sexta-feira, 21 de junho de 2024

Borges e o paradoxo do amor perfeito

O argentino naturalizado canadense Alberto Mangel tinha 16 anos de idade quando conheceu, na sua Buenos Aires natal, o escritor Jorge Luis Borges. Na época, Borges já era cego: ia acompanhado de sua mãe, então com 90 anos, a uma livraria onde Alberto trabalhava, depois de sair do colégio.

A mãe de Borges lia para o filho. Quando ela se cansava, precisava que alguém mais o fizesse: podiam ser jornalistas, visitantes ou qualquer pessoa que encontrasse pela frente. Assim, Alberto passou a frequentar sua casa, à noite. Na época, Borges procurava voltar à prosa, que abandonara por julgá-la menos praticável na cegueira. Interessava-se pelos grandes épicos. Foi assim que Alberto leu para ele Henry James, Stevenson e Chersterton.

Às vezes, Borges comentava a leitura: concentrava-se em estudar a narrativa, seu ritmo, a maneira como aqueles autores tinham feito suas histórias funcionarem. Buscava o segredo da sua eternidade.

Borges morreu aos 86 anos em 1986. Telefonei para  Mangel, que morava numa vila com apenas seis casas, nas proximidades de Poitiers, na França, onde encontrou abrigo para sua biblioteca de 35 mil volumes, labirinto de conhecimento digno de um conto borgiano. Intelectual no sentido puro da palavra, autor de romances e ensaios que versavam sobre pintura, literatura e sua vida – incluindo seu tempo ao lado de Borges.

Comentei sobre uma passagem de sua obra então recém publicada no Brasil, Os Livros e os Dias, uma espécie de diário em que reúne anotações sobre seu dia a dia e romances clássicos enquanto os vai lendo. Em “A Ilha do Dr. Moreau”, rumo a Londres a bordo do trem Eurostar, Alberto prestava atenção em uma conversa inaudível entre duas senhoritas, até pescar uma única e misteriosa frase: “Ele se enrolou até se tornar uma pequena bola e morreu”. Jamais soube o que seria “ele”, ou porque “ele morreu”: peças tiradas ao acaso de um quebra-cabeça.

- Bem poderia ser um conto de Borges, não? – digo eu.

- Bem – disse ele – De certa forma, Borges está em todo lugar.

O tempo passado desde a morte de Borges mostra cada vez mais sua influência vital na literatura contemporânea – e sobre nós, mesmo de maneira inconsciente. “Ele é a figura-chave da literatura no Século XX, mais do que Kafka, Joyce ou Beckett”, me disse Alberto. 

De certa forma, eu sou a prova do que ele diz. Depois de Borges, passamos a vê-lo em todo lugar, razão pela qual ele mesmo dizia que podemos descobrir a influência literária de um autor não só em seus sucessores, como também nos seus antecessores. “Pode-se ver Borges em Machado de Assis, em Stevenson, em Cervantes”, disse Mangel.

Por trás desse mistério está a habilidade de Borges de subverter o tempo, ou conceitos, ou a maneira como passamos a ver a literatura depois dele. “Borges mostrou que não importa como o autor quer parecer a seus leitores, mas como o leitor o vê”, acrescentou Alberto. “Ele mudou a maneira como usamos os livros. Se você vê algo em um romance, ele passa a ser aquilo que você vê.”

Eu vejo Borges em Cortázar, especialmente em um conto de “Os gatos”, no qual ele narra, com minudências de um técnico, a descoberta de uma população que vive nos subterrâneos do metrô de Buenos Aires, sem nunca emergir.

Vejo a enigmática biblioteca borgiana no seu congênere que arde em chamas no best seller O Nome da Rosa, de Umberto Eco. Vejo Borges ainda no cotidiano quase irreal de Robinson Crusoe, o clássico de Daniel Defoe. 

Vejo Borges em mim mesmo, sobretudo nos meus primeiros romances. Vejo Borges em toda parte, embora ele ainda permaneça um escritor pouco conhecido, influente mas não popular. Talvez por ser leitura difícil, que obriga a gente a pensar.

Ele nunca foi nem será um best seller como Gabriel Garcia Márquez, mas seu papel é muito importante para a literatura mundial. “Borges é menos lido porque exige um esforço intelectual maior”, disse Alberto. “Isso faz uma diferença grande sobretudo nos Estados Unidos, onde o mercado se voltou para a literatura de consumo fácil, criando uma sociedade estúpida.”

Diferente de Garcia Marquez, cujo “realismo fantástico” é transformar a realidade em algo que parece inventado, a marca de Borges é fazer o contrário: fazer o inventado parecer real, por meio de uma narrativa tão minuciosa e precisa que transforma o impossível em verdade - vertendo-a em uma espécie de incomprovável erudição.

Ou, pensando de outro jeito, Borges mostra a realidade de ângulos tão novos e inesperados que ela se confunde com a fantasia, até um ponto em que não se sabe mais qual a diferença entre uma e outra. Assim, por exemplo,  ganha vida o país imaginário de “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, supostamente descoberto por Borges numa velha enciclopédia, ou os cenários e personagens do seu livro de que pessoalmente mais gosto: O Aleph.

“Borges olha para a realidade de tal ponto de vista que às vezes ela parece inacreditável”, diz Alberto. “O possível fica próximo do impossível. E a fronteira entre ambas as coisas se torna indistinguível.”

Borges é também complexo na forma, pois sua arte se desenvolve da mesma maneira na poesia e na prosa, entre as quais Alberto não faz diferença. Por isso, em nossa conversa, lamentou a ideia de um editor americano de publicar sua obra dividida em três volumes: ficção, poesia e não ficção, onde são compilados seus ensaios. 

“Para Borges, um poema pode ser apresentado como ficção e vice-versa, assim como há poemas que são ensaios”, disse-me ele. “Borges fazia isso deliberadamente para desorientar o leitor, de modo a demolir preconceitos, mudar valores e a nossa maneira de ver as coisas.”

Assim como eu, e talvez mais gente, Alberto lamentava que muito dessa capacidade inventiva e instigadora tenha se perdido na era da literatura de massa. Contudo, ela serve ainda a inspirar muitos leitores e autores, que têm Borges como poderosa referência, na literatura e na vida.

Alberto continuou a conviver com Borges até sua morte, em junho de 1986. Quando ia à França, o já octagenário escritor argentino sempre o visitava. Alberto diz que Borges era inteligente, bem humorado, malvado (quando desejava) e um tanto tristonho, resultado de uma certa solidão. Pela maior parte de sua vida, procurou uma companheira. As pessoas o admiravam, mas não o amavam, como ele mesmo afirmou, certa vez.

Acredito que o próprio Borges tinha um noção do amor que só se realiza plenamente quando não se realiza. Como no ensaio que escreveu sobre Dante e Beatrice. “Dante escreveu a Divina Comédia para a mulher que amava, mas, segundo Borges, para a literatura era necessário que Beatrice fosse embora quando eles se encontram no céu.” É o paradoxo do amor perfeito: ele só chega à perfeição na separação.

Essa visão trágica, que torce a vida dos personagens para aproximá-la do sublime, era de certa forma o modo com que Borges encarava a própria vida. Ou era a imagem da sua vida, que ele transferia para a literatura.

Um ano antes de falecer, Borges casou-se com sua secretária, Maria Kodama, uma nissei que se aproximara dele como freqüentadora de suas conferências. Pode-se dizer que afinal Borges ao menos teve, senão o amor, o único substitutivo que considerava à altura do maior sentimento humano: uma voz para, em meio à escuridão, iluminá-lo por meio da leitura.

(Texto atualizado de uma conversa publicada originalmente na revista Cult, "Borges em todo lugar")

terça-feira, 18 de junho de 2024

Ricardo Castilho: tintin

Ricardo Castilho sentou à minha frente, do outro lado da mesa de trabalho que eu dizia habitar, num edifício na marginal do rio Pinheiros onde hoje há um laboratório médico Diagnósticos da América. Na época, ele era editor de Playboy, da Editora Abril, um dos maiores especialistas em vinho da imprensa brasileira, responsável pelos célebres rankings da revista, e eu era o diretor de uma editora de publicações de estilo de vida entre as quais estava Gula, então a mais prestigiada revista de gastronomia do país.

- Gostaria que você viesse trabalhar aqui.

Castilho, que eu conhecia dos meus próprios tempos de Abril, deu risada. A Abril era quinhentas vezes maior que a editora onde eu trabalhava. Gula ser a maior revista de gastronomia do país não queria dizer grande coisa. Vendia 6 mil exemplares em banca e lutava para ter outro tanto de assinantes. Playboy chegava em certas edições a vender 1 milhão de exemplares. Ele tinha um emprego sólido, estável, num dos melhores lugares para se trabalhar, não apenas da imprensa, como do país, quem sabe do mundo. Gostava do que fazia, e de onde estava. E muito.

- Eu estou na Playboy! - ele disse.

- Eu sei. Mas vou pedir pra você pensar.

- E como você pretende me convencer?

- Só vou te fazer uma pergunta: quando aquilo que você faz vai sair na capa da tua revista?

Duas semanas depois, Castilho estava comigo, em Gula.

Saí da editora quando ela estava sendo fundida com a editora Peixes e ele, insatisfeito com a nova configuração, logo depois saiu também. Conosco, Gula tinha mudado. Rejuvenescera, criara novos serviços, vinha crescendo - tinha 16 mil assinantes. Na Peixes, queriam que voltasse ao que era antes. Castilho resolveu continuar a revista que fazíamos, mas sozinho, em outro lugar.

Juntou-se a dois outros corajosos amigos - a jornalista Mariella Lazaretti e seu marido, brilhante empreendedor, Georges Schnyder -, e eles botaram na revista que Castilho fazia, do jeito que fazíamos, o nome de Prazeres da Mesa.

Agregaram ao negócio o que já vínhamos fazendo em Gula - uma parceria com eventos que, no caso de Gula, na época se chamava Boa Mesa, evento gastronômico iniciado por Josimar Melo. E, corajosamente, Castilho e seus parceiros seguiram em frente, saindo do zero.

Vinte anos depois, posso dizer que Castilho se tornou um de meus maiores orgulhos. Gula e Playboy acabaram. Prazeres da Mesa ainda existe - e como. Ainda publicada em papel, tem hoje 361 mil seguidores no Instagram, um número que jamais imaginaríamos, quando fazíamos Gula.

Com seus parceiros, Castilho tornou-se indiscutivelmente o maior editor de gastronomia do país. O que ele fazia nunca mais deixou de ser capa.

Ele foi isso, e muito mais que isso. Era dual, risonho mas às vezes meio rabugento. Porém sempre ético e trabalhador ao extremo - disposto a colaborar, a resolver, a qualquer custo. Amava o que fazia. E tínhamos algo mais em comum: a paixão atávica pelo Palmeiras, nosso time do coração.

A notícia de que Castilho faleceu de repente esta manhã é dessas coisas que beiram o inacreditável. Esta foto que eu coloquei aí deve ser do Ricardo D'Angelo, que começou a trabalhar conosco lá atrás, em Gula, e colocou em prática o estilo e a qualidade visual que queríamos em Gula e também na revista de Castilho.

Contei uma história profissional do nascimento de um negócio no qual penso como se fosse também quase meu. Mas Castilho que fez, e fez muito mais que isso: era um grande homem, honesto e amoroso, e , para mim, um amigo indispensável. O que ele fez fica, mas sua falta me deixa indignado com a atrocidade do destino.

Prefiro pensar nele como se estivesse ainda ali, com taças a tilintar, num memorável jantar em minha casa, com um grupo de confrades, em que bebemos uma inesquecível garrafa de Montrachet e consumimos mais de um quilo de sobremesa cada um.

Ricardo: tintin.

segunda-feira, 3 de junho de 2024

Kafka 100 anos depois

 

Há 100 anos morria Kafka, num asilo para tuberculosos, aos 50 anos de idade. As cartas que escreveu para Milena Jesenská, uma jornalista casada, por quem se apaixonou pela empatia criada durante o período em que ela o traduzia do alemão para o checo, mostram bem como foram seus últimos anos. O fato de Milena não deixar o marido, contra as expectativas criadas nos encontros que a distância dificultava, traz à tona a principal característica de Kafka, tão presente na sua literatura: o desejo de amor, ou de entendimento, que para ele era o sentido do amor - sempre irrealizado, ou incompreendido, talvez impossível.

Essa impossibilidade do entendimento, ou do amor genuíno, é o que causa a estranheza do mundo kafkiano. A crueldade do mundo destrói sua inocência e seus melhores sentimentos: consome. Milena o conheceu bem; descreve Kafka como uma alma frágil que via "demônios" em toda parte.

"Kafkiano" virou sinônimo de absurdo. Mas o que é absurdo, para Kafka? Não sabemos se estranho é o mundo que ignora e atropela os sentimentos de cada um, ou se o indivíduo mais frágil que é estranho a um mundo tão duro.

Essa dúvida, presente em toda a obra, as cartas e a vida de Kafka, fez dele um dos maiores autores contemporâneos e, como Orwell, um profeta do mundo atual. Hoje o meio digital expõe a privacidade como nunca e coloca todos em comunicação permanente, mas, como ele apontou, a solidão e o sentimento de abandono e impotência nunca foram tão grandes na vida humana.

Seja diante da família indiferente de Metamorfose,  seja sob o opressivo sistema condenatório de O Processo, o ser humano de Kafka se contrapõe à desumanidade dos outros, ou do sistema, que se impõem. A necessidade de amor é tão maior quanto a sensação de incompreensão. Mas será a sua frágil alma que inventa as coisas ou o mundo é realmente impiedoso?

O solitário Kafka escrevia cartas a um amor impossível enquanto lentamente morria.  Sua obra é uma defesa do amor, da compaixão, da humanidade, e é também um alerta. Alguém que morreu sozinho e jovem hoje fala com muita gente - mas é tarde demais, para quem precisava disso, tanto, em vida.