Fala não porque duvida, ou não me conhece. Fala justamente porque não é verdade: gosta de provocar, quer que eu diga o que ela já sabe.
Tem os olhos vermelhos, cansados da semana quase sem dormir; hoje madrugou em Antuérpia e termina o dia em Londres; conheceu e almoçou com um rei e acabou o dia num proletário trem de subúrbio; andou de roda-gigante, entrou pela primeira vez num avião a hélice, passeou comigo por uma "catedral" que não é igreja, e sim uma estação de trem. Ganhou bombons, um guarda-chuva branco e muitos sorrisos de despedida dos amigos que fez com o encanto imediato dos meteoros. Assim cansada, fez questão de carregar como sempre a bagagem pelo labirinto subterrâneo do metrô londrino, como gosta de fazer, dizendo sempre: "sou muito forte".
Nós dois nesta casa temporária onde há pouco espaço para algo além de nós dois: sim, ela trabalhou a semana inteira, quase sem dormir, quase sem me ver, apesar de eu estar ao seu lado o tempo todo. E assim, quase invisível, eu não poderia achar a vida sem graça, pois a graça está justamente nela.
Eu a vi iluminar homens sisudos e assuntos áridos, emprestar brilho à festa de um rei sem fama e ornar com feminina beleza os salões ricamente decorados da cidade dos diamantes. Ela tem aquele sorriso para cada um; a palavra amiga e a modéstia de quem é elegante em qualquer lugar. No salão dos reis, comeu zabaione com cerveja, riu um pouco tonta, contou histórias e desceu as escadarias monumentais, deixando atrás a desolação dos palácios, que dela sentirão falta e perderão o sentido pelos próximos trezentos anos.
Vi tudo, invisível, mas feliz. Para mim, tive muito. A tarde em que festejamos o fim do seminário em Londres; fomos para casa a pé; atravessamos o Hyde Park, caminhamos toda a Oxford Street e comemos num restaurante turco, com cerveja turca, e risos transcontinentais. Ela ao fim de tudo, com trabalho extra que apareceu na hora errada, e ainda assim sorriu, brincou, dançou diante da lareira com a echarpe negra. Criança, adolescente, mulher.
Ela sabe fazer todos felizes: eu e os outros. E mais a mim, que já fui tão difícil de contentar, e hoje me dobro diante dela, observando: diligente, concentrada, atenciosa, comedida ao falar, como se a radiação que lhe deu a natureza pedisse sua mansidão como um fator de equilíbrio. Ela poderia ser cheia de exigências e certezas e sentenças, mas fala quando é a hora, pergunta, escreve - o que pensam e dizem os outros. Ela, que poderia ter tudo, ou o que quisesse, onde quisesse.
Por fazer tanto por todos, e por mim, ela que já me acompanhou discreta e prestativamente em outras tantas viagens a trabalho; por ser comigo o que ela é com todos, generosa e pronta, com alguns privilégios mais, eu posso experimentar como é estar do outro lado com prazer. Posso fazer por ela o que ela faz por mim.
Estar em um lugar apenas como o companheiro; saber dela, ela que sabe tudo de mim: quando estou ou não triste, o quanto eu gosto, o quanto eu sinto. Incluindo saber que estou aqui assim como vivo com ela, de boa fé, não porque é Londres, não porque esse é o único tempo que temos, mas porque é ela que me faz alegre, que me faz sorrir, me faz viver.
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