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sexta-feira, 19 de junho de 2020

O romancista encara suas fontes


Eu estava em Nova York, tempos depois de lançar A Quinta Estação, quando tocou o celular. Era uma ex-namorada, que ligava do Canadá.

- Meu pai leu o seu livro.

- Ué, achei que ele não gostava de mim.

- Disse que o livro está cheio de sexo!

- Mas é uma obra de ficção e ninguém está identificado...

- Como não? Agora só me chamam de Sofia!

Lembro dessa história ao folhear A Quinta Estação, um daqueles livros que, por ser contemporâneo, acabam criando alguns problemas. Tenho um amigo que, quando lanço um romance, pergunta; “Quem vc f... dessa vez?”

Um de meus filmes favoritos, “Desconstruindo Harry”, de Woody Allen, fala justamente desse problema do autor. De forma análoga ao que faz como cineasta, Allen se coloca no papel de um escritor que usa todo mundo que conhece como inspiração para seus personagens. Acaba criando uma confusão só ao seu redor. E não conto mais nada, para não dar spoiler a quem não viu.

Por sorte escrevo muitos romances históricos e, quando as inspirações são colocadas no passado, as pessoas não percebem tanto onde contribuiram sem querer para a história.

O fato é que, em qualquer época na qual qual seja ambientado, todo livro é produto das experiências de um autor, que frequentemente envolvem outras pessoas. E estas por vezes não gostam de se ver retratadas ali, ou da forma como você as retrata. Um romance tem sempre um ponto de vista, que é o ponto de vista do autor.

- Nesse livro aí você acerta conta com muita gente – Certa vez me disse um ex-cunhado, que é juiz. – Como a gente se defende de você?

Tem gente, por outro lado, que se enxerga lá nos livros mesmo sem ter nada a ver. Seja como for, é difícil entender o que sai da cabeça do escritor como uma recriação ficcional, que serve a uma função dentro da história, e por vezes tem de ser propositadamente adaptada.

A Quinta Estação é meu campeão de problemas nesse campo. Uma vez, uma leitora me mandou uma mensagem indignada.

- Mas esse livro só tem a perspectiva masculina dos relacionamentos!

Tentei explicar que era essa mesmo a ideia: cinco contos de amor, narrados do ponto de vista masculino. Afinal, o que há de errado com o ponto de vista masculino? Se eu sou homem, por que não posso ter um ponto de vista masculino?

Eu gostaria de mostrar que os homens pensam, sim, sobre relacionamentos, apesar da fama em contrário. Homens sofrem de amor, ficam magoados, e, no fundo, se queixam tanto as mulheres, talvez mais, por incompreensão. Porém, tentar convencer a moça foi inútil.

Às vezes, é verdade, faço referências que são pura e inocente provocação. Em Filhos da Terra, por exemplo, homenageio um amigo meu, o doutor Eduardo Reis, colocando seu nome num personagem que é um bacharel de porta de cadeia, especializado em livrar a pele dos larápios. Uma daquelas pequenas sacanagens que a gente só faz com grandes amigos.

Outra: também em Filhos da Terra, coloquei o nome da minha mãe e de minhas tias nas sete filhas do delegado que não deixava nenhuma casar antes de desencalhar a primeira. Elas adoraram o livro. Mas um tio que teve seu  nome trocado com o de um irmão ficou chateado comigo.

O que as pessoas não pensam tanto é que ninguém se expõe mais do que o autor, às vezes onde menos parece. Ainda assim, como não podemos ser tudo nem viver tudo, acabamos aproveitando a experiência dos outros.

Por isso, o interesse verdadeiro pelo outro, com o entendimento e aceitação de toda a diversidade humana, é essencial para quem escreve e também nossa vantagem. Essa preocupação serve ao trabalho e serve à vida, porque ela melhora muito, fica muito mais rica, quando temos um interesse genuíno pelas outras pessoas. E mais: temos compaixão. Sem base na realidade, sem nos colocarmos na pele do outro, nenhuma história teria credibilidade. E paixão.

A todos aqueles que me ensinaram alguma coisa na vida, que me me deram amor, ou com quem dividi aventuras, experimentos e mesmo alguns erros, deixo meu reconhecimento agradecido.

Indo para o papel ou não, todos podem ter a certeza de que tudo o que compartilhamos continua vivo dentro de mim. Se também compartilho algo dessa experiência em livro, é porque acho isso tão importante que pode servir a mais alguém.

E, por favor, não tenham medo de me contar coisas. Eu não mordo. Só, às vezes, escrevo. Discretamente.


terça-feira, 16 de junho de 2020

Minha companhia silenciosa

Algumas vezes na vida, morei sozinho – e desta vez recorro ao psicólogo americano Anthony Storr, que publiquei em português como editor na Saraiva, para quem estar sozinho não significa necessariamente ser uma pessoa solitária.
Pelo contrário. Storr nos lembra que a ideia de que as pessoas só podem ser felizes juntas, coabitando no casamento, é uma invenção relativamente recente na história da Humanidade, datada da era vitoriana para cá.
Diz Storr que são muitas as fontes da felicidade, podendo ser escolhidas de acordo com cada um. O importante é nos sentirmos bem e encontrarmos a melhor forma de viver em cada um dos períodos da vida.
Estar em uma nova casa, desta vez, acabou me reaproximando de velhos amigos, que de vez em quando visito. Saem dos livros que enchem as estantes e carrego comigo aonde vou morar, alguns deles há muitos anos.
Dali vem ao meu encontro Storr, falecido em 2001, mas que ainda hoje me ajuda e acompanha no que de outra forma seriam apenas desorientados solilóquios existenciais.
Uma biblioteca é um cemitério de papel, com a diferença de que dali os mortos se levantam tanto quanto os vivos, no frescor humano, plenos de ideias, sentimentos e energia vital. Conversam comigo, quando folheio as páginas onde colocaram, estou certo, o melhor que tinham de si. Contam histórias, fazem confissões, trazem experiências, conhecimento, vivência humana.
Fico feliz e um tanto aliviado de estar hoje também entre eles – o meu canto da estante em que me coloco dentro de mais de uma vintena de livros escritos ao longo da vida, nos quais, pelo tempo em que os escrevi, dei, certamente, o melhor de mim.
Digo a todos estes meus amigos, espalhados por cerca de 3 mil volumes, carregados trabalhosamente de mudança em mudança, que não os abandono, nem abandonarei.
E que não me esquecerei de um dia juntar-me a eles, de maneira definitiva, para ressuscitar da mesma forma que hoje ganham vida, assim que eu me sento, bastando abrir o tablet ou, neste caso, a palma das mãos.

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Como surgiu O Livro Proibido

Em 2003, quando levei O Homem Que Falava com Deus ao editor Pedro Paulo de Senna Madureira, ele disse que ninguém acreditava em livros de autores brasileiros sobre algo que não fosse o Brasil.

- Mas vou publicar mesmo assim - disse ele. - Porque é um livro seu.

Um mês após o lançamento, quando eu ainda fazia a noite de autógrafos, a primeira edição de O Homem que Falava com Deus - surpresa... - já estava esgotada.

Penso nesse episódio quase anedótico agora que lanço, tantos anos depois, um segundo livro que ronda o esoterismo: O Livro Proibido, série de episódios envolvendo um sábio proibido de falar e enterrado nas dunas da história.

Os tempos mudaram. Dessa vez, escolhi lançar o livro somente em versão digital, pelo Kindle da Amazon, como experimento. O sistema da Amazon permite vender o livro em qualquer lugar do mundo. Inclusive na forma impressa, pelo sistema on demand. Infelizmente, o Brasil é um dos poucos lugares onde isso ainda não funciona.

Velhas histórias ganham contemporaneidade, não apenas pela tecnologia, como pelos temas da obra, que me parecem tão atuais, num momento em que procuramos justamente uma luz em meio a um grandes caos político, religioso e cultural, potencializado pelas novas tecnologias.

Continuo gostando de temas esotéricos. Me aproximei deles ao ler, ainda adolescente, ao Sidarta de Herman Hesse, obra que influenciou não somente o que escrevo como o meu pensamento. Gosto da filosofia e da arte orientais. E de sua forma de encarar a natureza e a espiritualidade como uma coisa só.

Gosto do deserto do Sahara, onde estive três vezes, uma delas apenas para fazer a pesquisa para O Homem que Falava com Deus. Em especial, uma parte desse deserto, que chamam de El Rayan, a noroeste do Cairo.

Lá, as dunas são formadas por conchas, porque um dia toda aquela imensidão foi um fundo de mar. Tirei no El Rayan a foto que agora ilustra a capa de O Livro Proibido. Aquele lugar tem, de fato, algo de mágico.

A esses ingredientes, juntei também minha admiração por Borges, para quem histórias antigas serviam como fonte para uma erudição por vezes inventada, produto da mais pura e fina fantasia.

Nos labirintos de Borges, feitos de portas falsas, que parecem tão verdadeiras, ficção e realidade se confundem.

São estes mistérios que estimulam a mente e nos ajudam a encontrar respostas na vida real. Assim como O Homem que Falava com Deus, O Livro Proibido é um exercício de reflexão, tanto quanto um thriller ambientado num tempo milenar, e um jogo, um desafio, ou provocação.

Para comprar:
https://www.amazon.com.br/dp/B07W5Y2KB9/ref=rdr_kindle_ext_tmb

quinta-feira, 4 de maio de 2017

Dez coisas




Dez coisas sobre minha pessoa, só uma não é verdade. (do Facebook)

1- Meu primeiro grande trabalho para me sustentar como estudante de jornalismo e ciencias sociais foi contracenar num comercial de eletrodoméstico fazendo o papel de namorado da Giulia Gam. Mas Giulia Gam desistiu e acabei filmando com a Sandra Annenberg.

2. Apareci na TV só de cueca num comercial da Zorba, mas fiquei mais famoso falando apenas a palavra "menta" num comercial de pasta de dentes, junto com o jogador Sócrates.

3. Meu primeiro trabalho como redator foi escrever uma carta explicando ao mercado publicitário que um agente de modelos não tinha fugido com dinheiro roubado.

4. Levei sete anos para escrever meu primeiro romance, fazendo perguntas por escrito a um velho surdo.

5. Como repórter, escrevi uma matéria sobre um homem que fazia chover que foi para a primeira página de um jornal de negócios.

6. Passei um mês colocando bilhetes por baixo da porta do apartamento de um cantor que queria entrevistar, porque ele não falava com ninguém e tinha uma metralhadora, mas não tinha telefone.

7. Abracei um tigre branco e tomei banho numa lagoa no meio de dezenas de jacarés.

8. Por ser jornalista, fui julgado num tribunal indígena, numa língua que não entendia, e escapei da pena de morte.

9. Entrevistei Eike Batista sob a mira de uma pistola.

10. Roberto Civita dizia que eu "como jornalista sou um grande contador de histórias".

Respostas:

8 - É verdadeira. Fiquei 4 dias na tribo kuikuro, no Xingu, para fazer um documentário, como pode testemunhar o amigo e autor da iniciativa James Lynch. Lá o dono da festa disse que não nos conhecia e fomos a julgamento na maloca do chefe Afukaká. Quando descobriram que eu era jornalista, senti o calor da caldeirinha. A gente não entendia nada do que diziam - os membros do tribunal falavam em caribe, a língua kuikuro. Mas a gritaria, os arcos retesados e os tacapes balançando ameaçadoramente ao nosso redor eram bastante eloquentes. Naquela época havia na reserva uma equipe de cinema francesa sequestrada pelos kalapalo, o que não dava margem para otimismo. O terceiro cacique, Jacalo, nos livrou do enrosco. No final, virei uma espécie de sábio para eles - "tales" em caribe quer dizer "seiva da árvore", ou aquilo que dá a vida. Então eu já vinha com um nome anímico, muito importante para o índio. Pudemos assistir o quarup até o final, mas proibidos de filmar ou fotografar, razão pela qual existem poucos registros da viagem. Foi uma das experiências mais fortes da minha vida. Fomos embora de teco-teco, o que por si parece temerário, mas naquelas condições foi um verdadeiro alívio. Aquela experiência foi muito util para escrever A Conquista do Brasil. Entendo perfeitamente o sufoco que José de Anchieta passou como refém em Iperoig.

9 - Verdadeira. Quando eu era editor da VIP, ainda um suplemento de Exame, escrevi uma capa sobre Eike. Na época ele não falava com a imprensa. Mas, por vaidade, queria contar a história de como se tornara campeão de corrida de superlancha nos Estados Unidos, com um barco milionário, que, depois de se irritar perdendo muito, construíra para jogar spray em todos os adversários. Batizou-o de Spirit of The Amazon, homenagem à forma como ele começara sua fortuna, comprando ouro dos garimpeiros para revendê-lo. Era um negócio muito arriscado e ele passara a andar armado. Eike me recebeu no seu escritório no Flamengo. Quando saí do elevador, vi o próprio Eike, sentado à mesa de trabalho, atrás de duas paredes de vidro blindado. Tinha uma pistola sobre a mesa, virada para a porta - e seu interlocutor. Quando sentei, perguntei para que servia a arma. Ele abriu a gaveta e me mostrou grande quantidade de munição. "É por garantia", ele disse. "Vejo quem entra daqui mesmo, sentado." E manteve a pistola virada para mim sobre a mesa, durante toda a entrevista. Num outro dia, fizemos as fotos em outra de suas lanchas de corrida, na Marina da Glória. Eike ainda navegava no início de seu casamento com Luma de Oliveira, que veio receber a mim e o fotógrafo Sérgio Zallis na porta do iate clube com o filho Thor no colo - ele era ainda um bebê. Zallis e eu navegamos na água suja da baía num iate de um amigo de Eike, no alto da ponte de comando, para fotografá-lo dentro da lancha de corrida de cima para baixo. Foi a primeira entrevista de Eike na imprensa - e a única por mais de uma década.

6 - Verdadeira. O cantor é o Geraldo Vandré. A reportagem que escrevi em VIP foi referência para as duas biografias dele que saíram ano passado. Nenhum dos biógrafos conseguiu entrevistá-lo. Ele não tinha telefone. E sim, tinha uma metralhadora em casa, modelo soviético. Depois de um mês escrevendo a ele em bilhetes por baixo da porta, ele me telefonou. De um orelhão.

5 - A número 5 não é exatamente mentira, apenas contém um erro de informação. Não se tratava de um homem que fazia chover, mas que tirava magicamente água das profundezas da terra. Eu trabalhava na seção de nacional, na Gazeta Mercantil, e cobria uma seca prolongada em São Paulo que começava a afetar os negócios. Todo dia, tinha de escrever uma matéria sobre a seca. Depois de um mês, já não sabia o que fazer: entrevistara metereologistas, fizera uma reportagem sobre um teco-teco vindo do Nordeste que bombardeava nuvens...Então propus uma matéria sobre radiestesistas, que acham água debaixo da terra com uma reles varinha de salgueiro. Fui a São Caetano e entrevistei um deles, Nikolaus Frank. O outro chamava-se Herbert Radler (não tem explicação, mas os mestres da radiestesia eram húngaros). Com Nikolaus segurando uma haste e eu a outra, fiz o teste da varinha na cozinha de sua casa, onde ele dizia haver um "veio d'água". Entortava!. Entrevistei geólogos, que diziam não haver base científica para aquilo, porque a vara de salgueiro não é condutora de eletricidade - e Frank afirmava que era justamente a descarga elétrica que os deixava com as mãos entortadas e de nervos saltados. Acrescentavam que não existiam "veios d'água" debaixo da terra. O jornalista Alexandre Gambirasio, então secretário de redação, deu bola preta para a matéria. Disse que nada tinha a ver com um jornal de economia. Meio enfezado, voltei a campo. Aí descobri que empresas de alta tecnologia, em desespero, estavam contratando o homem da varinha para furar poços em suas fábricas, no meio da seca. Aí Alexandre não apenas deixou a matéria ser publicada como a colocou na primeira página do jornal. O título: "Phillips recorre ao homem da varinha".

terça-feira, 7 de março de 2017

Fotografias de um mundo sem futuro

“Você é o único aqui que não precisa de máquina para fazer fotografias”, diz a Mulher sem Nome, que, desde que nos separamos e tentou me proibir na Justiça de escrever seu nome, ficou sem nome - e me acostumei.

Estamos sentados no #Harry’s Bar, de Harry #Cipriani, celebrizador do carpaccio e do Bellini, onde já bebeu #Hemingway, em belas eras. É carnaval em Veneza e, desta vez, o bar está lotado de gente que entra da rua para o salão sóbrio e quente, acotovelando-se diante do balcão, entre os garçons de meticuloso paletó branco e gravata borboleta negra.

Entre os recém chegados, que amotinam o bar ao estilo naval, estão dois cavalheiros setecentistas de chapéu tricórnio, meias brancas até o joelho e paletó de asa. No meio deles, um sujeito com vestido balão (“lutador de sumô”, identifica a Mulher sem Nome), que ocupa, sozinho, o espaço de quatro pessoas e se movimenta boiando, enquanto rebate erraticamente entre os circunstantes.

Tomamos dois #Bellinis, acompanhados de azeitonas. É bom estar aqui, respirar novamente o ar de Hemingway, e estar com a mulher que entende exatamente o que estou falando. Viemos do palácio do Doge, decorados com cenas #de guerra e Netuno entregando a #Veneza a sua cornucópia, na representação de #Tiepolo. Andamos pela ponte Dei Sospiri, saindo da pompa dos salões venezianos, até a curta e claustrofóbica passagem sobre o canal que leva às frias e escuras masmorras do velho império.   

“É o que está acontecendo hoje”, diz ​a Mulher sem Nome, quando observa que o túnel entre os salões ricamente decorados e o claustro sombrio são aqueles vinte metros suspensos sobre o rio. 

Sim, no Brasil, hoje, os políticos que expoli​​aram o país, e empresários a eles associados, todos frequentadores dos melhores salões da república, navegantes de iates e passageiros de jatinhos particulares,​ estão indo para as imundas e superlotadas cadeias brasileiras. Entre eles, até mesmo #Eike Batista, que já foi o homem mais rico do Bras​i​l, destituído de sua fortuna, da liberdade – e de sua peruca italiana.

Tempo sem futuro, sem esperança, em que avanços recentes, não só no Brasil, como no mundo, se perderam. Nos Estados Unidos, Obama, com seu programa de saúde, seu olhar de ecumenismo político sobre as nações e o mundo, deu lugar a Trump: a volta à velha truculência do selvagem capitalismo americano.

Tempos do recrudescimento da ira, catapultada pelo poder digital, pela violência religiosa, ambos filhos da intolerância. Este é um mundo em que a tecnologia avança, mas ela apenas serve para melhor armar os homens e seus antigos barbarismos.

“Senhor, fotografar aqui dentro não pode”, adverte o maître do bar, firme e gentilmente.

Tarde demais. O retrato, como diz a Mulher Sem Nome, está feito. Veneza espera lá fora – a noite azul marinho, a cor de que mais gosto, nesta cidade que combina tanto com o caleidoscópio humano dos blocos nas ruas centenárias. O cheiro do mar, o estalo das gôndolas no cais, o trajeto pelas vielas estreitas, até a Chiesa San Vidal, onde, às 20h30, iremos a um concerto de violinos para ouvir As Quatro Estações de Vivaldi.

Talvez os tempos de Hemingway fossem mais sombrios ainda, tempos de guerra, embora mesmo a guerra naquela época fosse mais romântica. Estou aqui no Harry’s Bar, há vida e livros pela frente. Estou usando barba, por causa de Garibaldi, tema do romance que está saindo do forno, e muita gente diz que estou muito Hemingway. Sei apenas que, como eles, procuro viver até o limite, com ajuda do amor – amor que eu carregava pela mão na noite de festa e regozijo.

(Redação revisada para um texto escrito em Veneza, 26 de fevereiro de 2017, sábado de carnaval.)

domingo, 11 de setembro de 2016

O que você faria se soubesse que tem pouco tempo?

O que você faria se soubesse que tem pouco tempo?

Em 2003, depois de um período de trabalho que faria de qualquer um a pior pessoa do mundo, eu estava sentado diante da mesa do urologista Eric Wroclavski, que anunciou assim a descoberta casual de um tumor na minha bexiga, com um sorriso no rosto:

- Você teve sorte.

Sorte? Eu, com 36 anos, tinha um tumor. Sorte?

- Teve sorte, porque descbriu por acaso um tumor a tempo de poder se curar - disse ele.

Tumores são assintomáticos, daí que muita gente os descobre quando é tarde demais. Tempo é essencial. Eric marcou a operação para dali alguns dias, apesar de sua agenda estar cheia. "Não vou deixar ele com esse pólipozinho aí", disse a um assistente. Fui operado, fiz o tratamento, duro, e cinco anos de acompanhamento. Foi o mesmo Eric que me deu a notícia da cura. E recomendou que eu ficasse sempre de olho. Para não depender da sorte.

O que eu não sabia é que, na mesma época, Eric tinha descoberto que ele mesmo tinha um tumor. Na próstata. O mal que ele operava. Só que ele, Eric, o tinha descoberto tarde demais. Eric não contou a ninguém. Não contou à família: a mulher, também médica, e os filhos, médicos. Nem mesmo os médicos que trabalhavam em sua equipe sabiam. Conversava com colegas sobre seu caso nos Estados Unidos. E, sendo médico, se automedicava.

Tínhamos, em nossas consultas, longas conversas sobre a  doenaç e a vida. Ele dizia admirar o meu humor - um tanto ácido, é verdade - quando eu falava das fatalidades prosaicas da existência. Eu admirava sua vontade de trabalho. Eric era incansável. Perdi a conta de consultas das quais saí às duas horas da manhã, depois de esperar minha vez, sem reclamar, horas a fio.

Eu o respeitava, porque era um missionário. Atendia o maior número de pacientes que podia, incansavelmente. Horas depois, às seis da manhã, estava já no Einstein, fazendo cirurgia. Parecia numa jornada insana para salvar o maior número de pessoas que pudesse - dar a elas a chance que não tivera para si. Frequentemente tinha os olhos vermelhos: praticamente não dormia. E engordava a olhos vistos. Eu não sabia, mas era por conta dos remédios, com os quais procurava atrasar o progresso inevitável da doença.

Eric me fez viver, e estava morrendo. E só ele sabia disso. Quando um dia não aguentou mais as dores, e entrou no Einstein, dessa vez não como médico, mas para se internar, fiquei estarrecido. Todas as nossas conversas de repente mudaram de sentido. A começar pela frase: "Você teve sorte". Sim, entendi que tivera sorte, a sorte que lhe faltara.

Percebi que as muitas perguntas que ele me fazia não eram somente por minha causa, para saber como eu lidara com a doença. Eram perguntas do interesse dele mesmo, Eric.

Escrevi um romance em que coloquei a história do tratamento ficcionalmente. Em Campo de Estrelas, Eric aparece com o nome de Roger (na verdade, seu nome do meio). Fui visitá-lo no hospital e levei o livro. Eric estava na cama. De ótimo humor. Dali, ele despachava assuntos da associação dos urologistas, que presidia. Mesmo da cama, comandava tudo: seu tratamento, os enfermeiros, seu consultório.

Li para Eric, ao lado da cama, os trechos do romance em que ele aparecia. Primeiro ele fez uma queixa: "Por que você não colocou meu nome de verdade?". (Mais tarde, eu saberia que esse romance já foi muito lido para pacientes internados em hospitais). E eu também fiz uma queixa.

- Por quê você não me contou que estava doente?

Ele disse então que tinha descoberto a doença tarde demais e não queria viver sob o seu signo: os outros olhando para ele como doente. Queria ter uma vida normal, o mais que pudesse. Perguntei também por que ele, sabendo que tinha pouco tempo, trabalhava tanto, e não tinha usado seu dinheiro para viajar, ficar mais com a família ou fazer outra coisa qualquer. Ele me respondeu com uma pergunta.

- Se você soubesse que tem pouco tempo de vida, faria o quê?

Não precisei pensar muito.

- Acho que continuaria escrevendo. O mais que pudesse.

Ele falou, mas eu já sabia o que iria dizer.

- Então. Fiz o máximo o que sempre quis fazer.

Fui embora pesaroso. Foi a última vez em que o vi. Ao me despedir, eu o agradeci. E disse, apontando o livro, com um pouco de raiva:

- Vocês médicos não sabem nada. Eu sou o único que dá a vida eterna.

Eric morreu em 2009 e sua presença ainda não está só nos livros, mas em todas as pessoas que ajudou, seus familiares, amigos e em mim, que ainda estou por aqui. Com frequência penso nele e confiro se estou usando bem o tempo que me resta. É doloroso perder um grande homem e, posso dizer, um inesperado amigo. Acho que devo ainda escrever uma continuação de Campo de Estrelas e contar o resto da história. Afinal, é o que eu faço e farei, como ele, até não poder mais.

E você?  O que você faria se soubesse que tem pouco tempo?

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Uma razão de viver

"Pensei que você iria achar tudo muito sem graça", diz ela, enquanto repousa os pés cansados no meu colo, dentro de um estudio em Londres, com uma parede de vidro para um jardim à moda inglesa: o backyard longo, com árvores que parecem pender de algum quadro imoldurável, e uma igreja de tijolos escuros que já encampou um dia rezas de religiosos medievais.

Fala não porque duvida, ou não me conhece. Fala justamente porque não é verdade: gosta de provocar, quer que eu diga o que ela já sabe.

Tem os olhos vermelhos, cansados da semana quase sem dormir; hoje madrugou em Antuérpia e termina o dia em Londres; conheceu e almoçou com um rei e acabou o dia num proletário trem de subúrbio; andou de roda-gigante, entrou pela primeira vez num avião a hélice, passeou comigo por uma "catedral" que não é igreja, e sim uma estação de trem. Ganhou bombons, um guarda-chuva branco e muitos sorrisos de despedida dos amigos que fez com o encanto imediato dos meteoros. Assim cansada, fez questão de carregar como sempre a bagagem pelo labirinto subterrâneo do metrô londrino, como gosta de fazer, dizendo sempre: "sou muito forte".

Nós dois nesta casa temporária onde há pouco espaço para algo além de nós dois: sim, ela trabalhou a semana inteira, quase sem dormir, quase sem me ver, apesar de eu estar ao seu lado o tempo todo. E assim, quase invisível, eu não poderia achar a vida sem graça, pois a graça está justamente nela.

Eu a vi iluminar homens sisudos e assuntos áridos, emprestar brilho à festa de um rei sem fama e ornar com feminina beleza os salões ricamente decorados da cidade dos diamantes. Ela tem aquele sorriso para cada um; a palavra amiga e a modéstia de quem é elegante em qualquer lugar. No salão dos reis, comeu zabaione com cerveja, riu um pouco tonta, contou histórias e desceu as escadarias monumentais, deixando atrás a desolação dos palácios, que dela sentirão falta e perderão o sentido pelos próximos trezentos anos.

Vi tudo, invisível, mas feliz. Para mim, tive muito. A tarde em que festejamos o fim do seminário em Londres; fomos para casa a pé; atravessamos o Hyde Park, caminhamos toda a Oxford Street e comemos num restaurante turco, com cerveja turca, e risos transcontinentais. Ela ao fim de tudo, com trabalho extra que apareceu na hora errada, e ainda assim sorriu, brincou, dançou diante da lareira com a echarpe negra. Criança, adolescente, mulher.

Ela sabe fazer todos felizes: eu e os outros. E mais a mim, que já fui tão difícil de contentar, e hoje me dobro diante dela, observando: diligente, concentrada, atenciosa, comedida ao falar, como se a radiação que lhe deu a natureza pedisse sua mansidão como um fator de equilíbrio. Ela poderia ser cheia de exigências e certezas e sentenças, mas fala quando é a hora, pergunta, escreve - o que pensam e dizem os outros. Ela, que poderia ter tudo, ou o que quisesse, onde quisesse.

Por fazer tanto por todos, e por mim, ela que já me acompanhou discreta e prestativamente em outras tantas viagens a trabalho; por ser comigo o que ela é com todos, generosa e pronta, com alguns privilégios mais, eu posso experimentar como é estar do outro lado com prazer. Posso fazer por ela o que ela faz por mim.

Estar em um lugar apenas como o companheiro; saber dela, ela que sabe tudo de mim: quando estou ou não triste, o quanto eu gosto, o quanto eu sinto. Incluindo saber que estou aqui assim como vivo com ela, de boa fé, não porque é Londres, não porque esse é o único tempo que temos, mas porque é ela que me faz alegre, que me faz sorrir, me faz viver.




sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Moisés é brasileiro

No final de 2002, entreguei ao então editor da Siciliano, Pedro Paulo Sena Madureira, os originais de um romance que me custara um ano de vida, entre pesquisar e escrever, com um título tão ousado quanto o assunto: O Homem que Falava com Deus, uma versão mais contemporânea da história biblica de Moisés e Josué, transformada praticamente num thriller.

Pedro Paulo leu, me chamou ao seu apartamento cheio de castiçais de cristal, e na sua poltrona acolchoada, tendo aos pés seus cachorrinhos Daschshund, sentenciou: "ninguém acredita num autor brasileiro escrevendo um romance sobre um assunto que não seja do Brasil", disse ele. "Mas é um grande romance, e um livro seu: e, por isso, eu vou publicar."

O Homem que Falava com Deus saiu em março de 2003; na noite de autógrafos, três semanas depois de estar nas livrarias, a primeira edição se encontrava esgotada. Na mesma noite, os editores da Siciliano avisavam que já estavam rodando uma segunda edição. Que também vendeu em menos de um mês.

De certa maneira eu contrariava as expectativas do próprio Pedro paulo. Ele já tivera uma surpresa com meu primeiro romance, Filhos da Terra, de 1998. Na época, eu levara um livro sobre moda, de Fernando de Barros, com quem eu trabalhava em parceria, e era um best seller, assim como o meu romance sobre a imigração italiana. Pedro Paulo ficou com os dois, mas esperava muito menos do romance que do livro de moda. No final, o livro de Barros ficou aquém do ele imaginava. E Filhos da Terra vendeu tão bem que ganharia em 2001 uma segunda edição.

Com O Homem que Falava com Deus, Pedro Paulo teve sua segunda surpresa: ganhou dinheiro com minha ficção, mais uma vez. Satisfeito com o resultado, preferiu fechar aquela conta no azul, sem arriscar ir além, e não seguiu reimprindo o romance: preferiu passá-lo para a coluna de lucros do ano. Depois de apenas dois meses nas livrarias, O Homem que Falava com Deus encontrava-se esgotado. Hoje sua versão impressa é uma verdadeira raridade, em sebos aqui e ali. Agora, há também a versão digital, com o selo Copacabana.

Conto essa história para dizer como o mundo dá voltas. No passado, ninguém imaginava um autor brasileiro reescrevendo uma história da Bíblia. Hoje, um dos maiores sucessos da TV no horário nobre foi a novela Dez Mandamentos, que proporcionou inclusive o fvilme que se enconra em cartaz nos cinemas e o lançamento de um livro homônimo, baseado no folhetim. Graças à igreja Universal, Moisés está na moda.

O Homem que Falava com Deus conta, em ritmo de aventura, como Moisés descobriu sua origem hebreia, levado por uma história de amor - ou a mão secreta de Deus. Em tudo cabe dupla interpretação, da mesma forma que não vemos, na vida real, se o que acontece é obra do acaso, do destino, ou de alguma força divina. Depende de como enxergamos as coisas. Essa é a diferença entre a literatura moderna e a Bíblia original. O leitor pode escolher no que acreditar.

Gostamos de dizer por aqui que Deus é brasileiro. Podemos dizer agora que Moisés também é. O fascínio que o personagem exerce, histórico e universal, encontrou seu momento no mercado. É uma boa oportunidade para mostrar que brasileiros, podem, sim, escrever sobre o que quiserem. Daqui e de qualquer lugar.

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Mais romancista que repórter: meu placar no skoob



Roberto Civita, falecido dono da editora Abril, onde trabalhei muitos anos, certa vez encontrou o banqueiro Armando Conde, do BCN, que lhe disse estar em contato comigo, para que eu pudesse ajudá-lo a escrever seu livro de memórias. E perguntou o qeu Civita achava sobre mim.  "Péssimo jornalista", disse Roberto, com seu ar sempre blasé. "Mas é um grande contador de histórias..."

Fui pesquisar no Skoob meu placar junto aos leitores, para saber como avaliaram meus livros. E verifiquei, agora em números, que de fato sou mais romancista que repórter - os meus romances são mais bem avaliados que os livros de não ficção.

O primeiro da lista é Filhos da Terra, meu primeiro romance, que com 20 avaliações recebeu 5 estrelas de 60% dos leitores. Entre quatro e cinco estrelas, são 80% de aprovação.

No mesmo plano está O Homem que Falava com Deus, com 14 avaliações, que recebeu cinco estrelas de 64% dos leitores. Com 14% de 4 estrelas, o índice vai a 78% de aprovação.

Amor e Tempestade, meu romance mais recente, publicado originalmente pela Objetiva/Suma de Letras, tem 77% de aprovação, mas quase o mesmo número de avaliações de quatro e cinco estrelas (33% e 38%, respectivamente).

Os livros de não ficção não são tão festejados, mas também estão muito bem avaliados. O Sonho Brasileiro, biografia de Rolim Amaro, fundador da TAM, tem 70% de aprovação, entre 4 e 5 estrelas, por 25 avaliadores. A Conquista do Brasil é muito recente e recebeu por enquanto apenas 2 avaliações: uma de quatro e outra de cinco estrelas. Promete.

Se você já leu alguns desses livros, vá ao Skoob e vote! O autor aqui agradece o interesse. Isso nos ajuda a continuar trabalhando. O leitor é que manda! Meu próximo livro, por sinal, será um romance. Assim como Conquista do Brasil, será lançado pela editora Planeta.

http://www.amazon.com/Filhos-Terra-Portuguese-Thales-Guaracy-ebook/dp/B00EDXV2UW/ref=sr_1_2?ie=UTF8&qid=1439582147&sr=8-2&keywords=filhos+da+terra

terça-feira, 26 de maio de 2015

O médico e o escritor: uma história do lançamento de A Conquista do Brasil

Lançar um livro dá um certo nervoso, mas eu sempre tive experiências maravilhosas nessas noites de festa, que me lembram do motivo pelo qual eu escrevo, e a verdadeira natureza da conexão que fazemos com as pessoas.

Quando lancei Amor e tempestade, em 2009, apareceu uma moça trazendo um exemplar de O Homem Que Falava com Deus, um romance de 2003. "Mas o livro não é esse", eu disse. Ela respondeu que sabia, claro, mas pedia que eu autografasse aquele. "Queria te mostrar isso." Abriu o livro, folheou-o na minha frente: e não havia uma única página que não estivesse cheia de linhas sublinhadas ou de comentários nas margens. Estava tudo rabiscado. "Li o teu livro pelo menos 20 vezes", ela disse, para meu espanto. "Marquei cada frase." Reparei, porém, que as últimas vinte páginas estavam completamente limpas. "Não li o final", disse ela. Diante do meu espanto, explicou: "É que eu não quero que ele acabe."

Livraria da Vila, Shopping Higienópolis, quarta feira passada, 20 de maio de 2015.  Lançamento de A Conquista do Brasil. Entre parentes, amigos e leitores, surge na minha frente à mesa de autógrafos uma colega de faculdade a quem não via há trinta anos, o que já seria uma maravilha. Ela, porém, coloca na minha frente um exemplar de Campo de Estrelas.

"Mas esse não é o livro", digo eu.

"Eu sei", ela responde. "Mas eu queria que você autografasse esse aqui, para o meu marido." E disse o nome dele.

Ela explicou então que o marido estivera internado com câncer no pâncreas. E que lera para ele o meu romance no hospital. Campo de estrelas é baseado na história do meu próprio tratamento de um câncer de bexiga, mesclado à história meio mágica de uma viagem que fiz quando adolescente com meu pai, Alipio. Presente e passado se fundem para dar coragem diante da maior das angústias. "Esse livro foi muito importante para ele", disse. "Ajudou-o a sair do hospital."

Impressionado, perguntei onde estava o marido dela. "Está por aqui mesmo", ela disse. Não havia tido, porém, coragem de vir com ela me pedir autógrafo pessoalmente. Disse que podia chamá-lo, seria um prazer conhecê-lo. Atendi mais uma ou duas pessoas e ela voltou, desta vez com o marido. Levantei e fui falar com eles.

"Eu só vim para te agradecer", ele disse. "Seu livro me ajudou muito, você não faz ideia de como é importante para mim. No hospital, cada dia eu queria viver até o dia seguinte, para saber como ele continuava."

Disse também que conhecia o médico que inspirava o personagem do livro: Eric Roger, cirurgião do Einstein, que me operou e tratou. "Mas você faz o quê?" - perguntei. "Eu sou médico", disse ele.

Resolvi também fazer uma confissão. Quando Eric revelou que estava com câncer terminal, fato que escondeu por muitos anos, e ficou meses internado no Einstein, eu fui lá visitá-lo. E também li Campo de Estrelas para Eric, sentado ao lado da cama. 

Achei que seria bom aliviar a emoção do momento. 

"Acho que esse é mesmo um livro para ser lido em hospitais, como a revista Caras no cabelereiro", disse.

Rimos. Mas o abraço que aquele homem me deu na despedida trouxe a certeza de que, se não tivesse servido para nada mais, todo o meu esforço escrevendo livros estaria recompensado ali.

Lançamentos trazem surpresas. E dão energia para continuar. Meu próximo livro será um romance. Vamos ver o que acontece em fevereiro de 2016.

http://www.saraiva.com.br/campo-de-estrelas-5246424.html
http://www.saraiva.com.br/o-homem-que-falava-com-deus-4404472.html












sábado, 2 de maio de 2015

O esforço e o sentido de A Conquista do Brasil

Amigos me perguntam quanto tempo levou para escrever A Conquista do Brasil, ou quanto tempo se leva para escrever um livro. Para mim, é uma resposta difícil de dar: o livro começa a surgir com o interesse do autor, às vezes de forma difusa e muito tempo antes de se concretizar. No caso de A Conquista do Brasil, é resultado de muitos anos de interesse e trabalho, mesmo na época em que eu mesmo nem sabia por que juntava tanta coisa sobre o assunto.

Hoje eu sei: minha vontade de escrever um livro de história nada tem a ver com o passado, e sim com as preocupações com o presente. Elas são mais candentes hoje, com  a polarização política, a corrupção monstruosa e as ameaças veladas ao processo democrático que duramente minha geração ajudou a construir. Tudo isso nos faz pensar no que há de errado com o Brasil, em quem somos nós, brasileiros, e como podemos melhorar como Nação. E as respostas vêm lá de trás.

Entender as raízes mais antigas e profundas dos nossos problemas, estudar o começo, onde está o nosso DNA, é o caminho para mudar e melhorar a realidade de hoje. Como na psicanálise, para entender o que somos é preciso voltar à primeira infância. Fazer uma regressão.

O Brasil é um país que inventou muita coisa sobre si mesmo: o país do carnaval, do samba, do futebol, das mulatas, do Pão de Açúcar, do bom baiano, do brasileiro cordial. Com isso fica difícil explicar, ou mais fácil de acomodar, o país da corrupção, do abismo social, do racismo camuflado, da violência urbana, da direita truculenta e da esquerda hidrófoba.

Compreender o Brasil antigo é um esforço que exige muitos ângulos: o jornalístico, da pesquisa e informação bem apurada; o sociológico, para entender a formação do povo; o antropológico, que ajuda a compreender sem preconceito os índios e seu papel em todo o processo. A Conquista do Brasil deve muito à minha formação em Ciências Sociais, especialmente antropologia política.

Livros de etnólogos pouco conhecidos do público, como Pierre Clastres e Helène Clastres, me ajudaram a compreender o mecanismo social e político das sociedades ditas primitivas do Brasil, assim como a religião e sua influência psico-social, especialmente nas tribos do tronco tupi-guarani. A antropologia, no sentido geral, ajuda também a ver as coisas como eram, sem preconceitos modernos, seja na compreensão do canibalismo indígena, parte de um sistema social, seja na mentalidade dos primeiros portugueses, incluindo os jesuítas.

Ajudaram também as editoras brasileiras, especialmente a Itatiaia, que publicou há muito tempo as obras completas dos primeiros viajantes e historiadores brasileiros, e que eu comecei a colecionar, no princípio sem outro propósito além de querer saber mais.

Mais recentemente, uma ajuda inestimável veio da iniciativa do espólio do empresário José Mindlin, que disponibilizou obras raras de sua coleção pessoal, gratuitamente, na internet. E a própria rede social, que facilitou acesso a documentos que antes demandavam viajar a Portugal para serem consultados, razão pela qual a história que aprendemos nos bancos escolares até agora ainda era baseada no trabalho de pesquisadores do final do século XIX e começo do século XX, como Capistrano de Abreu.

Por último, e não menos importante, está uma certa experiência de vida. Passar alguns dias entre os índios do Xingu, por exemplo, me deu exata noção de como é para um ocidental estar no meio deles, em circunstâncias não muito diferentes das que tiveram pela frente homens como José de Anchieta e João Ramalho. Devo essa experiência à iniciativa do amigo, empresário e aventureiro James Lynch. Mesmo a enrascada em que nos metemos, sendo submetidos a um perigoso tribunal indígena, me deu melhor noção do que é encarar o risco de vida numa aldeia diante dos índios em seu próprio meio, como aconteceu com Hans Staden e o próprio Anchieta, que em sua cartas narra ter passado por julgamento semelhante.

Escrever, portanto, é a junção de muita coisa. Um livro é produto de um enorme esforço, onde colocamos tudo o que sabemos, num esforço físico e intelectual exaustivo. Quando terminamos, estamos esgotados, e isso é só o começo, porque um livro nada é, se não tiver leitores. Seja qual for o resultado, porém, para mim terá valido a pena.

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

As fotos perdidas de uma grande aventura

Em 2005, publiquei pela editora Globo o romance Campo de Estrelas, em que narro de forma ficcionada uma viagem que fiz com meu pai Alipio a Machu Picchu, por terra, percorrendo o legendário caminho que incluía o Trem da Morte e outras aventuras. Eu tinha dezesseis anos de idade e as memórias dessa viagem substituíram outra viagem que, no livro, planejávamos fazer - o caminho de Santiago de Compostela.

Para os leitores desse romance, que tem muitos aficcionados, uma revelação, surpresa também para mim. No romance, como aconteceu de fato, as mochilas dos personagem são roubadas no caminho de volta, no quarto do hotel em Santa Cruz de la Sierra. Com elas, vão-se também os rolos de filme que, além dos registros de viagem, confirmariam a existência do incrível personagem, misto de mendigo e messias, trajado com trapos e um capacete de desbravador espanhol, apelidado de Homem de Lata. (O Homem de Lata existiu. Nós o vimos uma única vez, num bar em La Paz, onde entrou com um rei).

Remexendo nos meus arquivos de imagem, copiadas de algum antigo CD, junto com outro material, surgiram quatro fotos dessa viagem. Creio que estavam no rolo da câmera fotográfica (naquele tempo um acetato), que meu pai levava consigo, enquanto o ladrão surrupiava nossas coisas no hotel. Isso deve ser sido copiado com outras fotos e ficou perdido no meu arquivo virtual.



Todas as imagens são de um trecho da viagem, justamente aquele em que o taxista nos abandonou em meio ao deserto do altiplano, com outras duas brasileiras que diviam conosco o carro e o custo do trajeto. O homem receava ser interceptado por grevistas que segundo se dizia tinham fechado a estrada, e decidiu voltar a La Paz, rompendo o combinado, e levando o dinheiro, pago adiantado.

Caminhamos todo o dia no deserto, no clima incômodo do frio andino, porém sob o sol implacável, ainda mais forte por conta do ar rarefeito. Salvos por um caminhão do exército em algum ponto entre La Paz e a fronteira com o Peru, atravessamos o lago Titicaca e alcançamos, à noite, a pequena, salvadora e fanstasmagórica cidade de Copacabana.

Numa das fotos, feita por meu pai, estou eu com as brasileiras, depois de descer do táxi, com as bagagens ao chão. Eu e meu pai preferimos encarar o deserto a, como elas, voltar a La Paz, onde não havia condução, por causa da greve. Na Bolívia, ainda mais naquele tempo, se avançava como possível, porque não havia o que chamamos de normalidade.



Nas outras fotos, o belo, árido e implacável cenário do altiplano, com detalhes por vezes bizarros. O pequeno pueblo é aquele em que uma chola nos salvou da fome, oferecendo um pedaço de queijo de cabra impregnado de terra que permaneceu na memória gastronômica como a melhor coisa que já comi, por pior, mais suja e nauseante que de fato fosse.



Para quem não leu o romance, ele pode ser encontrado em formato digital, no link abaixo. A versão impressa pode ser encontrada nos sites das livrarias, mas, ah, vai ficando tão rara quanto as fotos.

http://www.amazon.com.br/Campo-de-Estrelas-ebook/dp/B00EDXV2S4/ref=sr_1_2?s=digital-text&ie=UTF8&qid=1376421275&sr=1-2&keywords=thales+guaracy

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Escreva Bem, Pense Melhor em setembro na Vila

O curso Escreva Bem, Pense Melhor, que dei em janeiro na Casa do Saber, estará de volta em setembro, agora no auditório da Livraria da Vila do Shopping Pátio Higienópolis, em São Paulo.

Serão 6 encontros, às terças e quintas-feiras, das 20:00 às 21:30, a partir do dia 17 de setembro. As inscrições podem ser feitas em qualquer Loja da Vila. Ou pelo e-mail inscricoes@livrariadavila.com.br.Custará 480 reais por pessoa.

O curso procura oferecer uma maior capacitação para a confecção de textos gramaticalmente corretos, interessantes e importantes pelo seu conteúdo. Apresenta também mecanismos para a reflexão, o exercício da criatividade e a construção de um estilo pessoal, que podem ser úteis tanto para a redação quanto para a vida pessoal e profissional.

Mais do que treinar a escrita, o curso procura desenvolver o pensamento organizado, que leva a uma capacidade maior de expressão, com clareza, objetividade, persuasão e criatividade.


O programa:


Dia 17: Como escrever bem: clareza, interesse, relevância. Abertura, desenvolvimento e fecho; encadeamento e lógica.

Dia 19: Normas estilísticas: texto e linguagem falada; estilo e individualidade. Regras de estilo.

Dia 24. A escrita, autoanálise e desenvolvimento pessoal: a necessidade de escrever. Escrita, emoção e autoanálise. “Inspiração”: os elementos da criação. O texto como expressão individual: diário, blog, autobiografia, memórias.

Dia 26. Estudo de caso. Identificação da ideia principal, estruturação do texto e resultado final.

Dia 1 de outubro: O texto informativo: conteúdo, informação e notícia. Credibilidade e ética. As formas literárias.

Dia 3: Comunicação corporativa: a necessidade da empresa. O autor no espelho: a relação entre a palavra e seu dono.


O curso na Casa do Saber foi ótimo, com um número bem maior de participantes do que se esperava, e uma excelente participação de todos até o final. Espero repetir!

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Na intimidade de J.R.Duran



Como editor, lanço agora Cadernos de Viagem, um belo livro que registra os diários do fotógrafo J.R.Duran, um globetrotter por conta do trabalho para revistas masculinas e de moda, além da publicidade. Duran tem, entre seus muitos talentos, o do desenho – e, por um capricho pessoal, gosta de fazer esquetes dos quartos de hotel onde se hospeda, que depois transforma em aquarelas. Com seus textos e essas imagens, Cadernos de Viagem forma não apenas um refinado guia de hotéis, como um livro de memória afetiva, observação rica sobre o mundo e permite entrar na intimidade de um artista.

Para mim, lançar este livro tem um gosto ainda mais especial. Duran é um daqueles personagens que encontramos várias vezes ao longo da vida, em situações que são também um retrato de cada tempo e de nós mesmos, ilustrados hoje na aquarela da memória. A primeira vez em que ouvi falar dele foi no início da década de 1980, quando Duran tinha um estúdio na Avenida Pacaembu e já era o fotógrafo mais quente da publicidade no Brasil. Eu era um universitário durango, que tomava o Vila Nilo lotado para atravessar a cidade pendurado de fora do ônibus, de modo a pular no ponto final sem passar pela catraca e pagar pela passagem. Fazia duas faculdades, Jornalismo de manhã e Ciências Sociais à tarde, ambas na USP, e precisava de dinheiro, mas não tinha tempo para trabalhar. Apelei, na época, para meu único capital: a juventude. E tentei trabalhar como figurante de comerciais de televisão e modelo publicitário. Um tipo de bico que, quando eu dava sorte, me permitia com um dia de trabalho passar o restante do mês somente estudando.

Não era fácil, claro. Eu era um Zé Ninguém. O agente me chamava ao telefone para fazer testes, eu entrava na fila e depois de fazer alguma pose aguardava para saber se o trabalho era meu – uma chance em 100. Ir ao estúdio de Duran para um teste foi um dos meus primeiros chamados. Fiquei numa fila tão grande que dobrava o quarteirão. Sentado no meio-fio, depois de meia hora, desisti – nem cheguei a entrar na casa. Duran, para mim, ficou então como uma espécie de símbolo de pessoa inatingível, a estrela dentro de uma fábrica onde gente como eu, pelo menos naquela época, nem conseguia passar da porta.

Eu era persistente, e comecei a arrumar alguns trabalhos. O primeiro foi o de pedestre, uma figuração num comercial da Caixa Econômica, em que um sujeito recebia a notícia de que tinha ganho na Loteria e saía dando cambalhotas de ginasta pela rua. Depois fiz comercial da cueca Zorba, fui passageiro do primeiro looping do Playcenter, da cera Grand Prix, sorri diante da câmera dizendo “menta!” para o dentifrício da Colgate, o que me rendeu muita gozação. Até fazer uma série de comerciais de eletrodomésticos para a Brastemp, produzido pela já falecida Denison Propaganda, na qual eu faria o papel de namorado da filha de um sujeito cujo reino doméstico girava em torno do fogão, da geladeira e da máquina de lavar.

Interpretava, nos comerciais, o jovem Caco, namorado da personagem Luciana, feito por Sandra Annenberg, essa mesma que hoje é apresentadora de telejornal, e na época ainda tentava decolar na carreira de atriz. Lembro de uma bela tarde que passei com ela na casa dos Braga, construída dentro do estúdio, fazendo um filme entre borrifos de fumaça que nos deixavam às cegas (o diretor, Clemente, acreditava que a técnica dava mais brilho a tudo, assim como enchera a casa de plantas - homenagem, ironizava, aos filmes de Walter Hugo Khouri). O humor do episódio consistia em derramar uma balde d'água sobre a minha cabeça quando eu abria uma porta (estripulia do irmãozinho da namorada). E o pai da moça me apanhava em casa sem roupa, u melhor, com um roupão que levava as iniciais dele. Naquele dia, perdi a conta de quantos baldes d' água levei na cabeça. Atrás da casa cenográfica, uma passadeira me esperava depois de cada caldo. Tratava de passar a muda de roupa para que eu pudesse tomar um banho atrás do outro até a cena ficar "perfeita".

Além do filme na TV, que me garantia um ano de contrato de exclusividade e com o qual eu poderia terminar a universidade sem precisar trabalhar, fui enviado para fazer uma foto de revista. Passei duas horas dentro de um estúdio, com Sandra virando e desvirando no meu colo, enquanto eu me maravilhava com outra coisa. O fotógrafo era J.R. Duran! É verdade que eu mal o vi: depois que tudo estava preparado – o cenário, a luz, nós – ele entrou, mal nos cumprimentou, fotografou dando ordens no seu português com sotaque catalão, áspero e telegráfico, e foi embora. Porém, algo importante mudara. Ele ainda parecia um sujeito inacessível, mas daquela vez eu estava do lado de dentro do estúdio.


Tão logo me formei, já com o contrato encerrado, me dediquei exclusivamente ao jornalismo, e foi como repórter, muitos anos depois, que encontrei Duran pela segunda vez. Ele passara um período em Nova York e retornava ao Brasil com um livro fotográfico da cidade. Editor e colunista da revista VIP, fui incumbido de escrever sobre ele. Mais uma porta se abriu: dessa vez, a de sua casa. Recém-chegado a São Paulo, Duran estava morando em um apartamento na Av. São Luiz, com uma enorme mesa onde esparramou suas fotos e falou sobre sua experiência nos Estados Unidos. Escrevi sobre o livro e aquele momento de Duran, refletido nas fotos em branco e preto na megalópole que sabe exilar estrangeiros como ninguém – e dei ao texto o titulo de “Passageiro da solidão”. Em Nova York, Duran havia descoberto algo: cidadão do mundo, ele era, antes de mais nada, brasileiro.

Como editor de revistas de estilo, a começar pela própria VIP, voltei a falar com Duran muitas vezes depois, dessa vez na condição de contratante – ele faria para mim diversas reportagens de moda. Ficamos amigos. Em uma de nossas conversas, ele me mostrou seus apontamentos de viagem – uns caderninhos horizontais, onde rafiava os quartos de hotel, cheios de anotações em sua letra muito pessoal, pois Duran só escreve com capitulares. Eu achava aquilo coisa de outro tempo, o tempo maravilhoso em que os antigos viajantes não tinham, justamente, a máquina fotográfica e dependiam de outras habilidades para fazer retratos. Durante anos, insisti para que ele me cedesse aquele material, que eu poderia publicar de alguma forma em revista. Aquilo, porém, era feito de substância muito pessoal. Além dos hotéis e dos lugares aonde ia, as anotações eram pensamentos, seus assuntos íntimos, ou contavam sua convivência com celebridades ou as mulheres que ele literalmente despia a trabalho.

Quando me tornei editor de livros, há três anos, e precisava de conteúdo, uma das primeiras ideias que tive foi a de procurar J.R.Duran. Fui ao seu estúdio, na Vila Madalena, no qual ele usa como escritório uma sala ampla, decorada com objetos que recolhe de viagem, de um cavaquinho a um crânio humano, passando por livros de todo tipo - de romances policiais B, que ele adora (e também escreve) a livros de arte. Duran mostrou resistência, como sempre. Dessa vez, seu receio era outro: a inveja. Muita gente acha que Duran tem o melhor emprego do mundo: tira a roupa das mulheres, ganha dinheiro, viaja e vive à larga. Só faltava agora querer mostrar que também escreve bem, e mais: pinta. Quanta presunção. "Pra compensar, então, a gente espalha que você tem pinto pequeno!", sugeri. Ele riu, claro, e assim eu o convenci afinal a publicar os seus cadernos.

No lugar do amigo, passei a conviver novamente com o profissional meticuloso. Assim que concordou com a ideia, Duran se entregou ao trabalho da única forma que ele sabe fazer. Durante dois anos, foi recolhendo cadernos perdidos, e trabalhou para terminar aqueles desenhos que ainda não tinham sido pintados. Passou todo o texto anotado a mão para computador e o revisou. Optou corajosamente por manter as anotações pessoais e as referências a pessoas verdadeiras, identificadas no livro apenas pelas iniciais, para não causar eventuais constrangimentos. E, como profissional das artes visuais, acompanhou todo o processo de produção do livro, com seu detalhismo meio rabugento e questionador, ao ponto do irritante. Porém, fez com que eu entendesse a razão pela qual ele é, há tanto tempo, o maior fotógrafo do Brasil: a sensibilidade artística aliada a um perfeccionismo tão obsessivo que mereceria umas sessões de psicanálise.

O resultado está aí: um livro impecável, único, de um talento brasileiro. E um editor feliz por chegar a mais esta etapa da vida com outro capital, além da juventude (ainda): o tempo e os inesperados companheiros de jornada que ele traz.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Como começa um escritor


Agora, como autor, e também como editor, vejo todos aqueles que ingressam com seus originais no Prêmio Benvirá de Literatura, muitos deles com o mesmo sonho dos meus 17 anos, quando vivia fascinado com as histórias de meu avô materno, que eu achava dignas de um romance, e alimentava a ideia de viver de escrever. Fico satisfeito de poder, com o incentivo do prêmio, ajudar a dar uma oportunidade a gente como eu de realizar esse sonho, encontrar talvez uma profissão e, sobretudo, tendo sucesso financeiro ou não, ser feliz fazendo algo pessoalmente tão importante.

Muita gente que tem me encontrado pede um conselho. Nenhum escritor dá conselhos a outro, e editores também não o fazem, porque o jeito em que se começa nesse negócio é tão individual quanto cada ser humano. É difícil encontrar alguém que te ajude de fato ou te aponte um bom caminho. Eu mesmo estou nisso meio por obra do acaso, algo tão difícil quanto ganhar um prêmio literário.

Pensando bem, minto: eu tive alguém que me ajudou, ou que eu poderia chamar de professor, embora tenha mais me desencaminhado que encaminhado para alguma coisa. Falo de Walter George Durst, dramaturgo celebrizado por suas adaptações para TV de grandes romances brasileiros, como Grande Sertão: Veredas, e a primeira versão de Gabriela, Cravo e Canela, com Sônia Braga no papel principal - um grande sucesso na época.

Durst era pai de um colega de classe, Marcelo Durst, com quem eu cursava por coincidência duas faculdades, a de Comunicação e a de Ciências Sociais, ambas na USP. Eu era um estudante duro e não perdia oportunidade de filar a bóia na casa de Durst, pai, não apenas para escapar do bandejão desestimulante do Crusp, o restaurante da Universidade, como para conviver com aquele homem que admiravelmente vivia somente de escrever.

Aos meus olhos ele levava não a vida que pediu a Deus, mas a vida que Deus pediu. Tinha uma bela casa numa rua arborizada, na vizinhança da USP, e trabalhava numa edícula recheada de livros e pôsteres de filmes brasileiros, alguns deles estrelados por sua mulher, Barbara Fazio, na época já uma senhora, ser deixar de ser bela. Vivendo entre livros, e cheio de tempo livre para amadurecer as ideias, Durst só tinha um compromisso, que era sagrado. Ia semanalmente à feira livre, não para fazer compras, mas escutar. Queria saber o que o povo estava falando, o que gostava, sentir a temperatura do que sabia ser seu público.

Naquela época, Durst era o único escritor de novelas da TV Globo que morava em São Paulo, e começou a formar um grupo de jovens autores, início de um núcleo de dramaturgia na cidade, que trabalharia para a TV Globo sob seu comando. Vínhamos conversando bastante sobre a arte de escrever, naqueles momentos após o almoço, em que o mundo parecia parar para o café. Eu me sentava com ele em sua sala de trabalho, onde havia um par de poltronas pequenas, e ali extraía dele tudo o que queria saber.

Formado na escola do cinema, Durst tinha em mente que o fundamento de qualquer obra de ficção era a criação de um conflito, essência não apenas da novela como de todo trabalho literário. Essa tensão era para ele o gerador de interesse contínuo, e não apenas momentâneo, na obra ficcional, de modo a fazer com que o espectador (ou o leitor, no caso do romance) permanecesse entretido até o desenlace.

Foi o único profissional das letras que me deu algum alento - e também conselhos. "Esse é um mercado muito pequeno, isto é, para pouca gente", dizia ele. "Mas, se você for bem, ficará rico". Naquela época, eu começara já a trabalhar como jornalista na revista Veja, onde ganhava um salário bastante razoável para alguém com pouco mais de vinte anos. E completou. "Vou te convidar para participar do núcleo de roteiristas, mas não largue seu emprego. Ainda."

O primeiro trabalho do núcleo paulista de dramaturgia da TV Globo foi uma série para as cinco da tarde - episódios de uma hora, que deveriam ter começo, meio e fim. Eram voltados para um público de mais idade, que segundo pesquisas era a maior audiência do horário. Durst pediu então a cada um uma sinopse, que mais tarde seria desenvolvida para se transformar em episódio. Cada autor entraria regularmente com um episódio inteiramente seu, numa sistema de rodízio.

Por aqueles dias, eu havia recebido na redação de Veja, dentro de um envelope meio sujo, uma longa carta de um executivo que soava em desespero. Narrava suas desventuras desde um acidente: batera o carro no veículo de um casal de velhinhos, que o ameaçara de processo e depois passara a chantageá-lo. Numa sequência kafkiana, o missivista dizia que tinha perdido em sequência o seu emprego, o dinheiro e, ao cabo, a mulher. Eu não via nenhuma reportagem a fazer com aquela história, mas achei-a de primeira mão para produzir o meu primeiro episódio da Série Brasileira.

Entreguei a sinopse a Durst, que a remeteu para avaliação da Globo no Rio de Janeiro. Chamou-me em sua casa para dar o retorno. "Olha, eles adoraram a história", disse ele. "Mas pediram para você tirar essa persona sacana dos velhinhos. Como o público é idoso, eles acham que isso pode indispor o telespectador com a série."

Protestei, claro. Se os velhinhos da história fossem bonzinhos, ela perderia completamente a graça, que estava justamente aí.

Por coincidência, naquela mesma semana, devido a uma série de mudanças nos quadros de Veja, recebi a notícia de que seria promovido a editor de assuntos nacionais da revista. Era um cargo importante, sobretudo para alguém tão jovem, e chave para a publicação. Eu cuidaria de editar todas as reportagens de alcance nacional, sobretudo da política, numa época em que o Brasil estava em plena ebulição, saindo de uma pesada crise econômica e entrando na reta para a primeira eleição presidencial em 30 anos, depois de uma angustiante e longa transição da ditadura militar.

Pensei no conselho de Durst ("não largue seu emprego"), e na frustração de, na TV, não poder escrever a história como eu desejava, mas moldado pela opinião dos executivos e seus charts do Ibope. De certa forma, mesmo tão jovem, eu partilhava da velha escola de Durst, que se valia muito mais de seus ouvidos, sua "pesquisa qualitativa" na feira de rua, de onde também vem a matéria bruta ficcional - a experiência humana, o contato pessoal, a emoção. Liguei para ele, agradeci, expliquei que com aquele convite de trabalho não poderia me dividir mais com o núcleo de dramaturgia e que tinha feito a minha opção pelo emprego.

Ele entendeu - e foi a última vez que falei com Walter George Durst, falecido há alguns anos. Muitas vezes pensei se deveria ter me arrependido dessa decisão, se não teria sido mais feliz (ou ficado rico) escrevendo para a TV. Mas a verdade é que, por muito tempo, não pensei mais em escrever ficção de qualquer espécie, dedicado como estava ao jornalismo. E voltaria a escrever ficção, novamente, por mero acaso - ou melhor, por uma indicação de outro dramaturgo, que, como nas melhores novelas, viria a ser o autor da segunda versão para a TV de Gabriela, Cravo e Canela.

Depois de Veja, trabalhei como editor de VIP, na época então um suplemento de Exame, onde dei emprego a certo dramaturgo que, depois de algumas tentativas não muito bem sucedidas, decidira voltar ao jornalismo para ganhar a vida até poder se recolocar na profissão com a qual sempre sonhara. Walcyr Carrasco, que já trabalhara em Veja, aceitou um modesto cargo de editor assistente, e escrevia reportagens de comportamento, o que ele fazia muito bem, devido à sua sensibilidade para abordar as pessoas e captar nuances - uma qualidade do jornalista que tem talento literário.

Walcyr escrevera alguns livros infantis e, quando sua editora, Maristela Petrilli, lhe pediu indicação de um autor, apontou meu nome. Levei uma hora para escrever Liberdade para todos, uma obra que, ao longo de uma década, seria adotada em muitas escolas e venderia mais de 150 mil exemplares. Era um livro singelo, mas que me despertou a vontade novamente de escrever ficção, e me ajudou a lembrar do que realmente os livros eram feitos - não de inteligência, mas de matéria emocional. E que o trabalho do ficcionista é ajudar os outros a trilhar caminhos, apresentando a si mesmo e suas experiências como uma espécie de laboratório.

Retomei o projeto de escrever o livro inspirado nas histórias de meu avô, que nunca foram além de uma transcrição de velhas fitas que eu guardava já como lembrança. Vinte anos depois, o romance finalmente tomou forma, diariamente, entre as cinco e as 9 da manhã, quando eu saía para o trabalho.

Naquela época, a mesma editora que lançara meu livro infantil incursionava na ficção adulta e me pediu os originais. tempos depois, voltou a resposta. A editora preferira me enviar o longo texto do parecerista, em que ele me chamava de "o Dostoiévski brasileiro", e acrescentava que, se vivesse no mundo contemporâneo, Dostoiévski teria seus livros recusado nas editoras, porque eram muito grandes. Por fim, recomendava que eu cortasse o texto pela metade, para que pudesse ser publicado com fins comerciais.

Aquilo, para mim, era um não - eu preferia procurar outra editora. E foi o que fiz. Junto com um livro do editor de moda Fernando de Barros, que eu ajudara como colaborador a se tornar um best seller (fazendo com ele "Elegância,", um guia de moda masculina), ofereci meu manuscrito à Siciliano. O editor, Pedro Paulo Sena Madureira, olhou-o como todo os editores - com um certo ceticismo, ou desdém. Porém, me conhecia como jornalista, e se viu obrigado a pelo menos ler algumas páginas.

Tempos depois, Pedro Paulo me anunciou que o livro seria publicado. Lera mais do que algumas páginas - bebera tudo. "Realmente o livro é grande", disse ele. "Mas o que é o seu defeito, é também sua qualidade." Surpreendentemente, o livro de Fernando de Barros venderia menos do que a editora esperava. E meu romance, do qual não se esperava nada, foi para a segunda tiragem e mais tarde para uma segunda edição. Logo eu publicaria na Siciliano meu segundo romance, O Homem Que Falava com Deus, que teria sua primeira reimpressão ainda antes da noite de autógrafos. Eu começara, dessa forma, uma carreira paralela, como sugerira Durst - até me sentir confiante o suficiente para deixar, enfim, meus empregos e viver, como vivi oito anos, apenas de escrever livros.

Hoje, Walcyr Carrasco desfruta o sucesso da segunda minissérie Gabriela. Por indicação dele, novamente, mudei-me há alguns anos para a Objetiva, quando a Siciliano foi tragada por dificuldades financeiras, junto com sua rede de livrarias. Certa vez, Walcyr me disse que era meu amigo porque sabia que eu não tinha inveja dele - algo raro entre intelectuais das letras. De fato. Eu não trocaria sequer um dos meus livros por todas as novelas de Walcyr, mesmo que não ganhasse dinheiro algum com eles.

Não é que eu desgoste das novelas de Walcyr, pelo contrário. Ele é um mestre no que faz. Só que eu, revendo minha trajetória desde as conversas com Durst, sei mais do que nunca que meu negócio é o livro. Não há maior recompensa do que escrever a sua própria história, aquilo que você quer, olhando para a rua, e não os charts dos executivos. Funciona. Descobri, como Durst, que fazendo isso a gente obtém a maior das recompensas, que é saber que a gente escreve sempre tem ressonância. Há gente que gosta, que compra, e ainda agradece por isso. O que faz de mim, dessa forma, entre todos, o mais grato.









quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Prêmio Benvirá: como se tornar um escritor de verdade


Raphael Montes é um moleque de sorte.

Há dois anos, quando abrimos o primeiro Prêmio Benvirá de Literatura, e recebemos 1932 inscrições, achamos um texto que chamava a atenção por duas razões. A primeira: era um livro policial denso, consistente, que mergulhava no universo da juventude carioca, do tipo que entretém e faz pensar, uma combinação excelente para uma obra de ficção. Selecionado entre os dez finalistas, recebeu elogios de todos os jurados, especialmente do crítico e jornalista Nelson de Oliveira. "Normalmente não gosto muito de policial, ainda mais para prêmio", disse ele, na época. "Mas gostei muito deste - eu o consideraria."

A segunda coisa que chamou a atenção foi a quilometragem do autor: Raphael, que mentia a idade, tinha apenas 19 anos. Começara a escrever Suicidas três anos antes, com somente 16.

Suicidas não ganhou, e Raphael achou que estava fora do baralho. Entregou os originais para uma pequena editora. Tinha já um contrato assinado. Quando recebeu um telefonema meu, interessado em publicar o livro pela Saraiva, selo Benvirá, mudou de ideia na hora. Conversou com o editor, desfez o contrato. "Ele entendeu", me contou, depois.

Por alguns meses, enquanto preparávamos os originais de Suicidas, eu costumava brincar na Editora que ele se tornara o autor não publicado mais famoso do Brasil. Estudante de Direito, a um semestre de completar o curso, no Facebook e aonde ia, Raphael se autointitulava "escritor". E se enfiava em cursos, seminários, até na imprensa. Foi entrevistado como "autor" pelo jornal O Globo, durante a Bienal do Rio. Foi convidado para dividir mesa de debates literários com autores de renome, já publicados por grandes editoras. Um prodígio da vontade.

Raphael deu sorte, mas também porque estava em todo lugar. Há dois anos, apareceu na minha frente em Paraty, durante a Flip, e se apresentou. Rapaz simpático, falante, acabou entrando para o grupo que estava lá reunido - os autores da Benvirá, Luis Felipe Pondé, o mexicano Enrique Krauze, a romancista argentina Pola Oloixarac, a "musa' do evento. Conviveu com os autores na intimidade, nos jantares que promovemos na casa de Benoir Gautier, um amigo querido, e conheceu por dentro o clima dos grandes eventos literários. Me pediu um conselho. E eu dei: "Forme-se e não largue seu emprego - por enquanto".

Lógico que a primeira coisa que Raphael fez, ao se ver um autor prestes a ser publicado, foi contrariar meu primeiro e único conselho: largou o emprego (na verdade, um estágio de Direito), com o pretexto de ir de novo à Flip, este ano. Talentoso, ousado, a ponto de ser meio abusado, lá estava ele de novo, no meio da massa de Paraty, com suas bermudas balançando ao redor dos cambitos de garoto. Teimoso, o "escritor".

No Rio de Janeiro, quando lancei um livro do hoje ministro da Defesa, Celso Amorim (Conversas com jovens diplomatas"), quem estava lá, na sessão de autógrafos? Raphael Montes. Queria ver o lançamento de perto, sentir, cheirar, estar com as pessoas que faziam tudo acontecer. E a conversa boa atravessou um jantar e foi parar alta madrugada na casa de seus pais, em Copacabana, onde ele nos apresentou a coleção completa das obras de Conan Doyle que é o orgulho da biblioteca em seu quarto. Depois foi abrir a adega de cachaças do pai - um colecionador do destilado, que felizmente dormia.

Raphael Montes não deixou de ser garoto. Enquanto Suicidas entrava na gráfica, ele estava na Disneylândia, fazendo poses ao lado do Mickey e do castelo da Cinderela, postados no Facebook. Ontem, em uma Saraiva do Rio de Janeiro, foi sua vez de estar sentado à mesa autografando seu romance. Estavam lá amigos, professores desde o jardim da infância, membros do Clube da Cachaça, colegas do karaokê, mestres de Direito e uma porção de gente que comprou o livro e, para sua surpresa, ele nem conhecia.

Ontem, afinal, Raphael Montes se tornou um escritor de verdade. Disse ele no Facebook que foi a melhor noite de sua vida. Espero que tenha muito disso pela frente. E que não largue seu novo emprego. Ainda.




sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Um livro curtido no tempo


A história de um romance que levou dois séculos para poder existir e sete anos para ser escrito

Não sei bem ao certo quando comecei a escrever meu primeiro romance, Filhos da Terra. Talvez tivesse começado ainda criança, quando ouvia as histórias de meu avô José.O mais certo, no entanto, é que tenha começado naquelas férias de verão, em 1983.

Eu tinha 19 anos de idade. Ainda estava fazendo duas faculdades, jornalismo e ciências sociais, e pude aproveitar uma semana inteira de férias para visitar vovô, a bordo de um Fiat 147 preto, com rodas de liga leve e volante de couro costurado, com a lataria meio carcomida pela ferrugem. Era o meu primeiro carro, comprado com o dinheiro apurado de maneira esparsa, trabalhando como modelo em comerciais de televisão.

Vovô se mudara para uma pequena chácara em Suzano, junto com minha tia Malfisa, com quem passara a viver sozinho desde a morte de minha avó, seis anos antes. Ficava a pouco mais de meia hora de carro de São Paulo, pela rodovia dos Bandeirantes. Mais dez minutos por uma estradinha vicinal, que se infiltrava sinuosamente pelo que se tornara com o tempo um vasto campo verdejante. Ali, desenhava-se o mosaico de propriedades dos pequenos agricultores, que formava o cinturão verde da metrópole, abastecedor do mercado central de frutas e verduras.

Aquela chácara era historicamente um refúgio. No final da década de 1960, minha tia a cedera a amigos que eram militantes de esquerda, para esconder-se da polícia política, durante o regime militar. Meio aposentada, foi dar aulas na escola de Suzano e mudou-se para lá, numa espécie de exílio involuntário para vovô. Como titia não se casara, ou melhor, se casara tardiamente e se separara do marido de forma meteórica, encarregara-se ela, entre os cinco filhos de vovô, de cuidar dele - já passado dos noventa anos de idade. Tia Malfisa desbastou o matagal ao redor da asa, a estrada de terra que ligava a chácara à estradinha de asfalto foi alargada e clareada, e o lugar se tornou mais aberto, embora ainda bastante retirado.

O terreno já limpo era um aclive onde tia Malfisa e vovô lutavam com suas parcas forças para que brotasse um pouco de grama e um rarefeito pomar. A casa, com o chão de cimento queimado vermelho, típico das casas de interior, uma cozinha pequena, uma sala ampla e um puxado de alvenaria recém-construído, onde ficava o novo banheiro e os dois quartos, era mobiliada com os móveis de madeira negra que outrora ocupavam a casa de vovô quando minha avó Dileta ainda vivia: a cristaleira da sala, a pesada mesa de pernas em X, as cadeiras de espaldar trabalhado e uma estante de livros, alguns dos quais eu mesmo havia dado a minha tia de presente.

O lugar preferido de encontro, contudo, era a cozinha. Fresca, refrigerada pelo vento que entrava calmamente pela janela, com o filtro de barro de onde vinha uma água cristalina, aquele era o lugar para fugir ao calor tropical, sentar, ouvir meu avô cantar, o que ele mais gostava fazer. E ouvir as histórias com que ele entremeava suas cantorias, atividade em que podia passar horas intermináveis, indiferente ao possível aborrecimento da audiência e ao desgaste do corpo e da garganta, que ele combatia a partir de certa altura com pequenas doses de pinga com limão. Escarradas desobstruidoras se seguiam, para permitir que prosseguisse no seu impávido monólogo.

Digo monólogo porque a essa altura vovô José já era quase completamente surdo, o que dificultava de saída qualquer comunicação de mão dupla. Tentara utilizar diversos aparelhos para surdez, mas nunca se ajustara a nenhum. Tia Malfisa dizia que, diferente de surdo, ele na realidade não queria escutar mais ninguém. Apenas sabia que gostávamos de ouvir suas histórias, eu, minha irmã Lara e meus primos, e começava a falar de enfiada.

Possuía memória extraordinária. Podia cantar dezenas de canções sertanejas, ou “modas”, como dizem os caipiras, sem repetir uma sequer. Além disso, dispunha de um vasto repertório de canções italianas, algumas das quais raridades que ouvira cantar ainda em criança e das quais se lembrava quase à perfeição. Era um verso engatado no outro, em porfias que podiam durar até uma hora sem parar dentro de um mesmo poema. Assim foi que aprendi histórias como as dos briganti Passanante e Il Passatore, galantes e sanguinários bandidos da antiguidade, e canções dramáticas como a de Salvador Misdea, que possui talvez o melhor começo de poema que conheço, depois do célebre “As armas e os barões assinalados” dos Lusíadas: “Canto um drama terribile e funesto, da caserna de Pisa Falcone”...)

Continuei a gravar tudo o que meu avô dissesse. Passei a visitá-lo regularmente, não só com o intuito de encontrá-lo, mas de deixar um registro vivo de tudo o que dizia, agora certo de que naquele sertão onde vivera podiam ocorrer coisas realmente extraordinárias. Tomava do meu Fiat 147 e lá ia para Suzano, com meu gravadorzinho, cuja chegada ele recebia com festejos, pois a presença da máquina era sinal de audiência garantida por algumas horas. De vez em quando, eu pedia alguma coisa, ou o dirigia para outro assunto, canção ou história, munido de um caderninho onde anotava minhas observações; esse era nosso meio de comunicação, embora não surtisse muito efeito. Na verdade, ele cantava o que lhe dava na telha, e ignorava meus esforços de pedir alguma coisa em especial. Antes de começar, apenas olhava animado para a maquineta de gravação e proferia a pergunta preparatória:

- Tá ligado?

Meu dia preferido para essas visitas era o sábado. Vovô começava a dissertar por volta das duas horas da tarde, quando terminava o almoço, e podíamos ir naquelas tertúlias sem interrupção até dez ou onze horas da noite, quando, vencidos pelo cansaço e os apelos de minha torturada tia, íamos enfim para a cama.

Daquela maneira, fui juntando um farto material. Mais do que a música, o que aumentara meu entusiasmo era a visão do mundo que se revelava pelo meu avô; suas opiniões simples mas particularíssimas sobre as pessoas e o mundo; e, sobretudo, as histórias e os personagens que ganhavam vida nas suas memórias. Aí começara a nascer o romance do velho José, embora ele mesmo nunca tivesse se interessado pelo assunto. Numa daquelas tardes, por meio do uso do caderninho rabiscado a lápis preto, comuniquei a ele que estava pensando em escrever um romance, inspirado nas histórias que me contava. E pedia seu auxílio. Ao ler o meu bilhete, contudo, vovô apenas riu.

- Está pensando em escrever um romance? – disse. – Isto está em você.

Logo terminaram as férias de verão e voltei à minha rotina de estudante. As fitas com as histórias de vovô ficaram guardadas, mudando de gaveta para gaveta, sem destino certo. Muitas vezes pensei em iniciar o tal romance que havia imaginado. Seria o relato de um homem desconhecido, mas que tinha grandes coisas a contar; um homem simples, elevado à condição de herói pelas suas atitudes e pelo ambiente épico que conseguia enxergar à sua volta durante toda a vida. Eu queria tornar aquele reles José num personagem à altura do homem que meu avô via nele mesmo, e que de certa forma todo ser humano vê em si próprio. Aos poucos, comecei a transcrever as fitas, pensando simplesmente em arrumar as histórias como ele as havia contado. Seria um relato em primeira pessoa, com as expressões e maneirismos da fala de meu avô. No entanto, aquilo não tomava corpo, e eu não sabia por quê. Era jovem demais, destreinado, e teimava que aquela tinha de ser a história de José Fiorini, contada por ele mesmo.

Nos anos que se seguiram, fiz algumas tentativas de arranjar aquele texto, pouco burilado em relação ao original. Mostrei-o a algumas pessoas, que jamais demonstraram grande entusiasmo. Por cerca de dez anos, aquilo permaneceu nas minhas gavetas, como um sonho de juventude, praticamente abandonado. Ainda mais quando meu avô veio a falecer, alguns anos depois, deitado em sua cama, numa noite em que se encontrava sozinho em casa, sem que alguém estivesse por perto para socorrê-lo. Muitas vezes pensei em como teria sido essa noite, o homem sozinho, diante da morte. E mais, diante da perspectiva do esquecimento eterno. Aquilo me deixou profundamente abalado e certo de que precisaria fazer alguma coisa para trazer aquele homem de volta à vida.

Só mais tarde comecei a refletir que o romance só começaria realmente a se transformar em livro quando as histórias reais, contadas por meu avô, começassem a entrar no terreno da imaginação. Seria um passo difícil, porque não seria mais ele a narrar a história, mas eu a conduzi-la por meio dos seus olhos. Poderia aproveitar alguns trechos, idéias, personagens herdados do relato de meu avô, mas teria que inventar a maior parte de tudo, a partir de uma teia complicada, tecida por muitos personagens. A essa altura, eu já trabalhava há dez anos como jornalista; decidi abandonar um bom emprego como editor da revista Veja para que pudesse ter mais tempo de dedicação a escrever. Antes de voltar aos meus alfarrábios e às fitas de meu avô, procurei escrever algumas histórias curtas, como um treino para o trabalho que viria a seguir. Dois anos mais se passaram, até que eu me senti enfim à altura da história que considerava realmente grande.

Então aconteceu um pequeno milagre. Tantas vezes eu já ouvira as histórias de meu avô, que sequer voltei a consultar minhas anotações. Elas haviam se incorporado a mim de tal forma que por vezes eu já nem distinguia mais o que ele havia me contado de minha própria imaginação. A narrativa corria fácil, surgiam personagens, novas tramas começava a tomar forma. Eu sabia aonde queria chegar, mas não imaginava quantos caminhos surgiriam até que todos os personagens pudessem encontrar o desfecho pretendido. O livro foi ganhando corpo. Saído do zero, em seis meses tinha mais de 100 páginas. Depois de um ano, estava quase pronto, com mais de trezentas páginas. Cansado, contudo, encerrei-o abruptamente e deixei-o dormir novamente. Tinha preguiça de encontrar aquela tarefa hercúlea outra vez pela frente; adiava-a, relutava. Retomei o trabalho somente um ano mais tarde, sem rever o início, puxando o fio onde a meada acabara, de maneira a enfrentar com fôlego o trecho final.

Quando terminei, as histórias de meu avô já eram parte diminuta do conjunto do texto. Elas ganharam cores, outras histórias e novos sentimentos nasceram. Foi só então que percebi o que meu avô queria dizer, quando afirmava que aquele livro estava dentro de mim. Filhos da Terra, que então eu chamava apenas de Iusfen, o apelido doméstico de meu avô, não era um livro do desconhecido José Fiorini. Era o meu livro, sobre um homem chamado José Fiorini - um outro contador de histórias. E era um livro sobre todas as personagens que ambos vimos de forma material ou imaginária passando pela vida, como nós próprios. Com o desejo, muito íntimo, de que nossas histórias pudessem se cristalizar, registradas no papel, e ficar na memória de todos para sempre.