terça-feira, 16 de julho de 2024

O culto à vida e o desenvolvimento


Em 1920, o imperador Meiji cedeu ao fato de que era preciso modernizar o Japão. Como um rito de passagem, mandou construir um templo xintoísta no meio de uma floresta de 70 hectares dentro de Tóquio: o Meiji Jingu, onde hoje repousa seu espírito,  com o da imperatriz Shoken.

Na entrada, após os Torii (portais), duas estranhas galerias ladeiam a alameda que leva ao templo. Como marco da mudança, do lado direito, estão barris de saquê, que o Japão exportava; do lado esquerdo, barris de carvalho com vinhos da Borgonha, trazidos da França. Um espécie de símbolo da abertura ao comércio internacional, celebrado com a bebida.

O shintoísmo é uma religião antiga, de origem incerta, sem livro, profeta, batismo, conversão. Baseia-se no princípio de que todos os seres são espíritos a serem respeitados, uma forma de harmonia com toda a natureza. Essa ideia fundamental está por trás de toda a cultura japonesa.

Meu filho, que sempre foi sábio desde pequeno, definiu o xintoísmo como "um culto à vida". E é isso mesmo: enquanto outras religiões buscam a conexão com o além, o mistério,  o insondável, o shintoismo venera a natureza, isto é, o que existe, a vida.

O templo do imperador revela a conexão entre essa filosofia e a forma encontrada para que essa sociedade tradicionalista e ritualista se adaptasse e permitisse o desenvolvimento. Respeitar a tradição usando-a em favor, e não contra o progresso, é a verdadeira semente do Japão contemporâneo. Um país onde há muito trabalho duro, mas que ocupou um lugar importante na economia mundial, realizando o projeto do imperador cujo legado aqui se encontra vivo, embalado por uma paz sobre a qual se caminha de coração tranquilo.











segunda-feira, 15 de julho de 2024

A volta aonde nunca fui

Eu nasci no bairro da Liberdade, como bem sabe muita gente, ou quem leu Além da Memória,  meu poema sobre a primeira infância, esse período mágico da vida da gente. Meus primeiros grandes amigos eram descendentes de japoneses. Meu herói de infância foi o Nacional Kid. Sou faixa roxa do judô. Cresci e vivi imerso no imaginário japonês,  com seus desenhos, produtos e, sobretudo, o que me transmitiu a amizade com muitos japoneses e seus descendentes no Brasil.

Por isso, para mim é também um tanto mágico conhecer o Japão. Sempre me aproximei dos japoneses por algo que para mim é uma identidade: a gentileza, a polidez, o recolhimento, a contemplação,  o respeito pelos outros e pela natureza, o perfeccionismo nos mínimos detalhes - da maneira como se corta o peixe a como se faz um carro.

Essa cultura, como conjunto, e cada um de seus elementos, fizeram um país ir muito além do país. Ela é carregada por seus produtos, sua comida, sua literatura, seu cinema e cada um de seus filhos. Como Portugal, o Japão é um exemplo de como a cultura faz uma nação ser muito maior do que aquilo que cabe no seu território. É tão forte, que prova como um povo com um estilo de vida e uma tradição milenares pode ser capaz de se adaptar a tudo - à guerra,  à tecnologia, enfim, ao tempo - e preservar e projetar sua essência, onde está o seu melhor.

É isso o que eu penso, olhando o motorista que conduz o trem em Tóquio. Um desses homens simples, mas que para mim eram heróis, nos meus tempos de menino na Liberdade, quando olhava os lixeiros que passavam na rua, viajando pendurados no caminhão, e sonhava um dia ser como eles.  Sigo no trem, levado por esta felicidade infantil, que divido com minhas eternas companhias, dizendo,  à vida: arigato gozaimasu!

quinta-feira, 11 de julho de 2024

O deserto do futuro

Burj Khalifa, mais alto prédio do mundo

Mais que escala para o outro lado do mundo, Dubai foi planejada para ser uma bem acabada amostra do futuro de todo o planeta, tecnologicamente desenvolvida para a vida humana habitar um ecossistema desertificado. Dentro do vidro e do aço refrigerados, circula gente de toda parte, carregando culturas diferentes, num ambiente em todos os sentidos controlado.

Para mim, que prefiro preservar a natureza e a democracia, é interessante ver, mas difícil de aceitar. Dentro do Museu do Futuro, engenhoso anel arquitetônico com pinceladas da cultura árabe, essa visão se expressa na construção de uma estação espacial para produzir energia solar, abastecendo um país onde se abriga uma "biblioteca do DNA" dos seres vivos e o laboratório de "cura da Terra". Serviria, entre outras coisas, para o repovoamento ou reconstrução do ecossistema da floresta tropical, após sua destruição. Nesse cenário,  desenvolvem-se novas espécies, capazes por exemplo de se regenerar mais facilmente após as queimadas.

É um cenário de pesadelo, não apenas ambiental. Na Dubai de hoje, há paradisíacas ilhas artificiais e edifícios monumentais, por onde se imagina que um dia passarão carros voadores, mas é gente de carne e osso que lava os corredores dos hotéis, usando um tradicionalíssimo esfregão. Do milhão de pessoas residentes de forma permanente, 900 mil são imigrantes paquistaneses, que fazem todas as tarefas indesejadas pelos ricos e para os ricos. A fonte dançante do Dubai Mall baila com a voz de Edith Piaf, mas só evoca um tempo vivo e vibrante: ali, a França está mais viva na loja Louis Vuitton.

A riqueza e os privilégios são garantidos por uma sociedade bastante restritiva que, desconhecendo a democracia, parece dispensar  a liberdade e aceita viver sob um governo que dirige o país como ele é: ali, o Estado é uma propriedade e um empreendimento privados, onde a lei e os costumes estabelecidos garantem o lugar de cada casta.

No metrô, mulheres e crianças vão em vagões exclusivos, no final da composição, uma espécie de apartheid resultante da influência religiosa no Estado. Meu filho diz que é preciso entender a cultura e isso pode mostrar "gentileza". Ele tem, felizmente, uma alma gentil -  e procura ver as coisas pelo seu ângulo melhor. Eu estou mais velho e aprendi a ver o ruim mesmo no bom.

As mulheres de burca podem gostar do seu lugar e de ir no vagão exclusivo. Mas eu penso que o direito de usar burca só é bom quando não é coercitivo, socialmente, assim como a gentileza só é realmente gentileza quando é  exercida num ambiente de igualdade.


Você tem direito a um lugar, onde todos podem estar, e então o cede em favor de alguém, ou recebe esse favor de alguém. Só há virtude quando você cede um direito que é seu, e não quando o tomam de você e fazem generosidade em seu nome. Essa generosidade. Para mim, é apenas discriminação.

Em Dubai, todos são bem vindos, no ecumenismo magnético do dinheiro, mas está clara a preferência estatal. Todos os estalecimentos públicos, como o Dubai Mall, considerado o maior shopping do mundo, têm salas para o culto muçulmano ao lado dos banheiros, numa aproximação entre diferentes necessidades diárias.

Embora admirável, como empreendimento humano em local inóspito,  a cidade é mais ou menos como viver em Marte, que um dia já foi também mais parecido com a Terra. Dado isto, os antigos povos do deserto, que agora andam de kandura de seda entre Dolce & Gabanna e a Montblanc, e com o  declínio do petróleo agora investem em turismo e futebol, talvez sejam de fato os mais preparados e interessados nesse futuro artificialmente construído, com suas tendas de vidro no areal.