segunda-feira, 29 de abril de 2024

Os meninos e os homens

Hoje em dia as crianças começam muito cedo a sofrer pressão pelos adultos para verem as coisas do jeito que os adultos vêem. Essa realidade é ainda mais dura nos lugares onde famílias dependem das crianças. Como no Brasil, onde elas são colocadas para pedir dinheiro na rua, ou, no caso dos meninos, para jogar futebol, transformando-se na esperança da família de sair da miséria. É uma responsabilidade muito grande.

Il Capitano: há bondade nos meninos

Vi  há pouco tempo o filme italiano Il Capitano, sobre dois meninos africanos com o sonho de migrar para a Europa e assim sustentar  suas respectivas mães e famílias. Salvar uma mulher que deixam para a morte no deserto, ou o amigo levado pela máfia para trabalhar como escravo, ou ainda os refugiados num barco prestes a afundar, são responsabilidades grandes demais para um menino, mas, como mostra o filme, é isto o que se pede dele.

Il Capitano é a comovente jornada da transformação precoce e violenta de meninos em homens. E o que se vê é ainda a beleza dos sentimentos mais puros - o que, no homem feito, mantém acesa a chama dos seus melhores sonhos.

É isto, afinal, o que é ser homem. Não se trata de sexo, como gênero, mas de um conjunto de valores que fazem os homens serem homens, segundo a perspectiva masculina. Homens são pais, irmãos, filhos, trabalhadores, arrimos de família. São amigos, leais, defensores dos fracos e da justiça, cumpridores da palavra, corajosos como os heróis que admiramos desde a infância.

Muita vezes homens sacrificam sonhos e objetivos pessoais por amor de alguém ou de uma causa. Conheço muitos homens devotados à mulher, à família, ao país, à arte, à justiça, às causas sociais  mais nobres, que colocam acima deles mesmos.

Todo homem tem em si o menino e age conforme foi criado. Fala-se muito dos abusos sofridos por mulheres, o que é real, mas pouco dos meninos que sofrem maus tratos na infância, inclusive e principalmente de mulheres, o que também é real. O abuso não é uma questão de gênero.

Se queremos melhores homens, é preciso tratar bem dos meninos. E deixar também, sob todos os aspectos, que tenham infância.

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Musk e o novo que é velho como o mundo

Elon Musk está demitindo 10% de seus funcionários. A Tesla não está vendendo seus carros elétricos como ele imaginava. Elon Musk também não está se vendendo como imaginava.

A intromissão de Musk na política brasileira, dizendo que não vai colaborar com a Justiça no inquérito das fake news, mostra que o novo, no mundo dos negócios, é na verdade bem velho. Em muitos sentidos.

Musk é velho como o mundo, primeiro, porque se mostra o empresário de faroeste, que só pensa nos seus interesses, e não nos países, ou nas pessoas.

Do tamanho que ele ficou, torna-se uma ameaça mundial. As megacorporações, do jeito que são hoje, acreditam que têm recursos e poder para confrontar os Estados nacionais. Especialmente os titubeantes, como o do Brasil.

São elementos imponderáveis da vida contemporânea. Empresários privados aventureiros que se metem em coisas antes reservadas ao poder público, como a corrida espacial, deixam perguntas. E quem regula o espaço? Nessa zona onde não há fronteira, como no mundo das corporações transnacionais, o que podem fazer? Resposta: algo que atende seus interesses, geralmente diferentes dos coletivos. 

Musk, o bilionário elétrico-digital, nesse aspecto, é também tão antigo quanto os velhos barões do petróleo  e da ferrovia. O discurso de que o carro elétrico vai salvar o mundo da poluição é uma enganação descarada. Não há nada mais mentiroso do que acreditar que o carro elétrico é ecológico. 

Para fazer funcionar carros e celulares com suas baterias, o engenho menos biodegradável já inventado pelo ser humano, é preciso uma quantidade enorme de minérios encontrados na superfície do planeta - os "terras raras". Por conta disso, extensas áreas de terra hoje são  revolvidas - em Araxá, Minas Gerais, por exemplo.

Por ser mais barato que comprar áreas continentais, empresas de 26 países hoje raspam o fundo do mar, com o objetivo de recolher lítio e outros elementos. Estão destruindo a flora e a fauna marinhas e com elas o crio, de onde vem a maior parte do oxigênio do planeta. Perto disso, destruir a Amazônia inteira não é nada.

E o que dizer de como ficaremos daqui oito anos, quando essas baterias veiculares se transformarem em lixo?

Quando as vendas de algo vão piorando, começam a vender para o Brasil como grande novidade. As vendas de elétricos balançam no exterior enquanto chegam por aqui como algo  sensacional. Muitos lançamentos de carros elétricos vêm sendo anunciados. Graças ao incentivo fiscal - nosso dinheiro - como ocorreu nos Estados Unidos.

Musk diz que é a favor da liberdade, como se seu negócio dependesse do livre mercado, e não do dinheirão que o Estado botou nele. No campo político, esqueceu também que o limite da liberdade é o direito - e a liberdade - do próximo. Não se pode fazer algo que coloca em risco o futuro do planeta, em qualquer área.

O mesmo se pode dizer das redes sociais, negócio onde ele entrou para enganar o público sem intermediários. A mídia digital vem sendo usada sistematicamente para espalhar mentiras, com finalidade eleitoral, de forma inescrupulosa, e proteger os interesses por trás dessas mentiras. São usadas, também, para patrulhar quem pensa diferente e constranger a opinião alheia - o contrário da liberdade.

Quem é Elon Musk? A resposta está bem clara. É mais uma raposa, travestida de benfeitor, dessas que querer tomar conta do galinheiro para fazer a festa. É temporário. Acabam levando chumbo do fazendeiro, antes de acabarem os ovos - e as galinhas.

domingo, 14 de abril de 2024

Decolonizando a decolonização

A convite da artista plástica Cynthia Loeb, passei pelo Cama de Gato, exposição dos artistas reunidos no condomínio de ateliers conhecido como Edifício Vera, no centro de São Paulo. No meio de muita coisa brilhante, lá encontrei o trabalho de Sérgio Adriano H - artista plástico que se dedica a rever, em forma de arte, a história do Brasil. Preocupa-se em denunciar a narrativa clássica sobre a negritude, a escravidão e o discurso histórico, feito da perspectiva do colonizador português.

Hoje há um forte movimento pela ideia da “decolonização”, palavra que ele aplica em muitas de suas obras. Em sua arte, Sérgio cola as páginas dos livros de história e as utiliza como tela, gravadas com essa palavra. Pinta de branco negros sendo castigados no pelourinho, nas gravuras históricas clássicas – uma forma de mudar a perspectiva e chocar quem vê a cena. Os negros de Debret se tornam brancos.

A “decolonização” – no sentido de extrair a perspectiva colonizadora – é uma preocupação para nós, jornalists e historiadores contemporâneos, que temos revisado a história do Brasil, como aprendemos nos livros escolares. Em A Conquista do Brasil (1500-1600), por exemplo, procuro mostrar a vida dos povos indígenas tal como era e destacar lideranças ignoradas pela historiografia oficial, como Aimberê, Cunhambebe e Piquerobi, muito mais importantes para a nossa história que Pedro Álvares Cabral.

No entanto, buscamos um equilíbrio, pois não dá para simplesmente jogar fora a informação dos jesuítas, detentores da narrativa sobre a história do Brasil na época. E que também escamoteavam portugueses como João Ramalho.

Não dá para embarcar na ideia dos “povos originários”. Como aponto em A Conquista do Brasil, os indígenas encontrados pelos europeus no território hoje do Brasil não estavam aqui há mais que 500 anos – terra que tinham conquistado de forma tão inclemente quanto o fizeram os portugueses, de quem se tornaram aliados contra os seus próprios inimigos.

A história, a meu ver, tem de ser contada pelos fatos, e os fatos dentro de seu contexto, não de pontos de vista que são narrativas contemporâneas. É preciso retratar a realidade com o máximo de informação objetiva. A história é o que é: ponto. 

A historiografia deve ser entendida da mesma forma, como parte da história. Colar páginas ou queimar livros pode valer como manifestação artística, uma forma de apontar injustiças e chamar a atenção para a igualdade de direitos. Porém, criar uma narrativa para se sobrepor a outras não é a melhor maneira de mudar alguma coisa.






Uma forma de obscurantismo não pode ser substituída por outra. Trata-se apenas de mudar privilégios, sem a promoção de uma real igualdade.

A arte faz seu papel, de chamar a atenção, chocar, abrir mentes. Porém, é preciso entender também os livros no seu contexto, considerá-los e preservar toda forma de história, em vez de queimá-la. Este é o único caminho: encarar a realidade, e não sepultá-la, de maneira a podermos mudá-la, de fato, para algo melhor.