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domingo, 29 de novembro de 2015

A vitória de Lula que não aconteceu

Em 1989, o Brasil foi tomado de norte a sul pelo maior movimento cívico da história do país: a campanha eleitoral para presidente da república por via direta pela primeira vez depois de trinta anos.

Havia no ar não apenas a restauração plena da democracia como um certo clima de messianismo. O presidente eleito pelo povo teria a complicada missão de salvar a economia, mergulhada em recessão profunda e abalroada por uma inflação que chegaria a quase 90% - ao mês.

Na campanha, todas as forças que saíam do período da ditadura estavam representadas. Estavam ali como candidatos Ulysses Guimarães, pilar central da campanha pelas diretas; Paulo Maluf, candidato alinhado com as antigas forças da ARENA, que disputara a eleição indireta com Tancredo, anos antes; Leonel Brizola, o velho caudilho do trabalhismo.

E havia o "novo": Lula, emergente do movimento sindical e do PT, e Fernando Collor, então um jovem egresso do governo alagoano, conhecido como "caçador de marajás", expressão cunhada na reportagem da revista Veja sobre sua atuação no governo alagoano, que transparecia como um político mais liberal, de origem conservadora, mas com um lustro dinâmico e modernizador.

Foi o evento mais importante da política brasileira talvez de todos os tempos e eu estava em posição provilegiada, como editor de assuntos nacionais da revista Veja, então o principal veículo impresso de circulação nacional.

Pela importância do momento, decidiu-se que, além de fechar a seção, com a cobertura completa das eleições, eu seria destacado para cobrir também a campanha de Lula, que chegou à disputa do segundo turno com Collor e reuniu ao seu redor todas as forças de centro-esquerda. O jornalista Eduardo Oinegue, então chefe da sucursal de Veja em Brasília, seguiria Collor.

Sem sabermos quem iria ganhar, numa disputa que seria bem parelha, trabalhamos em duas matérias completamente opostas: um perfil de Lula vencedor, a ser escrita por mim, e outro de Collor, cuja reportagem seria feita por Oinegue.

A cobertura completa da eleição incluiu pelo menos uma matéria ampla sobre cada candidato. Sobre Brizola, escreveu Arlete Salvador, que também trabalharia no perfil de Marisa, mulher de Lula; Maluf foi perfilado por Denise Chrispim Marim; e assim por diante. A equipe incluía também outros grandes jornalistas, como o repórter Expedito Filho, um especialista em circular pelos bastidores de Brasília.

Foi um período de muito trabalho, em que só o entusiasmo do momento e a juventude explicam a resistência para encarar aquele pique. Eu entrava na redação na quinta-feira às 11:00 para começar a fechar a seção de Nacional. Saía do fechamento às 5 da manhã de sexta-feira. Dormia um pouco e às 11:00 da sexta-feira estava de volta à redação de Veja, no edifício da Marginal do Tietê. Saía novamente por volta das 10:00 da manhã de sábado, praticamente um zumbi, e tomava o avião às 2 da tarde para onde Lula estivesse em campanha.

E a campanha era dura. A caravana de Lula começava sempre muito cedo e corria o Brasil inteiro. Certos dias, ao acordar, precisava olhar o cinzeirinho do hotel na cabeceira da cama para me dar conta de onde estava.

Houve grandes momentos, do comício em Osasco, no qual Lula levou uma ovada na cabeça, e subiu ao palanque para fazer um belo discurso do preconceito do trabalhador contra o próprio trabalhador, ao comício de Salvador, que assisti de um apartamento envidraçado debruçado sobre o farol da Barra, que parecia se mover sob o mar de bandeiras vermelhas do PT, ao lado do fotógrafo Antonio Ribeiro.

Para mim, o momento mais especial ocorreu quando consegui o que nenhum outro jornalista teve durante todo o segundo turno de campanha: uma entrevista exclusiva com o candidato. Depois de muito chorar, consegui uma hora de entrevista com Lula, dentro do carro, no trajeto entre São Paulo e São Bernardo, onde ele ocupava o sobrado de um amigo empresário para descansar da campanha.

O que mais me chamou a atenção na conversa foi entender a perspectiva de Lula quando lhe perguntei como se sentiria se virasse mesmo presidente da República, algo que realmente parecia já muito perto de acontecer. "Para mim, foi muito mais difícil sair do sertão para São Bernardo", disse ele.

Saído da miséria, Lula tinha em conta que havia uma distância muito maior entre um excluído é o metalúrgico, um trabalhador qualificado, um cidadão, com direito a colocar filho na escola, ter uma casa e beber sua cerveja no fim de semana, do que qualquer cidadão virar presidente. 

No final, bem no finzinho, Lula perdeu a eleição. O perfil que escrevi dele chegou a ser composto, como comprovam cópias que guardei da matéria que nunca saiu. Abaixo, reproduzo a reportagem integral, com o perfil de Lula, recheado de informações até hoje relevantes sobre o homem que esperaria ainda três governos até finalmente realizar a profecia do título, referência ao "Lula-lá", trilha sonora da campanha.

Ironia, a cobertura traria ainda a matéria sobre Collor derrotado e um perfil de Marisa como primeira-dama. Abaixo, a reportagem que foi publicada, de Collor vencedor, que fechei com o mesmo prazer com que teria fechado a minha própria. Um grande momento para nós de Veja, que com nossa cobertura das eleições ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo Político daquele ano. E para o Brasil, que voltou novamente a olhar com esperança para o futuro.


A capa que não saiu






A "derrota" de Collor





Marisa: ainda seria verdade.




A matéria publicada



quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Isto não é o fim da imprensa



A imprensa, um dos pilares essenciais da comunicação e da democracia, é uma indústria como todas as outras – com a única diferença de que seu produto é a notícia. Muito se tem especulado sobre o futuro da imprensa na internet, que tirou das grandes empresas o monopólio dos meios de distribuição. Porém, uma indústria não deixa de existir quando mudam os meios de consumo. Deixa de existir, isso sim, quando deixa de fazer o seu produto.

Um exemplo de como isso está acontecendo. Há duas semanas, um amigo meu veio com a informação de que a prefeitura de São Sebastião tinha aprovado um plano diretor pelo qual seria derrubado um bom pedaço de Mata Atlântica em área de proteção ambiental na praia de Maresias, em São Paulo. Procurei um grande jornal de São Paulo que pudesse se interessar pela notícia. Um editor com quem entrei em contato me forneceu o e-mail de um segundo editor do mesmo jornal. Este me respondeu, dizendo que esse assunto era com uma terceira pessoa. Escrevi para o terceiro profissional. Esse sequer me respondeu.

Esse episódio me lembrou outro, de quando eu era editor de assuntos nacionais na revista Veja e recebemos um telefonema anônimo, dando conta de que um soldado da base militar de Anápolis estava sendo torturado. Por dever de ofício, mesmo sem a identificação do denunciante, fomos apurar. Uma hora depois do telefonema, eu enviava para lá Celson Masson, então repórter da sucursal de Brasília.

Celso voltou de Anápolis sem encontrar nada. Na semana seguinte, ainda com aquela história na cabeça, pedi autorização da direção da revista para fazer nova despesa: mandei o repórter para Anápolis novamente. Dessa vez, num golpe de sorte, perguntando na rua, Celso Masson achou o soldado. Esperou sair do hospital, onde havia sido isolado pela aeronáutica até que se aliviassem as marcas da tortura. Com a publicação da história, os chefes da base aérea passaram por um tribunal militar e foram afastados e punidos. Idem os policiais da delegacia civil que tinha sido utilizada para a tortura. E, com aquela reportagem que mostrava a sobrevivência da tortura mesmo depois do fim da ditadura, Celson Masson ganhou o prêmio Esso de jornalismo daquele ano.

Tudo isso por que atendemos e demos a devida atenção a um simples telefonema.

Faço essa comparação para dizer que o jornalismo tem acabado não por culpa da internet, mas das empresas e seus jornalistas, muitos dos quais esqueceram qual é o seu trabalho. Ouço muito de colegas veteranos que hoje os repórteres não saem do computador. Não vão aos lugares onde as coisas acontecem nem conhecem seus entrevistados pessoalmente. Basicamente, se faz muito pouca reportagem. Em consequência, os jornalistas pouco têm a apresentar além do que qualquer blogueiro diletante.

A indústria da imprensa no Brasil também tem deixado a desejar na solução de problemas em outras áreas do negócio. Reclama-se que a internet não dá dinheiro, especialmente porque as pessoas não estariam dispostas a pagar por conteúdo exclusivo na internet. Vale lembrar outra história do passado. Há cinquenta anos, quando Roberto Civita entendeu que precisava de anunciantes para sustentar suas revistas, e para lhes garantir circulação devia ter um sistema de assinaturas, teve de montar uma rede de distribuição de revistas impressas por todo o país.

Mais: precisou convencer as pessoas a pagar adiantado por um produto que ainda não tinham visto, e só receberiam ao longo do ano. Diante do colossal esforço empreendido pela Editora Abril para criar o sistema de assinatura da revista impressa, que fez da empresa líder absoluta do mercado, não me parece tão difícil convencer hoje leitores a fazer uma assinatura de jornal pela internet, onde se tem o retorno imediato do serviço, acesso ao banco de dados completo e não é preciso esperar pelo caminhão de revistas ou o jornaleiro.

Outro mito que se desenhou sobre o destino da imprensa é que a multiplicação de fontes de informação aumentou a concorrência – onde antes se recorria apenas a dois ou três veículos, hoje se pode utilizar uma multiplicidade de fontes que, entre outras coisas, replicam o conteúdo dos jornais sem pagar por ele. Isso se enfrenta, por um lado, com o combate à pirataria, impondo sanções. Por outro, fazendo um jornalismo sério, que leva um leitor a ser fiel à sua fonte de informações, aquela em que acredita e com a qual pode se identificar. Sim, a internet tem muita coisa - mas tem pouco jornalismo de verdade.

Não se trata de saudosismo, ou de comparar momentos diferentes. Nem é caso de reinventar nada. Os tempos mudam, sim, e a mudança tecnológica destes nossos tempos representa uma enorme reviravolta na comunicação. Porém, os princípios que regem o interesse das pessoas, a necessidade de informação confiável e as bases profissionais do jornalismo não mudaram. É preciso apenas recolocar a imprensa num ambiente que, em última análise, apenas eliminou o papel e facilitou o acesso à informação, nacionalizando e mesmo internacionalizando todos os veículos – o que, em vez de diminuir, só aumentou seu potencial.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Lições para escrever, n. 1


Naquele tempo eu trabalhava como editor assistente de Economia da revista Veja; para chefiar a seção, pouco tempo antes viera, deslocado de Internacional, o jornalista Fernando Pacheco Jordão. Profissional experiente, talentoso e simpático, um desses raros homens com quem trabalhar se pode dizer que também é um prazer.

Em Veja, especialmente nas quintas e sextas-feiras, trabalhávamos até muito tarde; o dia era gasto na apuração das notícias, o que significava ir além do que informavam os jornais; nossa função era explicar melhor, revelar os bastidores, fazer o leitor entender de maneira mais ampla ou profunda o que acontecia na sua própria vida e no mundo ao redor. Escrever era uma atividade que nos aproximava dos bombeiros, guardas noturnos e outros profissionais da noite. E não podiámos errar: ter que reescrever uma matéria significava um desastre, porque frequentemente nos levava a sair do trabalho somente de madrugada ou mesmo no dia seguinte pela manhã.

Fernando tinha uma particularidade; quando não sabia direito por onde começar uma matéria, começava por qualquer lugar; em algum momento, chegava à conclusão sobre o que era mais importante; nesse instante, voltava para o começo de tudo, depois punha o texto em ordem. Na maior parte das vezes, porém, ele me deixava escrever a reportagem, depois de dar alguma orientação.

Talvez pela tranquilidade com que confiava nesse método, certa vez eu e ele nos demos mal – mais eu do que ele, é claro. O governo acabara de anunciar um aumento do salário mínimo. A seu pedido, escrevi uma longa peroração sobre os efeitos que isso teria na economia, onerando contas públicas e a previdência social. Isso, dizíamos, apesar do benefício inicial para a população, geraria uma reação em cadeia que causaria prejuízos na frente, com o aumento da já elevada inflação.

No final, para não dizer que tínhamos deixado de mencionar o assunto, escrevi um pequeno box, quase um rodapé, sobre o problema da classe média, que teria de se virar para pagar a empregada doméstica. E lá fomos levar a matéria para José Roberto Guzzo, diretor de redação, que fazia a leitura final das reportagens mais importantes da nossa seção.

Com sua aparente bonomia, seu ceticismo permanente, e sua ironia fatal, Guzzo leu nossa obra, coçando a cabeça. Ao final, decretou:

- Muito bom – disse. – Vocês fizeram mesmo uma bela matéria sobre economia. Agora façam ela virar o box. E o box virar a matéria. O leitor não está interessado nas contas do governo. O problema dele é a empregada doméstica.

Saímos de lá; olhando para Fernando, com aquela cara, comecei a escrever tudo de novo. Mas Guzzo tinha razão. O leitor de Veja, que é de classe média, olhava primeiro para o próprio umbigo, ou melhor, o bolso: antes das grandes decisões da política e economia, a revista tratava do interesse pessoal e direto do leitor. A economia tinha um efeito retardado, ou secundário; aquela medida primeiro afetava o público da revista já no salário do fim do mês. O resto, ainda que relevante, ficava em segundo lugar. Cometeramos ali um erro de avaliação, tomando como base nossa própria cabeça de jornalistas e o que achávamos importante, mas para nós.

Conto essa história como exemplo de como é essencial pensar sobre o que vamos escrever, antes de escrever, e avaliar essas questões, antes de tomar uma decisão. Lição número 1 do livro Escreva Bem, Pense Melhor, e do curso com o mesmo nome, que tenho ministrado: escrever é, antes de mais nada, pensar. É preciso primeiro definir o que é importante, para balizar tudo o mais.

Essa decisão é fundamental, e nela pesam dois fatores. Um é o que achamos importante, a notícia, ou o que faz a diferença. Nem sempre é fácil entender o que é o mais importante, novo, ou fazer a síntese do que precisamos dizer já de saída. O outro fator, não menos importante, é pensar em quem o texto se destina; para isso, é preciso conhecer o público leitor, seus interesses e prioridades.

O sucesso de Veja, no seu auge, sempre se baseou nesses dois pilares: os temas que achávamos importantes, e que marcavam a posição da revista, mesclados aos que interessavam diretamente o leitor. Essa combinação é que criou um público leitor fiel, que fez Veja se tornar a maior publicação do Brasil e a quarta revista semanal do mundo em circulação.

A imprensa foi para mim um exercício permanente da escrita; além de escrever todos os dias, exige pensar o tempo todo no que é mais importante. O texto jornalístico pede cotidianamente a organização das ideias, de modo que o texto comece pelo mais importante e vá se desenvolvendo de forma lógica, encadeada e interessante até o final. Mesmo quando comecei a escrever ficção, esse exercício ajudou; não importante o assunto, ou o gênero, o que nos faz escrever melhor é sempre o pensamento organizado. Com o tempo, não importa o assunto, passamos a escrever cada vez mais rápido e melhor.

Toda vez que nos deparamos com algum tema, há sempre formas diferentes de tratá-lo ao escrever. A decisão é nossa. O leitor, porém, é que vai julgar. Ninguém escreve somente para si mesmo; nenhum homem é uma ilha, especialmente quando se trata de comunicação.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Civita e a importância de um editor

Entre as muitas lições deixadas por Roberto Civita, falecido em 26 de maio último, a que mais me fascinava era sua definição do que é um editor. Para Roberto, o editor era o homem que acreditava. Um homem de fé. Que acreditava não em Deus, mas que tinha pontos de vista, e acreditava neles, custasse o que custasse. O editor era o homem que achava que sabia o que as outras pessoas queriam, muitas vezes antes delas mesmas. Ou que reafirmava suas ideias e convicções de tal forma que influía de fato no que elas pensavam e queriam.

Nos últimos tempos, andaram dizendo que o editor está em vias de extinção. Hoje, mecanismos automáticos de busca como o Google parecem identificar o interesse das pessoas e seus grupos (as "redes sociais"), por meio de algoritmos que pesquisam palavras ou aglutinam gente por algum tipo de proximidade, pessoal ou profissional. Fariam de forma matemática, ou computacional, o que antes parecia, pelo menos aos olhos do editor, uma função que tinha muito de intuitiva. Porém, o editor continua insubstituível. Porque sua especialidade não é apenas reconhecer o que as pessoas querem; é dar a elas aquilo que ainda não sabem o que querem. Parte da tarefa do editor é, como observador e analista da sociedade, inventar o que as pessoas ainda vão gostar. E isso se faz a partir de suas próprias ideias, sua visão do mundo, do mercado, e de seus ideais.



Com Civita, foi assim. Não poucas vezes, ele produziu revistas para as quais o mercado brasileiro ainda não existia ou não estava preparado. Fez sua primeira revista de informação, Quatro Rodas, quando praticamente não havia estradas asfaltadas no país e a indústria automobilística estava apenas sendo implantada para o consumo de massa. Durante sete anos, a Editora Abril arcou com o prejuízo semanal de Veja, uma revista de informação que dependia de um sistema de vendas que ainda não existia - as assinaturas - para garantir circulação e, assim, a publicidade.

Civita percebeu que essas duas coisas - circulação e publicidade - é que garantiam a independência editorial e vice-versa. Essa independência financeira apoiada no mercado, e não em dinheiro ou favores de governo, era a condição essencial para o exercício da liberdade de expressão que ele identificava como algo fundamental para a democracia brasileira. E podia perenizar uma publicação, que se transformava assim em uma instituição brasileira em defesa da verdade, independente da cor dos diversos governos que se sucedem na história democrática.

Como editor, ele sustentou Veja, até dar certo, por acreditar - acreditava que o Brasil precisava da democracia, que a democracia precisava de uma revista independente, e que isso seria inevitável. Até que, sete anos depois, o inevitável chegou com a inversão da curva que levaria Veja a ser, como é hoje, a segunda maior revista semanal de informação do mundo, apenas atrás da americana Time.

É admirável como a visão de um fato que ainda não existe pode se transformar no próprio fato, apenas pelo trabalho do editor - o homem que acredita nas suas próprias ideias. Ao dar às pessoas aquilo que elas ainda nem sabiam o que queriam, Civita na realidade implantava o seu próprio ponto de vista, uma versão bastante particular e brasileira da verdade universal de que a democracia depende da imprensa livre. Com seu jeito um tanto blasé, ele chegava por vezes a minimizar a importância do papel de Veja, mas a revista contribuiu de maneira decisiva para transformações importantes no país: a construção de uma democracia sólida, pela qual Veja lutou, no processo de redemocratização; a formação de um capitalismo liberal, mais livre das amarras impostas no passado pelo Estado xenófobo e autoritário do regime militar; o combate à corrupção e aos descalabros no manejo do dinheiro público, no sentido de uma política mais ética e voltada para o interesse público; por fim, e não menos relevante, a formação de uma classe média mais educada e bem informada e com uma renda capaz de transformar o Brasil num mercado consumidor importante.

Por vezes, o editor está errado - coloca seu ponto de vista muito à frente do que pode, ou não enxerga o melhor caminho. Alguns dos produtos de Civita não deram certo, ou deram certo apenas por algum tempo, como a revista Realidade, uma publicação inovadora para sua época, mas que teve um prazo limitado de validade. Porém, a maioria das coisas em que Civita acreditou estavam certas, porque partiam de princípios mais que justos. Sua postura de colocar-se ao lado do leitor, de forma a lhe garantir uma publicação independente de outros interesses que não o compromisso jornalístico com a verdade, combinava perfeitamente com a liberdade de expressão, a defesa da democracia e a procura de uma sociedade mais justa.

Essas ideias e ideais não são apenas dele, mas Civita soube capitalizá-las em produtos que agregaram ao seu redor interesses muito poderosos, porque combinam com o próprio interesse do Brasil como Nação. É assim que se consolidam as instituições. Por isso, Civita, que nasceu em Milão e foi criado em Nova York, foi um brasileiro essencial para o bom caminho que o Brasil tem trilhado, com uma democracia voltada para a busca de uma sociedade mais livre e ao mesmo tempo justa, que busca a riqueza sem perder as preocupações sociais, e capaz de explorar racionalmente seu imenso potencial natural e de mercado. Cabe a todos nós que carregamos a mesma bandeira fazê-la tremular com o mesmo empenho, entusiasmo e coragem. Pois, como Civita mesmo dizia, a liberdade e a democracia dependem de um trabalho cotidiano de manutenção.









domingo, 20 de janeiro de 2013

Links do curso Escreva Bem, Pense Melhor


Para os alunos do Escreva Bem, Pense Melhor, na Casa do Saber, seguem os links dos textos citados em aula:

Padrão, de Fernando Pessoa, com Caetano Veloso>
http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=B1HwbgDiR6Q

O Poder da Mente:
http://www.veja.abril.com.br/190898/p_102.html

Paulo Francis: entrevista na revista Cult:
http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/paulo-francis-por-ele-mesmo/

Paulo Francis: o gigante de papel.
http://www.thalesguaracy.com.br/citacoes.asp?arquivo=203

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Como começa um escritor


Agora, como autor, e também como editor, vejo todos aqueles que ingressam com seus originais no Prêmio Benvirá de Literatura, muitos deles com o mesmo sonho dos meus 17 anos, quando vivia fascinado com as histórias de meu avô materno, que eu achava dignas de um romance, e alimentava a ideia de viver de escrever. Fico satisfeito de poder, com o incentivo do prêmio, ajudar a dar uma oportunidade a gente como eu de realizar esse sonho, encontrar talvez uma profissão e, sobretudo, tendo sucesso financeiro ou não, ser feliz fazendo algo pessoalmente tão importante.

Muita gente que tem me encontrado pede um conselho. Nenhum escritor dá conselhos a outro, e editores também não o fazem, porque o jeito em que se começa nesse negócio é tão individual quanto cada ser humano. É difícil encontrar alguém que te ajude de fato ou te aponte um bom caminho. Eu mesmo estou nisso meio por obra do acaso, algo tão difícil quanto ganhar um prêmio literário.

Pensando bem, minto: eu tive alguém que me ajudou, ou que eu poderia chamar de professor, embora tenha mais me desencaminhado que encaminhado para alguma coisa. Falo de Walter George Durst, dramaturgo celebrizado por suas adaptações para TV de grandes romances brasileiros, como Grande Sertão: Veredas, e a primeira versão de Gabriela, Cravo e Canela, com Sônia Braga no papel principal - um grande sucesso na época.

Durst era pai de um colega de classe, Marcelo Durst, com quem eu cursava por coincidência duas faculdades, a de Comunicação e a de Ciências Sociais, ambas na USP. Eu era um estudante duro e não perdia oportunidade de filar a bóia na casa de Durst, pai, não apenas para escapar do bandejão desestimulante do Crusp, o restaurante da Universidade, como para conviver com aquele homem que admiravelmente vivia somente de escrever.

Aos meus olhos ele levava não a vida que pediu a Deus, mas a vida que Deus pediu. Tinha uma bela casa numa rua arborizada, na vizinhança da USP, e trabalhava numa edícula recheada de livros e pôsteres de filmes brasileiros, alguns deles estrelados por sua mulher, Barbara Fazio, na época já uma senhora, ser deixar de ser bela. Vivendo entre livros, e cheio de tempo livre para amadurecer as ideias, Durst só tinha um compromisso, que era sagrado. Ia semanalmente à feira livre, não para fazer compras, mas escutar. Queria saber o que o povo estava falando, o que gostava, sentir a temperatura do que sabia ser seu público.

Naquela época, Durst era o único escritor de novelas da TV Globo que morava em São Paulo, e começou a formar um grupo de jovens autores, início de um núcleo de dramaturgia na cidade, que trabalharia para a TV Globo sob seu comando. Vínhamos conversando bastante sobre a arte de escrever, naqueles momentos após o almoço, em que o mundo parecia parar para o café. Eu me sentava com ele em sua sala de trabalho, onde havia um par de poltronas pequenas, e ali extraía dele tudo o que queria saber.

Formado na escola do cinema, Durst tinha em mente que o fundamento de qualquer obra de ficção era a criação de um conflito, essência não apenas da novela como de todo trabalho literário. Essa tensão era para ele o gerador de interesse contínuo, e não apenas momentâneo, na obra ficcional, de modo a fazer com que o espectador (ou o leitor, no caso do romance) permanecesse entretido até o desenlace.

Foi o único profissional das letras que me deu algum alento - e também conselhos. "Esse é um mercado muito pequeno, isto é, para pouca gente", dizia ele. "Mas, se você for bem, ficará rico". Naquela época, eu começara já a trabalhar como jornalista na revista Veja, onde ganhava um salário bastante razoável para alguém com pouco mais de vinte anos. E completou. "Vou te convidar para participar do núcleo de roteiristas, mas não largue seu emprego. Ainda."

O primeiro trabalho do núcleo paulista de dramaturgia da TV Globo foi uma série para as cinco da tarde - episódios de uma hora, que deveriam ter começo, meio e fim. Eram voltados para um público de mais idade, que segundo pesquisas era a maior audiência do horário. Durst pediu então a cada um uma sinopse, que mais tarde seria desenvolvida para se transformar em episódio. Cada autor entraria regularmente com um episódio inteiramente seu, numa sistema de rodízio.

Por aqueles dias, eu havia recebido na redação de Veja, dentro de um envelope meio sujo, uma longa carta de um executivo que soava em desespero. Narrava suas desventuras desde um acidente: batera o carro no veículo de um casal de velhinhos, que o ameaçara de processo e depois passara a chantageá-lo. Numa sequência kafkiana, o missivista dizia que tinha perdido em sequência o seu emprego, o dinheiro e, ao cabo, a mulher. Eu não via nenhuma reportagem a fazer com aquela história, mas achei-a de primeira mão para produzir o meu primeiro episódio da Série Brasileira.

Entreguei a sinopse a Durst, que a remeteu para avaliação da Globo no Rio de Janeiro. Chamou-me em sua casa para dar o retorno. "Olha, eles adoraram a história", disse ele. "Mas pediram para você tirar essa persona sacana dos velhinhos. Como o público é idoso, eles acham que isso pode indispor o telespectador com a série."

Protestei, claro. Se os velhinhos da história fossem bonzinhos, ela perderia completamente a graça, que estava justamente aí.

Por coincidência, naquela mesma semana, devido a uma série de mudanças nos quadros de Veja, recebi a notícia de que seria promovido a editor de assuntos nacionais da revista. Era um cargo importante, sobretudo para alguém tão jovem, e chave para a publicação. Eu cuidaria de editar todas as reportagens de alcance nacional, sobretudo da política, numa época em que o Brasil estava em plena ebulição, saindo de uma pesada crise econômica e entrando na reta para a primeira eleição presidencial em 30 anos, depois de uma angustiante e longa transição da ditadura militar.

Pensei no conselho de Durst ("não largue seu emprego"), e na frustração de, na TV, não poder escrever a história como eu desejava, mas moldado pela opinião dos executivos e seus charts do Ibope. De certa forma, mesmo tão jovem, eu partilhava da velha escola de Durst, que se valia muito mais de seus ouvidos, sua "pesquisa qualitativa" na feira de rua, de onde também vem a matéria bruta ficcional - a experiência humana, o contato pessoal, a emoção. Liguei para ele, agradeci, expliquei que com aquele convite de trabalho não poderia me dividir mais com o núcleo de dramaturgia e que tinha feito a minha opção pelo emprego.

Ele entendeu - e foi a última vez que falei com Walter George Durst, falecido há alguns anos. Muitas vezes pensei se deveria ter me arrependido dessa decisão, se não teria sido mais feliz (ou ficado rico) escrevendo para a TV. Mas a verdade é que, por muito tempo, não pensei mais em escrever ficção de qualquer espécie, dedicado como estava ao jornalismo. E voltaria a escrever ficção, novamente, por mero acaso - ou melhor, por uma indicação de outro dramaturgo, que, como nas melhores novelas, viria a ser o autor da segunda versão para a TV de Gabriela, Cravo e Canela.

Depois de Veja, trabalhei como editor de VIP, na época então um suplemento de Exame, onde dei emprego a certo dramaturgo que, depois de algumas tentativas não muito bem sucedidas, decidira voltar ao jornalismo para ganhar a vida até poder se recolocar na profissão com a qual sempre sonhara. Walcyr Carrasco, que já trabalhara em Veja, aceitou um modesto cargo de editor assistente, e escrevia reportagens de comportamento, o que ele fazia muito bem, devido à sua sensibilidade para abordar as pessoas e captar nuances - uma qualidade do jornalista que tem talento literário.

Walcyr escrevera alguns livros infantis e, quando sua editora, Maristela Petrilli, lhe pediu indicação de um autor, apontou meu nome. Levei uma hora para escrever Liberdade para todos, uma obra que, ao longo de uma década, seria adotada em muitas escolas e venderia mais de 150 mil exemplares. Era um livro singelo, mas que me despertou a vontade novamente de escrever ficção, e me ajudou a lembrar do que realmente os livros eram feitos - não de inteligência, mas de matéria emocional. E que o trabalho do ficcionista é ajudar os outros a trilhar caminhos, apresentando a si mesmo e suas experiências como uma espécie de laboratório.

Retomei o projeto de escrever o livro inspirado nas histórias de meu avô, que nunca foram além de uma transcrição de velhas fitas que eu guardava já como lembrança. Vinte anos depois, o romance finalmente tomou forma, diariamente, entre as cinco e as 9 da manhã, quando eu saía para o trabalho.

Naquela época, a mesma editora que lançara meu livro infantil incursionava na ficção adulta e me pediu os originais. tempos depois, voltou a resposta. A editora preferira me enviar o longo texto do parecerista, em que ele me chamava de "o Dostoiévski brasileiro", e acrescentava que, se vivesse no mundo contemporâneo, Dostoiévski teria seus livros recusado nas editoras, porque eram muito grandes. Por fim, recomendava que eu cortasse o texto pela metade, para que pudesse ser publicado com fins comerciais.

Aquilo, para mim, era um não - eu preferia procurar outra editora. E foi o que fiz. Junto com um livro do editor de moda Fernando de Barros, que eu ajudara como colaborador a se tornar um best seller (fazendo com ele "Elegância,", um guia de moda masculina), ofereci meu manuscrito à Siciliano. O editor, Pedro Paulo Sena Madureira, olhou-o como todo os editores - com um certo ceticismo, ou desdém. Porém, me conhecia como jornalista, e se viu obrigado a pelo menos ler algumas páginas.

Tempos depois, Pedro Paulo me anunciou que o livro seria publicado. Lera mais do que algumas páginas - bebera tudo. "Realmente o livro é grande", disse ele. "Mas o que é o seu defeito, é também sua qualidade." Surpreendentemente, o livro de Fernando de Barros venderia menos do que a editora esperava. E meu romance, do qual não se esperava nada, foi para a segunda tiragem e mais tarde para uma segunda edição. Logo eu publicaria na Siciliano meu segundo romance, O Homem Que Falava com Deus, que teria sua primeira reimpressão ainda antes da noite de autógrafos. Eu começara, dessa forma, uma carreira paralela, como sugerira Durst - até me sentir confiante o suficiente para deixar, enfim, meus empregos e viver, como vivi oito anos, apenas de escrever livros.

Hoje, Walcyr Carrasco desfruta o sucesso da segunda minissérie Gabriela. Por indicação dele, novamente, mudei-me há alguns anos para a Objetiva, quando a Siciliano foi tragada por dificuldades financeiras, junto com sua rede de livrarias. Certa vez, Walcyr me disse que era meu amigo porque sabia que eu não tinha inveja dele - algo raro entre intelectuais das letras. De fato. Eu não trocaria sequer um dos meus livros por todas as novelas de Walcyr, mesmo que não ganhasse dinheiro algum com eles.

Não é que eu desgoste das novelas de Walcyr, pelo contrário. Ele é um mestre no que faz. Só que eu, revendo minha trajetória desde as conversas com Durst, sei mais do que nunca que meu negócio é o livro. Não há maior recompensa do que escrever a sua própria história, aquilo que você quer, olhando para a rua, e não os charts dos executivos. Funciona. Descobri, como Durst, que fazendo isso a gente obtém a maior das recompensas, que é saber que a gente escreve sempre tem ressonância. Há gente que gosta, que compra, e ainda agradece por isso. O que faz de mim, dessa forma, entre todos, o mais grato.