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sexta-feira, 19 de junho de 2020

O romancista encara suas fontes


Eu estava em Nova York, tempos depois de lançar A Quinta Estação, quando tocou o celular. Era uma ex-namorada, que ligava do Canadá.

- Meu pai leu o seu livro.

- Ué, achei que ele não gostava de mim.

- Disse que o livro está cheio de sexo!

- Mas é uma obra de ficção e ninguém está identificado...

- Como não? Agora só me chamam de Sofia!

Lembro dessa história ao folhear A Quinta Estação, um daqueles livros que, por ser contemporâneo, acabam criando alguns problemas. Tenho um amigo que, quando lanço um romance, pergunta; “Quem vc f... dessa vez?”

Um de meus filmes favoritos, “Desconstruindo Harry”, de Woody Allen, fala justamente desse problema do autor. De forma análoga ao que faz como cineasta, Allen se coloca no papel de um escritor que usa todo mundo que conhece como inspiração para seus personagens. Acaba criando uma confusão só ao seu redor. E não conto mais nada, para não dar spoiler a quem não viu.

Por sorte escrevo muitos romances históricos e, quando as inspirações são colocadas no passado, as pessoas não percebem tanto onde contribuiram sem querer para a história.

O fato é que, em qualquer época na qual qual seja ambientado, todo livro é produto das experiências de um autor, que frequentemente envolvem outras pessoas. E estas por vezes não gostam de se ver retratadas ali, ou da forma como você as retrata. Um romance tem sempre um ponto de vista, que é o ponto de vista do autor.

- Nesse livro aí você acerta conta com muita gente – Certa vez me disse um ex-cunhado, que é juiz. – Como a gente se defende de você?

Tem gente, por outro lado, que se enxerga lá nos livros mesmo sem ter nada a ver. Seja como for, é difícil entender o que sai da cabeça do escritor como uma recriação ficcional, que serve a uma função dentro da história, e por vezes tem de ser propositadamente adaptada.

A Quinta Estação é meu campeão de problemas nesse campo. Uma vez, uma leitora me mandou uma mensagem indignada.

- Mas esse livro só tem a perspectiva masculina dos relacionamentos!

Tentei explicar que era essa mesmo a ideia: cinco contos de amor, narrados do ponto de vista masculino. Afinal, o que há de errado com o ponto de vista masculino? Se eu sou homem, por que não posso ter um ponto de vista masculino?

Eu gostaria de mostrar que os homens pensam, sim, sobre relacionamentos, apesar da fama em contrário. Homens sofrem de amor, ficam magoados, e, no fundo, se queixam tanto as mulheres, talvez mais, por incompreensão. Porém, tentar convencer a moça foi inútil.

Às vezes, é verdade, faço referências que são pura e inocente provocação. Em Filhos da Terra, por exemplo, homenageio um amigo meu, o doutor Eduardo Reis, colocando seu nome num personagem que é um bacharel de porta de cadeia, especializado em livrar a pele dos larápios. Uma daquelas pequenas sacanagens que a gente só faz com grandes amigos.

Outra: também em Filhos da Terra, coloquei o nome da minha mãe e de minhas tias nas sete filhas do delegado que não deixava nenhuma casar antes de desencalhar a primeira. Elas adoraram o livro. Mas um tio que teve seu  nome trocado com o de um irmão ficou chateado comigo.

O que as pessoas não pensam tanto é que ninguém se expõe mais do que o autor, às vezes onde menos parece. Ainda assim, como não podemos ser tudo nem viver tudo, acabamos aproveitando a experiência dos outros.

Por isso, o interesse verdadeiro pelo outro, com o entendimento e aceitação de toda a diversidade humana, é essencial para quem escreve e também nossa vantagem. Essa preocupação serve ao trabalho e serve à vida, porque ela melhora muito, fica muito mais rica, quando temos um interesse genuíno pelas outras pessoas. E mais: temos compaixão. Sem base na realidade, sem nos colocarmos na pele do outro, nenhuma história teria credibilidade. E paixão.

A todos aqueles que me ensinaram alguma coisa na vida, que me me deram amor, ou com quem dividi aventuras, experimentos e mesmo alguns erros, deixo meu reconhecimento agradecido.

Indo para o papel ou não, todos podem ter a certeza de que tudo o que compartilhamos continua vivo dentro de mim. Se também compartilho algo dessa experiência em livro, é porque acho isso tão importante que pode servir a mais alguém.

E, por favor, não tenham medo de me contar coisas. Eu não mordo. Só, às vezes, escrevo. Discretamente.