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sexta-feira, 10 de junho de 2016

Uma razão de viver

"Pensei que você iria achar tudo muito sem graça", diz ela, enquanto repousa os pés cansados no meu colo, dentro de um estudio em Londres, com uma parede de vidro para um jardim à moda inglesa: o backyard longo, com árvores que parecem pender de algum quadro imoldurável, e uma igreja de tijolos escuros que já encampou um dia rezas de religiosos medievais.

Fala não porque duvida, ou não me conhece. Fala justamente porque não é verdade: gosta de provocar, quer que eu diga o que ela já sabe.

Tem os olhos vermelhos, cansados da semana quase sem dormir; hoje madrugou em Antuérpia e termina o dia em Londres; conheceu e almoçou com um rei e acabou o dia num proletário trem de subúrbio; andou de roda-gigante, entrou pela primeira vez num avião a hélice, passeou comigo por uma "catedral" que não é igreja, e sim uma estação de trem. Ganhou bombons, um guarda-chuva branco e muitos sorrisos de despedida dos amigos que fez com o encanto imediato dos meteoros. Assim cansada, fez questão de carregar como sempre a bagagem pelo labirinto subterrâneo do metrô londrino, como gosta de fazer, dizendo sempre: "sou muito forte".

Nós dois nesta casa temporária onde há pouco espaço para algo além de nós dois: sim, ela trabalhou a semana inteira, quase sem dormir, quase sem me ver, apesar de eu estar ao seu lado o tempo todo. E assim, quase invisível, eu não poderia achar a vida sem graça, pois a graça está justamente nela.

Eu a vi iluminar homens sisudos e assuntos áridos, emprestar brilho à festa de um rei sem fama e ornar com feminina beleza os salões ricamente decorados da cidade dos diamantes. Ela tem aquele sorriso para cada um; a palavra amiga e a modéstia de quem é elegante em qualquer lugar. No salão dos reis, comeu zabaione com cerveja, riu um pouco tonta, contou histórias e desceu as escadarias monumentais, deixando atrás a desolação dos palácios, que dela sentirão falta e perderão o sentido pelos próximos trezentos anos.

Vi tudo, invisível, mas feliz. Para mim, tive muito. A tarde em que festejamos o fim do seminário em Londres; fomos para casa a pé; atravessamos o Hyde Park, caminhamos toda a Oxford Street e comemos num restaurante turco, com cerveja turca, e risos transcontinentais. Ela ao fim de tudo, com trabalho extra que apareceu na hora errada, e ainda assim sorriu, brincou, dançou diante da lareira com a echarpe negra. Criança, adolescente, mulher.

Ela sabe fazer todos felizes: eu e os outros. E mais a mim, que já fui tão difícil de contentar, e hoje me dobro diante dela, observando: diligente, concentrada, atenciosa, comedida ao falar, como se a radiação que lhe deu a natureza pedisse sua mansidão como um fator de equilíbrio. Ela poderia ser cheia de exigências e certezas e sentenças, mas fala quando é a hora, pergunta, escreve - o que pensam e dizem os outros. Ela, que poderia ter tudo, ou o que quisesse, onde quisesse.

Por fazer tanto por todos, e por mim, ela que já me acompanhou discreta e prestativamente em outras tantas viagens a trabalho; por ser comigo o que ela é com todos, generosa e pronta, com alguns privilégios mais, eu posso experimentar como é estar do outro lado com prazer. Posso fazer por ela o que ela faz por mim.

Estar em um lugar apenas como o companheiro; saber dela, ela que sabe tudo de mim: quando estou ou não triste, o quanto eu gosto, o quanto eu sinto. Incluindo saber que estou aqui assim como vivo com ela, de boa fé, não porque é Londres, não porque esse é o único tempo que temos, mas porque é ela que me faz alegre, que me faz sorrir, me faz viver.




quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Metal queimado e o coração

A mulher, morena, cabelos soltos, camiseta regata, shortinho e chinelos de dedo, segura a carta entre as mãos – isso mesmo, uma anacrônica carta, papel com uma mensagem riscada de Bic, que sai de seus dedos guardando ainda a memória da dobradura no envelope. “Não vou mais fumar, porque desse jeito não terei saúde pra matar mais gente”, ela lê, em voz alta, para duas outras mulheres que a rodeiam na calçada. “Vocês viram aqui o que ele escreveu? Não terei saúde pra matar mais gente.”

É meio da tarde, tempo abafado, e passo meio com pressa, meio com vontade de parar e perguntar. Quem é o presidiário: será um filho, um irmão, um marido, ou namorado? O que terá feito para estar preso, ou melhor, quantos crimes cometeu, e quantos mais terá cometido depois, na prisão? As palavras saem doces na voz feminina, mas eu as escuto dentro da cela fétida, de paredes descascadas, perto da latrina barrenta. “Matar mais gente. Matar mais gente”, reverberam as palavras. E o pensamento: até um assassino tem para quem escrever, até um assassino encontra compreensão, um assassino tem amor.


Faz alguns meses que estou na Barra Funda, como uma espécie de rito de passagem entre o passado e o futuro, o desconhecido já visto e o desconhecido a ver. Caminho pelas calçadas onde se espalham mesas de bar; numa esquina a caminho de casa, um grupo de desocupados todos os dias joga baralho; dali controlam a calçada, o jogo e até o trânsito: gritam com quem vem na contramão, dão informação, e me lembram os personagens daquele filme espanhol com Barden, Segunda-feira ao Sol, sobre a vida dos desempregados.

Barra Funda: galpões antigos, com portas de metal, onde ficam restaurantes por quilo, oficinas mecânicas, pequenos negócios. À noite algumas dessas portas se abrem, são casas noturnas que funcionam tarde da noite, onde vão alguns clubbers e muitos bêbados da madrugada. As ruas mesmo durante o dia têm algo de abandono: as lojas de tatuagem, os entregadores delivery de água, as mulheres suburbanas, opulentas e suadas, na porta dos cabeleireiros.

Aqui já houve mais indústria, os migrantes do passado, que deixaram os galpões fantasmagóricos e o costume de sentar fora. Nas ruas ficaram os estudantes da Faculdade Oswaldo Cruz, a dona do bar de comida mexicana com um cardápio de neon, os tatuadores e as tribos da contracultura, que gostam do clima do lugar, o que de mais perto São Paulo poderia ter do Soho novaiorquino, que nunca terá. E, sobretudo, os homens de baixo clero, os barbados que perambulam sem rumo, roupas puídas, catando lixo; o negro que ao me ver muda súbito de rumo, vem na minha direção,  penso que vai pedir dinheiro, ou é um assalto, e não: "Na rua de cima você vai achar o templo", ele diz, "vá lá, Jesus salva, o Senhor te ajudará."

As ruas estão sempre cobertas de lixo; na redondeza da escola pública, traficantes circulam sem serem incomodados. É um gueto, quase um campo de concentração: o trem espreme a Barra Funda entre a linha férrea e o Minhocão. Bate em meus ouvidos, repetitivo e rude; os guinchos durante a noite, rilhando na alma, os apitos inopinados, longos e escandalosos silvos e o cheiro de metal queimado, que impregna a roupa, as narinas, mas não parece vir de fora, e sim de dentro, do coração.

A quadra de futebol onde levo meu filho; o apartamento pequeno, onde se amontoam móveis embrulhados em papel bolha, à espera do dia da mudança: purgatório que não devia ter acontecido, abismo entre o passado e o futuro, parênteses no tempo, parado mais do que deveria.

Na rua, todas as noites a moça ruiva leva o cachorro para passear; tem cabelo curto de rapaz, que ressalta o queixo quadrado, o rosto bem feito, o corpo torneado sob a roupa preta de ginástica; leva sempre o cachorrinho peludo na coleira; ela me cumprimenta, quando me vê passar. Sigo em frente, sem pensar; sou um estranho, ou sempre fui; estou aqui de passagem, como sempre tenho estado; isso, como tudo, vai ficar para trás, mais uma possibilidade que não aconteceu: a minha será uma Barra Funda sem lembranças, apagadas junto com tudo aquilo que não posso mais.

Aqui todos são solteiros ou têm crianças pequenas, fazem esteira no salão de ginástica, esperam também o fim do intervalo, ou o momento de pegar o trem e ir para longe dali. Imagino que muitos ficarão à espera por toda a vida, olhando tudo passar: deserto dos tártaros urbano, que me faz olhar o relógio, contar as horas, minutos, os cabelos enbranquecendo no espelho, como se a vida se esgotasse a cada instante.

Subo pela rua, e a ideia de ir embora me faz sorrir levemente. O sol bate forte na cara; enfim faz verão sem chuva, e eu me encho de energia; na Barra Funda fiquei seis quilos mais leve, e caminho na calçada na ponta dos pés. Quando baixo os olhos do céu, vejo uma menina, que deve ter dez, onze anos, não mais; encontro, no ar, seus olhos de mel. Tem cabelos longos, pele mourisca, senta numa mesa na calçada em frente de casa com a mãe e os irmãos; experimenta aquele alumbramento de quem viu um homem em estado de graça; os olhos dela me acompanham quando eu passo, e eu sei que ela se lembrará de mim para sempre, o moço da rua, que ela viu sorrir sozinho, distante e distraído, e isso, um instante, mexeu alguma coisa dentro dela.

Eu ainda posso fazer isso, penso: posso causar isso em alguém e posso fazer muitas outras coisas. Sobretudo, posso novamente ser eu, o mágico que reconstrói a vida, que inventa tudo de novo, que faz palpitar o coração; eu sigo sendo eu, a recomeçar.