que fazia do individualismo sua única bandeira, mesmo que ele tenha servido de alguma forma ao comunismo stalinista. Na sua busca incessante de servir a si mesmo, Hemingway disfarçava melhor quando servia a outros. O professor Koch, aos poucos, vai demonstrando seu ponto de vista: como Hemingway, com seu perfil duvidoso, faz o milagre de desfrutar o apoio do apparatschik, sem perder a aura de ícone da Geração Perdida, que o colocou um pedestal da América capitalista.
Homem de um tempo em que as utopias eram tomadas nas mãos de ditadores pusilânimes e sanguinários, Hemingway morou seus últimos vinte anos em Cuba. Para isso, alegou não idealismo ou lealdade a Fidel Castro, mas o fato de que a ilha era o lugar perfeito para tomar daiquiris e praticar seu esporte favorito, a pesca de bico. Matou-se com um tiro de espingarda na boca, vítima da devastação física e moral a que o levou o alcoolismo ou, antes, o verme roedor das consciências. Porém, fez da própria morte, assim como da dubiedade de suas relações, incluindo com as mulheres, parte do mistério que alimenta seu mito. Enquanto Dos Passos submergiu, ele continua o romancista mais cultuado de todos os tempos.
Sendo eu também romancista, o livro de Koch me faz pensar. A qualidade literária sobrevive às ondas da política, aos ditadores de todos os matizes e às sociedades refratárias. Hoje, quando as ideologias são tão difusas que as diferenças parecem ser apenas a da pobreza e da riqueza, do Ocidente e do Oriente, do fundamentalismo desta ou daquela religião, os intelectuais perderam participação ativa na política e nos acontecimentos do mundo, afogados na falta de ideias ou de clareza.
No entanto, O ponto de ruptura traz de volta à luz o talento de um romancista que olhava para dentro, mas também olhava para os outros. Mostra que se deve recolocar John Dos Passos em seu devido lugar histórico e literário. Dos Passos foi capaz de compreender Hemingway. Chegou a enviar-lhe uma carta reconciliatória, quando Hemingway deixou a Clínica Mayo, em Havana, para tratar-se de depressão e sintomas de psicose, manifestando preocupação com sua saúde ― duas semanas antes do antigo amigo explodir a cabeça com uma espingarda de caça.