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terça-feira, 16 de junho de 2020

Minha companhia silenciosa

Algumas vezes na vida, morei sozinho – e desta vez recorro ao psicólogo americano Anthony Storr, que publiquei em português como editor na Saraiva, para quem estar sozinho não significa necessariamente ser uma pessoa solitária.
Pelo contrário. Storr nos lembra que a ideia de que as pessoas só podem ser felizes juntas, coabitando no casamento, é uma invenção relativamente recente na história da Humanidade, datada da era vitoriana para cá.
Diz Storr que são muitas as fontes da felicidade, podendo ser escolhidas de acordo com cada um. O importante é nos sentirmos bem e encontrarmos a melhor forma de viver em cada um dos períodos da vida.
Estar em uma nova casa, desta vez, acabou me reaproximando de velhos amigos, que de vez em quando visito. Saem dos livros que enchem as estantes e carrego comigo aonde vou morar, alguns deles há muitos anos.
Dali vem ao meu encontro Storr, falecido em 2001, mas que ainda hoje me ajuda e acompanha no que de outra forma seriam apenas desorientados solilóquios existenciais.
Uma biblioteca é um cemitério de papel, com a diferença de que dali os mortos se levantam tanto quanto os vivos, no frescor humano, plenos de ideias, sentimentos e energia vital. Conversam comigo, quando folheio as páginas onde colocaram, estou certo, o melhor que tinham de si. Contam histórias, fazem confissões, trazem experiências, conhecimento, vivência humana.
Fico feliz e um tanto aliviado de estar hoje também entre eles – o meu canto da estante em que me coloco dentro de mais de uma vintena de livros escritos ao longo da vida, nos quais, pelo tempo em que os escrevi, dei, certamente, o melhor de mim.
Digo a todos estes meus amigos, espalhados por cerca de 3 mil volumes, carregados trabalhosamente de mudança em mudança, que não os abandono, nem abandonarei.
E que não me esquecerei de um dia juntar-me a eles, de maneira definitiva, para ressuscitar da mesma forma que hoje ganham vida, assim que eu me sento, bastando abrir o tablet ou, neste caso, a palma das mãos.

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

A Linha da Vida: a longa história de um breve romance


Em dezembro de 2009, fui conhecer a então nova Livraria da Vila do Shopping Cidade Jardim, em São Paulo, e fiquei extasiado diante daquelas prateleiras cobertas de livros e, no centro, o auditório envidraçado que parecia flutuar entre as estantes, obra do arquiteto Isay Weinfeld.

– Ah! – exclamei, ao lado do proprietário da loja, Samuel Seibel. – Dá vontade até de escrever um livro aqui dentro!


Samuel olhou para mim, divertido, e provocou:

– Por quê não?

Surgiu então a ideia do “Escritor na Livraria”. Samuel reservou para mim uma mesa, ao lado do auditório, no amplo mezanino da loja; eu passaria ali um mês, numa espécie de reality show.

Escreveria um livro naquela mesa e meu computador estaria conectado a outra tela, voltada para o lado contrário. Assim, as pessoas que circulavam pela loja poderiam ver o que eu estava escrevendo: um livro sendo escrito em tempo real.

Escrever é por definição um trabalho solitário; gostei da ideia não apenas por fazer algo diferente, como pelo fato de que o processo de trabalho poderia contribuir para o romance que eu vinha justamente imaginando.

Na época, eu andava sob o efeito da leitura de Kafka, e de uma frase, que acreditava ter lido em algum lugar, talvez Kierkegaarde, segundo a qual a felicidade depende da incerteza. Claro, imagine se todo mundo soubesse como irá morrer: a condição para ser feliz é não saber.

Tinha de ser um livro curto, de impacto, um desafio para mim, autor de livros de fôlego; com aquela estranheza, simplicidade e força dos livros de Kafka.


O tema da incerteza ganharia força pelo método: eu permitiria que as pessoas pudessem ler e interferir durante o trabalho, de maneira que eu mesmo não saberia qual rumo a história tomaria.

Quando me instalei na livraria, eu sabia apenas duas coisas: o título, provisório (“Ensaio sobre a incerteza”), e a frase inicial (“Você quer mesmo saber?”). O título cairia ao longo do trabalho, mas a primeira frase persistiu.

Eu começava 11 horas da manhã e encerrava o trabalho por volta das 18:00, num expediente normal de trabalho, incluindo sábados. A pessoas passavam, primeiro, desconfiadas; aos poucos ganhavam coragem e vinham falar comigo, para entender o que estava acontecendo.

No final da tarde, o resultado do trabalho era publicado em um blog, pelo qual os clientes da loja poderiam continuar acompanhando diariamente o andamento da história.

Com o tempo, as pessoas começaram a participar e colaborar de verdade. Vinha, sentavam na minha frente, faziam perguntas, davam sugestões e contavam experiências próprias.

Assim, fiquei sabendo que o nome que eu havia escolhido para a cigana não podia ser o que estava lá no início; troquei-o para Rosa, que, conforme fiquei sabendo, é um nome cigano.

Surgiram jornalistas para gravar entrevistas, fotografar e escrever sobre o evento; eles também liam o que eu escrevia, faziam a crítica e comentavam sobre o que mudava na história.

Lembro especialmente de uma mulher, que sentou à minha frente e contou longamente sua história. Tinha nascido numa cidade ribeirinha do Amazonas, uma vila de pescadores, distante da civilização. Certa vez, quando tinha nove aos de idade, ciganos passaram por ali; uma cigana velha a tinha visto, lera sua mão e dissera que ela ainda seria muito rica e viveria na capital.

Para quem habitava as barrancas do rio, na beira da floresta, aquilo parecia absurdo. Na adolescência, porém, ela visitou Manaus para realizar um sonho de criança: conhecer o teatro Amazonas. Lá, encantou um rico médico carioca com quem rapidamente se casou; foi morar no Rio, teve filhos e há quarenta anos eles formavam uma família feliz. “Eu acredito em ciganas”, ela me disse, antes de ir embora.

O curso da obra ganhou outra interferência importante, que mudou o rumo da história. Naquela época, o noticiário começava a repercutir as denúncias sobre o médico Roger Abdelmassih, dono de uma célebre clínica de fertilização em São Paulo, acusado de violar suas pacientes.

O assunto ficou por dias nas conversas dentro da livraria. Um médico inspirado em Abdelmassih (o doutor Perez, ou o “Monstro”, como as vítimas de Abdelmassih o chamavam) foi incorporado à história. O dr. Jekyll da época deu um novo elemento ao romance.

No mês que passei na livraria, conheci seus funcionários, que gostavam muito do que faziam; era bom conversar com eles sobre música, livros e arte em geral; passeei pelo shopping de carrinho de golfe com Papai Noel, de quem me tornei amigo. Vi Paolla Oliveira pelada, sozinho na sala de cinema, numa tarde em que uma tempestade de verão apagou a luz do bairro e não pude trabalhar – o Cidade Jardim tinha gerador e, além dos elevadores, o cinema era a única coisa que funcionava.

Encerrei o trabalho no dia 24, véspera de Natal, como planejara, deixando o livro incompleto – para escrever em casa o trecho final, que as pessoas só poderiam ler quando fosse publicado.
Eu estava satisfeito. E cansado: não é fácil obter a concentração necessária para escrever, com gente em volta interrompendo a toda hora, embora eu, como jornalista treinado a escrever em redações com mais de uma centena de pessoas, e romancista trabalhando em casa com filho pequeno, soubesse lidar com a perturbação razoavelmente bem.

O evento foi um sucesso: promoveu a nova loja e cheguei a ser convidado para repetir a proeza numa livraria em Lisboa, a convite do Sapo – o maior portal da internet em Portugal, que queria transmitir a redação do livro em tempo real com uma câmera “24 horas”. Agradeci, mas recusei: repetir o feito, ainda mais longe da família, por trinta dias, seria demais.

Como as surpresas do destino do qual trata, A Linha da Vida ficou parado no estágio em que encerrei o trabalho na livraria, por um longo tempo. Em novembro de 2009, quase ao mesmo tempo em que começava o meu reality show literário, recebi um convite para ser diretor editorial da Saraiva, então a maior rede de livrarias e uma das maiores editoras do Brasil.

Em janeiro, ao assumir o cargo, com a responsabilidade de desenvolver as publicações de ficção e não ficção da editora, me considerei impedido de publicar o romance: como editor não queria publicar meus próprios livros, porque pareceria conflito de interesses, ou causaria estranheza nos autores de quem eu deveria cuidar em primeiro lugar; em outras editoras, passava a ser considerado concorrente.

O livro permaneceu dormindo. Passou para trás na minha lista de prioridades, mais tarde, quando voltei à vida de autor, concentrado em novos projetos. A Vila acabou fechando sua maravilhosa loja no shopping, talvez por ser tão maravilhosa que fugia um pouco à realidade comercial, sobretudo nestes novos tempos.

Só agora, numa janela entre trabalhos, resolvi revisitar o texto e concluí-lo. Dei-lhe um final, até agora inédito. E decidi publicá-lo como e-book, de acordo com sua história, precursora dos atuais livros virtuais.

O texto se manteve fiel aos propósitos originais: o tema, o tamanho, a busca pelo impacto. Mudou um pouco, contudo, sua direção; criado ao sabor dos acontecimentos, ganhou mais foco quando percebi, afinal, por quê havia me interessado pelo tema e pela história.

Está concluído A Linha da Vida, um breve romance com uma longa história: resta agradecer a todos os que com ele colaboraram, incluindo o Destino.
Juncal, agosto de 2019

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segunda-feira, 18 de março de 2019

Um charuto no Hof

Quando fui editor de livros, eu tinha de frequentar regularmente a Feira de Frankfurt, uma cidade meio sem charme da Alemanha, mas que tem um dos meus lugares favoritos no mundo: o bar do Steigenberger Frankfurter Hof. Ou, simplesmente o Hof - mais célebre hotel da cidade, reduto histórico onde se encontram jornalistas, editores e autores, todas as vezes que o circo do mercado livreiro faz sua parada na cidade.

No hotel tradicional, marcam-se encontros, alguns de trabalho, outros para conhecer pessoas e rever amigos. Por duas ou três noites, durante o período da feira, o hotel se ilumina não apenas com os velhos candelabros como o burburinho das discussões de negócios no salão principal, tão cheio de histórias que envolvem a própria história do livro.

Da primeira vez que fui, lembro de ficar ombro a ombro com uma jovem italiana que pedia no bar do jardim uma garrafa de água, enquanto eu tomava nas mãos uma flute de champanhe.

- Mas você só bebe água? - perguntei.

- Não - ela disse, com um sorriso. - Mas é melhor assim, porque tenho de estar sóbria, amanhã tenho um compromisso de trabalho com um editor logo cedo.

Qual não foi nossa surpresa, e diversão, quando no dia seguinte, pela manhã cedo, ao aparecer no salão dos agentes literários para a primeira da série de reuniões do dia, descobri que o encontro dela era... Comigo. Foi assim que conheci Giulia Mignani, que na época trabalhava na agência inglesa Numberg e depois se tornou editora em Milão, na Mondadori.

O bar do Hof: ilha na intolerância 
No Salão do Hof, comemorei junto com as moças da agência Balcells o Nobel concedido naquela mesma noite ao escritor peruano Mario Vargas Llosa. Uma noite especial também para mim.

Eu tinha acabado de entrar na editora, sabia que estava perdendo Llosa como autor para outra editora, com o vencimento de antigos contratos, que soubera desde a minha chegada que não seriam renovados. Naquela noite, graças a uma boa lábia, à champanhe e o entusiasmo das agentes, consegui manter algumas obras de Llosa na Saraiva-Benvirá, agora impulsionado pelo Nobel, por algum tempo mais.

O que eu mais gostava no Hof, porém, era de chegar cedo, nas horas de silêncio. lha no mar da intolerância na qual se podia fumar charutos à vontade, no bar do Hof sempre reina um silêncio reverencial. Lá, num poltrona de couro, reflexivamente, eu me sentia muito mais à vontade que em meio à alacridade dos encontros sociais.

Fiquei amigo dos garçons e gostava de passar ali um tempo, antes que o salão se enchesse de gente, pelo simples prazer de estar ali. E por me juntar a todas as almas que lá conviveram e fizeram da literatura não apenas o grande reino exploratório da alma humana como um lucrativo negócio.

Assim, distribuía minhas vitoriosas baforadas, satisfeito de deixar também nele lugar, como volutas que vão se tornando invisíveis, um pouco de mim.

terça-feira, 6 de novembro de 2018

A crise do mercado do livro e o futuro da literatura


Nas últimas semanas, começaram a surgir as primeiras notícias mais concretas da queda anunciada do mercado editorial brasileiro, pelo menos da forma como o conhecemos.

A Livraria Cultura, segunda maior rede de livros do país, pediu concordata e entrou no período judicial em que precisa apresentar uma proposta de pagamento aos credores para não ser liquidada.

A Saraiva, que já vinha renegociando pagamentos com as editoras, depois de um período de inadimplência, cortou 20 da sua centena de lojas num processo de reestruturação que deve estar longe de terminar.

A Companhia das Letras, editora com um dos maiores catálogos do país, teve seu capital vendido para a Penguin Random House, que já era sócia minoritária e tem mais cacife para segurar as contas.

É o fim do livro? Não, é um novo começo. Entre as editoras, existe a tendência da concentração, para que as empresas possam ganhar com a chamada cauda longa - vendas de muitos títulos, agregadas, dão alguma receita. E aumenta a importância da publicação digital, ou da autopublicação, que deixa de ser a alternativa de quem foi rejeitado pelas editoras, para aos poucos tomar o lugar do mainstream.

Isso vale tanto para os livros de não ficção, aí incluída a autoajuda, que já tem grande força no livro digital, quanto na literatura. Ela, que assim como o cinema já teve seus arautos do apocalipse, não está acabando. Pelo contrário. Muda o processo de criação, de divulgação e comercialização, mas a literatura nunca foi tão importante e ativa quanto agora.

O romance sempre teve um papel fundamental no desenvolvimento humano. A literatura é a vanguarda das ideias, que são o começo da ação e, portanto, das grandes mudanças. Basta dar alguns exemplos do passado, como 1984, em que George Orwell já imaginava um mundo em que todos eram vigiados em tempo real. Ou Viagem à Lua, de Júlio Verne, que já previa no século XIX o disparo de um bólido tripulado ao satélite da Terra, para voltar com auxílio da gravidade lunar.

Tudo aquilo que se imagina hoje é o primeiro passo da realidade de amanhã. A literatura tem ainda o poder de penetrar na alma humana, formar o indivíduo, que nela pode recolhee a mais profunda e verdadeira fonte de ensinamentos: a experiência humana.

Em vez de perder com a crise do mercado editorial e do livro impresso, a literatura ganha força inaudita com o advento da internet. Ela permite que hoje qualquer um escreva em qualquer lugar do mundo - e seja lido.

Como atividade profissional, isso exige também uma adaptação aos novos tempos: a formação de redes de leitores e o uso de mecanismos de venda também virtuais. Mas isso não é o fim da literatura ou do livro. É, pelo contrário, sua renovação mais impactante desde Gutenberg.

domingo, 2 de julho de 2017

Um jornalista no próprio centro

Lá pelos anos 90, Paulo Nogueira queria ser escritor. Escrever ficção, romances policiais, aqueles tipo B (era fã confesso de Graham Greene). Não deu certo: a carreira executiva o ocupava demais, foi mais longe do que o costume para quem gostaria apenas de ficar escrevendo. Ele também não recebeu atenção das editoras. E desistiu.
Vivia me dizendo que ficção não dava dinheiro e, a única mágoa que escondia, não quis mais saber do assunto, nem quando dirigiu uma editora de livros inteira (a Globo) para publicar o que quisesse. Preferiu lançar um romance meu, Campo de Estrelas, que, não por coincidência, fala do câncer.
Como pequena compensação, ou por diversão, lá nos anos 90, quando desistiu do romance (e de outras coisas) criou um pseudônimo, Fabio Hernández, que colocou como colunista primeiro na antiga revista VIP, que dirigia, para falar o que ele achava serem as verdades masculinas. Especialmente na boca de um tio, que não sei se era verdadeiro ou um alter ego dele mesmo.
Minha homenagem pelo seu passamento é essa pequena revelação da sua identidade (nem tão secreta assim) e a sugestão de leitura de um texto típico de Paulo Nogueira/Hernandez, onde ele fala mais de si mesmo do que qualquer outro poderia.
(Veja ao final link do site El Hombre, por sinal de um filho dele, que parece seguir bem os passos do pai. Certamente o Paulo ficará lá, na arquibancada).
Eu e o Paulo divergimos em muita coisa, mas aprendi a respeitá-lo. Assim como acho que ocorreu pelo lado dele. (Suas últimas palavras para mim, depois que lhe mandei a capa de meu romance Anita, foram, pelo Messenger: "looks good".
Passei a respeitar Paulo, primeiro, por sua humanidade e solidariedade na doença (quando eu fiquei doente, depois dele, quando adoeceu a primeira vez). Era surpreendente como alguém que podia ser às vezes tão prepotente podia também ser tão afetuoso. Algo que hoje, olhando para o exemplo dele, já não me parece um paradoxo.
Segundo, respeitei Paulo pelo talento para escrever. Era um jornalista que, contrariando um princípio da profissão, não entrevistava ninguém: seguia suas próprias ideias. Dirigia revistas e inventou um site de sucesso sem praticamente sair da sua cadeira.
Inicialmente um blog, o Diário do Centro do Mundo referia-se a Londres, onde ele foi morar, quando todas as caravelas que podia pegar no Brasil estavam para ele queimadas. Mas, para quem o conhecia, o nome era uma irônica referência a ele mesmo. O centro do mundo tinha nome e sobrenome. E assim, do seu centro particular, gostando-se do conteúdo ou não, ele conseguiu fazer um site que no último mês de vida de seu criador teve mais de 3 milhões de visitas, com 15 minutos de média de leitura por view.
Paulo foi ainda, e não menos importante, um esportista apaixonado, que jogava futebol e tênis mesmo puxando um pouco de uma perna, o que eu achava ser essencial e simbólico em sua biografia. Paulo lutou por sua vida e suas ideias com paixão, acima dos seus defeitos, das mazelas humanas e da opinião alheia.
Sim, paixão. Aquela força que é a razão de todos os sucessos, assim como de todos os fracassos, que ele igualmente conheceu.

http://www.elhombre.com.br/a-maior-plateia-de-um-homem-e-seu-pai/







domingo, 11 de setembro de 2016

O que você faria se soubesse que tem pouco tempo?

O que você faria se soubesse que tem pouco tempo?

Em 2003, depois de um período de trabalho que faria de qualquer um a pior pessoa do mundo, eu estava sentado diante da mesa do urologista Eric Wroclavski, que anunciou assim a descoberta casual de um tumor na minha bexiga, com um sorriso no rosto:

- Você teve sorte.

Sorte? Eu, com 36 anos, tinha um tumor. Sorte?

- Teve sorte, porque descbriu por acaso um tumor a tempo de poder se curar - disse ele.

Tumores são assintomáticos, daí que muita gente os descobre quando é tarde demais. Tempo é essencial. Eric marcou a operação para dali alguns dias, apesar de sua agenda estar cheia. "Não vou deixar ele com esse pólipozinho aí", disse a um assistente. Fui operado, fiz o tratamento, duro, e cinco anos de acompanhamento. Foi o mesmo Eric que me deu a notícia da cura. E recomendou que eu ficasse sempre de olho. Para não depender da sorte.

O que eu não sabia é que, na mesma época, Eric tinha descoberto que ele mesmo tinha um tumor. Na próstata. O mal que ele operava. Só que ele, Eric, o tinha descoberto tarde demais. Eric não contou a ninguém. Não contou à família: a mulher, também médica, e os filhos, médicos. Nem mesmo os médicos que trabalhavam em sua equipe sabiam. Conversava com colegas sobre seu caso nos Estados Unidos. E, sendo médico, se automedicava.

Tínhamos, em nossas consultas, longas conversas sobre a  doenaç e a vida. Ele dizia admirar o meu humor - um tanto ácido, é verdade - quando eu falava das fatalidades prosaicas da existência. Eu admirava sua vontade de trabalho. Eric era incansável. Perdi a conta de consultas das quais saí às duas horas da manhã, depois de esperar minha vez, sem reclamar, horas a fio.

Eu o respeitava, porque era um missionário. Atendia o maior número de pacientes que podia, incansavelmente. Horas depois, às seis da manhã, estava já no Einstein, fazendo cirurgia. Parecia numa jornada insana para salvar o maior número de pessoas que pudesse - dar a elas a chance que não tivera para si. Frequentemente tinha os olhos vermelhos: praticamente não dormia. E engordava a olhos vistos. Eu não sabia, mas era por conta dos remédios, com os quais procurava atrasar o progresso inevitável da doença.

Eric me fez viver, e estava morrendo. E só ele sabia disso. Quando um dia não aguentou mais as dores, e entrou no Einstein, dessa vez não como médico, mas para se internar, fiquei estarrecido. Todas as nossas conversas de repente mudaram de sentido. A começar pela frase: "Você teve sorte". Sim, entendi que tivera sorte, a sorte que lhe faltara.

Percebi que as muitas perguntas que ele me fazia não eram somente por minha causa, para saber como eu lidara com a doença. Eram perguntas do interesse dele mesmo, Eric.

Escrevi um romance em que coloquei a história do tratamento ficcionalmente. Em Campo de Estrelas, Eric aparece com o nome de Roger (na verdade, seu nome do meio). Fui visitá-lo no hospital e levei o livro. Eric estava na cama. De ótimo humor. Dali, ele despachava assuntos da associação dos urologistas, que presidia. Mesmo da cama, comandava tudo: seu tratamento, os enfermeiros, seu consultório.

Li para Eric, ao lado da cama, os trechos do romance em que ele aparecia. Primeiro ele fez uma queixa: "Por que você não colocou meu nome de verdade?". (Mais tarde, eu saberia que esse romance já foi muito lido para pacientes internados em hospitais). E eu também fiz uma queixa.

- Por quê você não me contou que estava doente?

Ele disse então que tinha descoberto a doença tarde demais e não queria viver sob o seu signo: os outros olhando para ele como doente. Queria ter uma vida normal, o mais que pudesse. Perguntei também por que ele, sabendo que tinha pouco tempo, trabalhava tanto, e não tinha usado seu dinheiro para viajar, ficar mais com a família ou fazer outra coisa qualquer. Ele me respondeu com uma pergunta.

- Se você soubesse que tem pouco tempo de vida, faria o quê?

Não precisei pensar muito.

- Acho que continuaria escrevendo. O mais que pudesse.

Ele falou, mas eu já sabia o que iria dizer.

- Então. Fiz o máximo o que sempre quis fazer.

Fui embora pesaroso. Foi a última vez em que o vi. Ao me despedir, eu o agradeci. E disse, apontando o livro, com um pouco de raiva:

- Vocês médicos não sabem nada. Eu sou o único que dá a vida eterna.

Eric morreu em 2009 e sua presença ainda não está só nos livros, mas em todas as pessoas que ajudou, seus familiares, amigos e em mim, que ainda estou por aqui. Com frequência penso nele e confiro se estou usando bem o tempo que me resta. É doloroso perder um grande homem e, posso dizer, um inesperado amigo. Acho que devo ainda escrever uma continuação de Campo de Estrelas e contar o resto da história. Afinal, é o que eu faço e farei, como ele, até não poder mais.

E você?  O que você faria se soubesse que tem pouco tempo?

domingo, 23 de agosto de 2015

A era da ignorância

Vejo na internet um vídeo com entrevista da minha agente literária, Luciana Villas Boas, na qual ela afirma que a literatura brasileira perdeu espaço de influência na cultura brasileira. É verdade, mas o que vemos hoje com as redes sociais é um fenômeno ainda mais amplo, em que não apenas a literatura como a leitura - matéria prima para as ideias - perdem seu espaço, numa era em que a informação nunca foi tão farta.

A internet trouxe para o mundo contemporâneo um grande paradoxo. A era da informação, contraditoriamente, é também a era da ignorância. Graças à internet, ficamos sabendo como a civilização ainda é pobre - ontem vi um vídeo, por exemplo, de uma gincana na França em que um concorrente, entre quatro alternativas, cravou que a Terra gira em torno da Lua. Quem tem visto filmes franceses sobre educação sabe que até no país mais culto do mundo ela anda em baixa.

As pessoas se acomodaram - é mais fácil ver um vídeo ou distrair-se com bobagens na internet do que aprender algo construtivo. A mesma facilidade com que se faz compras de supermercado por meia dúzia de cliques faz também com que o ser humano deixe de pensar, tanto quanto de sair de casa. Ambas as coisas são importantes para aprender.

Já ouvi muitos relatos sobre jornalistas que vivem atrás do computador. Não vão para a rua, não fazem reportagens, não conhecem pessoas.  Não têm, portanto, conexões nem experiência de vida. E esse é um capital essencial para quem quer escrever, seja informativa ou literariamente.

Há trinta anos eu escrevo todos os dias e me surpreendo com tantos novos "escritores" surgindo na internet. Fazem vídeos e dão entrevistas como se soubessem tudo sobre escrever, sobre o mercado, sobre a vida. Mesmo assim, quem começou a carreira na imprensa diária, no tempo da máquina de escrever, sabe que escrever é experiência e treino - exceto, talvez, na poesia. E isso falta, e muito, na literatura que surge no meio virtual.

Escritores da era digital tendem a tomar conta do mercado porque são jovens, geralmente não precisam sustentar família e têm mais tempo para fazer seu marketing virtual. Vão ocupando espaço e dando a impressão de que isso é a literatura contemporânea. O mesmo acontece em outras áreas da comunicação. A internet oferece espaço de manifestação para uma série de minorias que fazem muito barulho, porque ocupam espaço nas redes sociais. Com isso, dão a falsa impressão de que são maioria. Ou de que têm razão. Multiplicam-se os donos da verdade de tal maneira que a internet se torna enfadonha.

Lógico que se pode encontrar inteligência na internet, assim como espaços com informação relevante e confiável. Porém, a internet favorece o nivelamento por baixo em larga escala . A mediocridade tende a ganhar ainda mais espaço porque as pessoas até agora não têm dado devida importância ao fato de que informação de qualidade - incluindo  a literatura, que é informação para o desenvolvimento intelectual e emocional - precisa ser um serviço remunerado, como sempre foi. Os internautas em sua maioria ainda preferem o espaço onde está na verdade o lixo da informação, apenas porque ele é gratuito.

Os jornalistas tradicionais não aprenderam direito a fazer uso das novas mídias; ao contrário, são boicotados dentro delas, em movimentos promovidos por neo blogueiros para desacreditar o profissional da informação e ocupar o seu espaço, ou por gente financiada de forma escusa por interesses de outra maneira indefensáveis. Os profissionais precisam aprender a navegar como os neófitos e voltar a transformar a missão de escrever, seja de forma informativa como literária, de uma maneira que isso continue a ser de fato uma profissão, entendida como uma especialidade da qual alguém pode tirar seu ganha-pão.

A redução do hábito da leitura de jornais e livros impressos parece indicar que o terreno livre da internet representará uma nova seleção natural. Existirão os livros e veículos de informação digitais, mas as regras do que é bom não mudaram. Conteúdo de qualidade estimula a leitura e vice-versa. A reentrada dos profissionais no mercado pode ajudar a devolver qualidade à informação e a restabelecer a ordem das coisas: os neo blogueiros é que terão de se esforçar para aprender como esse negócio funciona, e os jabazeiros ficarão expostos, por contraste.

Está mais que na hora de isso começar. 




terça-feira, 26 de maio de 2015

O médico e o escritor: uma história do lançamento de A Conquista do Brasil

Lançar um livro dá um certo nervoso, mas eu sempre tive experiências maravilhosas nessas noites de festa, que me lembram do motivo pelo qual eu escrevo, e a verdadeira natureza da conexão que fazemos com as pessoas.

Quando lancei Amor e tempestade, em 2009, apareceu uma moça trazendo um exemplar de O Homem Que Falava com Deus, um romance de 2003. "Mas o livro não é esse", eu disse. Ela respondeu que sabia, claro, mas pedia que eu autografasse aquele. "Queria te mostrar isso." Abriu o livro, folheou-o na minha frente: e não havia uma única página que não estivesse cheia de linhas sublinhadas ou de comentários nas margens. Estava tudo rabiscado. "Li o teu livro pelo menos 20 vezes", ela disse, para meu espanto. "Marquei cada frase." Reparei, porém, que as últimas vinte páginas estavam completamente limpas. "Não li o final", disse ela. Diante do meu espanto, explicou: "É que eu não quero que ele acabe."

Livraria da Vila, Shopping Higienópolis, quarta feira passada, 20 de maio de 2015.  Lançamento de A Conquista do Brasil. Entre parentes, amigos e leitores, surge na minha frente à mesa de autógrafos uma colega de faculdade a quem não via há trinta anos, o que já seria uma maravilha. Ela, porém, coloca na minha frente um exemplar de Campo de Estrelas.

"Mas esse não é o livro", digo eu.

"Eu sei", ela responde. "Mas eu queria que você autografasse esse aqui, para o meu marido." E disse o nome dele.

Ela explicou então que o marido estivera internado com câncer no pâncreas. E que lera para ele o meu romance no hospital. Campo de estrelas é baseado na história do meu próprio tratamento de um câncer de bexiga, mesclado à história meio mágica de uma viagem que fiz quando adolescente com meu pai, Alipio. Presente e passado se fundem para dar coragem diante da maior das angústias. "Esse livro foi muito importante para ele", disse. "Ajudou-o a sair do hospital."

Impressionado, perguntei onde estava o marido dela. "Está por aqui mesmo", ela disse. Não havia tido, porém, coragem de vir com ela me pedir autógrafo pessoalmente. Disse que podia chamá-lo, seria um prazer conhecê-lo. Atendi mais uma ou duas pessoas e ela voltou, desta vez com o marido. Levantei e fui falar com eles.

"Eu só vim para te agradecer", ele disse. "Seu livro me ajudou muito, você não faz ideia de como é importante para mim. No hospital, cada dia eu queria viver até o dia seguinte, para saber como ele continuava."

Disse também que conhecia o médico que inspirava o personagem do livro: Eric Roger, cirurgião do Einstein, que me operou e tratou. "Mas você faz o quê?" - perguntei. "Eu sou médico", disse ele.

Resolvi também fazer uma confissão. Quando Eric revelou que estava com câncer terminal, fato que escondeu por muitos anos, e ficou meses internado no Einstein, eu fui lá visitá-lo. E também li Campo de Estrelas para Eric, sentado ao lado da cama. 

Achei que seria bom aliviar a emoção do momento. 

"Acho que esse é mesmo um livro para ser lido em hospitais, como a revista Caras no cabelereiro", disse.

Rimos. Mas o abraço que aquele homem me deu na despedida trouxe a certeza de que, se não tivesse servido para nada mais, todo o meu esforço escrevendo livros estaria recompensado ali.

Lançamentos trazem surpresas. E dão energia para continuar. Meu próximo livro será um romance. Vamos ver o que acontece em fevereiro de 2016.

http://www.saraiva.com.br/campo-de-estrelas-5246424.html
http://www.saraiva.com.br/o-homem-que-falava-com-deus-4404472.html












terça-feira, 7 de outubro de 2014

"Não tenha pressa, mas não perca tempo"

O jornalista José Ruy Gandra, que certa vez entrevistou o escritor português José Saramago, foi quem ouviu primeiro a frase lapidar, seu conselho para jovens escritores: "Não tenha pressa, mas não perca tempo".

Fiquei com a frase, pérola de sabedoria que serve para tudo, porém é especialmente importante para a tarefa de escrever. Há dentro dela mais do que simples filosofia: há um mecanismo de trabalho que define o próprio ato de escrever.

Escrever é pensar no papel. É preciso, para que um texto saia perfeito, haver uma sincronia entre ambas as coisas; certamente Saramago sabia disso como ninguém. Por vezes, se estamos ansiosos com o que vamos escrever, ou pensamos rápido demais, mais rápido do que podemos escrever, pulamos algo importante. Se as ideias não fluem, o texto não sai. Escrever tem, como se diria em inglês, o seu pace - o seu tempo, uma espécie de cadência, em que pensamento e escrita fluem juntos.

Esse fluxo em que se escreve pensando e vice-versa só é adquirido com a prática da escrita. Por isso, não basta o talento. Somente a prática faz com que o texto saia na tela do computador com naturalidade, da mesma forma com que as palavras saem da boca quando falamos. O discurso oral parece ser produzido sem pensar; na realidade, pensamos enquanto falamos. O mesmo ocorre com a linguagem escrita, com a diferença de que falamos desde pequenos, todos os dias, durante anos. Escrever com a mesma naturalidade com que se fala requer treinamento igual.

A pressa faz as palavras seguirem à frente das ideias, o que é contraproducente; escrever devagar faz o processo igualmente parar. Escrever requer paciência e o cumprimento de todas as etapas, frase a frase, parágrafo por parágrafo.

Claro que a sentença de Saramago se refere a mais coisas, ou principalmente a outra coisa. É muito fácil nos distrairmos diante da tarefa de escrever.É um trabalho pessoal, que não pode ser terceirizado. E que sempre requer a volta a uma certa sintonia quando temos que recomeçar depois de uma parada. Tendemos a querer fazer outras coisas, a fugir do trabalho, por receio de não conseguir realizar a mágica novamente, nunca mais. Por isso é importante não ter pressa, para fazer o serviço direito, mas não perder tempo. O tempo é a única coisa que temos.

Depois de escrever um livro de não-ficção, que deve sair pela editora Planeta em fevereiro próximo, estou pelo meio de um ambicioso romance, desafio diário que me dá tanto prazer quanto medo. Os anos de trabalho não eliminaram de todo a incerteza; por vezes, receio que uma coisa ou outra não fique tão boa; por vezes, resisto a recomeçar. Tento aproveitar os momentos de envolvimento com a história, que fazem o trabalho render mais. E sento diariamente diante da máquina, logo ao acordar, para que nada sirva de distração.

Penso em Saramago e João Ubaldo, que recentemente perderam a coisa mais importante para o escritor - o tempo. Eles me ajudam a ir adiante, sem perder tempo, nem o compasso.

Paulo Coelho, Deus e a função do editor



Ao assumir em novembro de 2.009 a direção editorial da Saraiva, para lançar livros de ficção e não-ficção, eu tinha dois desafios. O primeiro, como fazer uma editora que tinha a maior cadeia de livrarias do país vender também em outras redes e livrarias independentes. Segundo, que contribuía com o primeiro: como trazer grandes autores, que em geral estavam bem colocados em empresas concorrentes.

Com apoio da empresa, o primeiro desafio foi resolvido com a criação de uma marca: Benvirá, que seria divulgada por meio de um prêmio literário, entre outras ações. Precisávamos dar prestígio ao selo, colocando autores na Flip, por exemplo, o que viria a acontecer depois. Quanto a conquistar autores vendedores... Bem, esse era o maior desafio. Comecei a pesquisar autores de alta qualidade, que estavam meio abandonados, e eu poderia recuperar; autores novos, ainda despercebidos; e autores de calibre grosso que, com projetos sólidos, e dinheiro, eu tentaria conquistar.

A primeira oportunidade que surgiu foi justamente com o maior best seller brasileiro: Paulo Coelho. Naquela época, ele acabava de deixar sua antiga editora; seu primeiro livro em uma nova casa estaria em leilão. Enviei um e-mail para sua agente em Barcelona, Monica Antunes; marcamos para a feira de Londres, em abril seguinte, uma reunião.

O destino complica a vida das pessoas, sobretudo as sem experiência no ramo, como era o meu caso; naquele mês de abril, aconteceu na forma de um vulcão. A montanha, localizada na Islândia, resolveu bem naquela hora explodir; lançou uma nuvem de cinza sobre a Europa, que fechou os aeroportos; muita gente, como eu, teve cancelado o avião. Um dia depois da feira, onde, segundo eu acreditava, não tinha acontecido nada, li no jornal uma nota sobre a compra de Aleph, o novo livro de Paulo, pela editora Sextante.

Eu, que tinha com Monica aquela reunião, na expectativa de poder pelo menos fazer um lance, não podia estar mais frustrado. Tinha perdido o negócio, mas não a disposição. Mandei para ela nova comunicação. Disse que iria a Barcelona visitar alguns agentes, que gostaria de ter conhecido já em Londres, e pedia para falar com ela pessoalmente.

No dia marcado, hora marcada, eu estava lá: um prédio envidraçado na avenida diante do porto, onde ficava a Saint-Jordí. Cabelos curtos, olhos puxados, que deixam seu sorriso com um pouco da alegria chinesa, Mônica me recebeu na sala de reunião. "É um prazer te receber, mas não sei o que você está fazendo aqui", ela disse. "Como você sabe, eu já vendi o livro."

De fato. Eu, que às vezes compenso minha ignorância com certa ousadia, o que em geral se confunde com insolência, primeiro reclamei que ela tinha vendido o livro sem falar nada comigo. "É verdade", ela respondeu. "Mas o olhei o site da Editora Saraiva. É tão ruim que não sei como vocês fazem livro."

Não pude discordar. Desde que entrara, eu dizia que precisávamos de um site melhor, mais voltado para o varejo, necessidade do novo negócio. Me pediram para esperar, tudo seria reformulado. E, como costuma acontecer com medidas importantes mas consideradas pequenas nas grandes organizações, fiquei a esperar e esperar.

Disse então que estava ali porque tinha uma ideia para lhe dar. Ela tomou um choque, quase ofendida, beirando a indignação. "O Paulo não faz livro de encomenda!", avisou. Realmente, se há alguém que não precisa fazer um livro de encomenda, a cavaleiro dos seus milhões de livros vendidos em mais de 150 países, é Paulo Coelho. Isso, porém, não me abalou. "Mas você ainda nem ouviu a minha ideia!" Monica, mais uma vez surpresa, depois de olhar para mim, por desencargo, concordou.

Expliquei então o que eu imaginara. "Para mim, o Paulo é o grande fabulista do nosso tempo", eu disse. "Minha ideia é fazer ele reescrever as fábulas do Esopo, como fez la Fontaine. Na linguagem dele, voltada para o público contemporâneo. Seria um livro para crianças, mas que pode ser lido por qualquer um."

Mônica parou um instante: num estalo, em vez de me mandar embora com um piparote, comprou a ideia de imediato.

"Vou falar com ele", disse. Levantou-se inopinadamente, foi até uma prateleira na parede, e voltou dali com três livros. "Já que vocês têm na Saraiva a área educacional, poderiam fazer também isso aqui", ela disse, e me entregou os exemplares, num formato quase de livro de bolso. Eram O Alquimista, O Demônio e a srta Pryn e Verônika Decide Morrer, com um suplemento didático, uma coleção para ser vendida em escolas. Explicou que aqueles três livros eram usados por professores em países como Espanha, Estados Unidos e Portugal. "Talvez pudéssemos fazer isso também no Brasil."

Saí de lá desconfiado: estava bom demais. Já tomara uma surpresa antes, tomar outra não custaria nada. Ao chegar em São Paulo, porém, ao abrir o computador, estava lá: um e-mail do próprio Paulo, com um texto em anexo, em que ele, ainda antes de assinar qualquer contrato, e já trabalhando, perguntava: "é isso que você tinha em mente?". Era. Nascia aí o "Fábulas" de Paulo Coelho, que seria uma das maiores vendas durante a minha gestão.

Em um mês, criei uma página na internet só para o selo Benvirá - cartão de visitas que não dependia mais da grande reformulação prometida pela corporação. Negociei o contrato de Fábulas, e disse que faríamos os livros paradidáticos, com duas condições. A primeira: pelos livros didáticos, eu não pagaria nada de adiantamento autoral. Todo o dinheiro seria investido no trabalho com o professor. (Mais tarde, ela diria que eu fui o "editor mais duro" com quem negociou. Espantado, perguntei a razão. "Nunca tinha vendido um livro por zero", ela afirmou).

A segunda condição, no entanto, era a mais importante. Paulo Coelho sofria, sempre sofreu, uma grande rejeição do mundo intelectual no Brasil, incluindo o professor. Era um best seller, um autor popular, mas lhe faltava o prestígio qualitativo que faz entrar na escola um autor. A meu ver, isso acontecia porque os livros de Paulo, em português, onde sempre foram lançados inicialmente, tinham muitos erros: de ortografia, de lógica, de informação. Esses erros não afetavam outros países, onde Paulo tinha vendas e prestígio também, porque desapareciam na tradução.

Para vencer a resistência do professor, e convencê-lo a adotar os livros de Paulo, precisávamos de um produto impecável. Isso significava fazer os livros passarem por um implacável trabalho de edição.

Eu havia escutado que Paulo se recusava a ter seus textos editados e até mesmo revisados, o que deixava passar erros muitas vezes primários. Corria no mercado a lenda de que ele dizia receber aquelas palavras diretamente de Deus - portanto, seu texto tinha de sair como Ele mandava. Contei isso a Mônica. Ela respondeu que era tudo bobagem. E que eu podia fazer o trabalho que tinha de fazer.

Durante dois meses, além de fazer o material paradidático, com a ajuda de um professor, editamos e revisamos os três principais livros de Paulo, que se tornaram significativamente melhores na versão paradidática da Saraiva, comparada com a versão de varejo. A Saraiva começou a vender os livros para as escolas, um esforço árduo de convencimento do professor. E, paralelamente, o Fábulas saiu.

Todas as mudanças feitas no texto dos romances foram submetidos ao Paulo. Ele as aceitou, sem pestanejar. Deus também não fez nenhuma objeção. Na convivência do trabalho, meu conceito sobre ele subiu. Passei a respeitar Mônica, que o escritor Fernando Morais, meu amigo, chamava de A Bruxa, pela sua capacidade de catapultar um escritor brasileiro á condição de best seller mundial. Acho que foi recíproco. Eu e Monica nos tornamos amigos e nos encontramos muitas vezes, não apenas para falar de negócios. Ela é firme, dura e árdua defensora do seu autor, como tem de ser. Mas descobri que também é uma pessoa doce, sensível e de bom humor. E que aceita argumentos, quando são em benefício do negócio, bons para a editora, e o escritor. É, ainda, de uma simplicidade e modéstia exemplares. Quando lhe perguntei como tinha vendido Paulo no mundo inteiro, ela me respondeu, simplesmente: "batendo de porta em porta". Como eu, por sinal, também estava fazendo.

Muitas vezes penso que, se tivesse feito esse trabalho no início, Paulo não teria sofrido a rejeição que teve aqui, no Brasil. Nunca entendi por que os editores se furtaram a fazer seu trabalho, como tentei fazer. Nem mesmo Paulo Coelho, recebendo ou não suas palavras de Deus, acerta tudo. Ele é um gênio, que descobriu um filão literário a partir de sua experiência de vida, de sua intuição, de sua sintonia com o mundo e com os interesses do leitor. Esse é um talento que poucos têm. Mas é preciso ser rigoroso com o texto. Não basta ser criativo, nem mesmo genial. Qualquer um, até mesmo Deus, precisa de um bom editor.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Uma estrela da literatura brasileira



João Ubaldo Ribeiro escreveu sua obra maior, Viva o Povo Brasileiro, numa velha máquina de escrever, um aparelho mecânico, assestado sobre um caixote de madeira, na Ilha de Itaparica, sua terra natal. Dali saiu com um calhamaço debaixo do braço para o Rio de Janeiro, onde ficam as grandes editoras de livros e a aura de que precisam os escritores. E se tornou sem sombra de dúvida o maior escritor brasileiro contemporâneo.

Nunca mais João Ubaldo escreveu um livro tão bom, ambicioso e vasto quanto Viva o Povo Brasileiro. Ele era baiano e, embora gostasse de escrever, tinha preguiça de trabalhar, quanto mais num livro do mesmo calibre. Levei muito tempo para convencê-lo a escrever uma simples crônica, na época em que dirigia a revista VIP, e lancei uma série de relatos de viagem de escritores que acabaram reunidos em livro (Viagem Inteligente, da Geração Editorial). Antônio Callado, em seus últimos tempos de vida, escreveu sobre Roma. Lygia Fagundes Telles sobre Estocolmo. Luis Fernando Veríssimo, sobre Paris. Ubaldo, a muito custo, escreveu sobre Berlim, onde passara uma temporada, com uma bolsa do governo alemão. No texto, em que discorria sobre hábitos estranhos dos alemães, como nadar pelados no frio extremo, deixava o que foi a sua marca como cronista: a ironia, o bom humor, a observação arguta, e um ponto de vista que sempre tinha algo da velha baianidade.

Ubaldo não escreveu muitos grandes romances, nem deixou grandes personagens, como Gabriela e Tieta, de Jorge Amado. Porém, escrevia magicamente bem, e a marca da ironia e do fino pensamento fizeram da sua leitura sempre um enorme prazer. Dizia que, antes de começar a escrever, rezava um padre-nosso. A inspiração, embora seja um dom natural, ou resultado do trabalho, parece precisar sempre de certa interferência divina para fazer o bom texto acontecer. E ele dependia daquilo, porque vivia apenas de escrever, embora fosse formado em Direito, e não gostasse muito do trabalho árduo, como é o ofício de escrever.

Os livros secundários de Ubaldo, como O Sorriso do Lagarto, A Casa dos Budas Ditosos e sobretudo Sargento Getúlio, um primor do minimalismo literário, misto de ensaio político e humano, levados ao cinema e à TV, fizeram dele um escritor mais completo. Em Viva o Povo Brasileiro, narrativa histórica que dá dimensão não apenas à obra mas à formação da sociedade brasileira, Ubaldo se fez não apenas como romancista, mas um escritor ligado ao Brasil, que explica o Brasil, e forma o Brasil.

Por muitos anos, Ubaldo lidou com problemas de saúde, especialmente os ligados ao alcoolismo, que o deixou à morte. Para mim, era mais um caso comprovador de que ser escritor não se trata de escrever nem de ser publicado ou reconhecido, é viver no extremo do conflito existencial. Diante da luta contra o inevitável, da certeza de que a batalha da vida sempre é perdida, o escritor se lança numa jornada interior que só pode ser aliviada pelo desabafo das letras. E se torna, muitas vezes, um processo autodestrutivo.

Ubaldo sabia que, como qualquer outra coisa, a literatura é inútil para nos manter vivos. Ao morrer nesta madrugada, vitimado por complicações respiratórias, fechou aos 73 anos o capítulo que temera desde sempre. Ressentia-se de que sua obra pregressa tinha desaparecido das livrarias e de nunca ter sido tratado da mesma forma que as estrelas estrangeiras nas festas literárias aqui mesmo dentro do Brasil. João Ubaldo Ribeiro, porém, foi uma estrela da literatura brasileira, à qual ele deu mais brilho. E agora pode descansar no seu firmamento.

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Beleza interior

“Vem, disse ele, juntando minhas mãos como se me forçasse a uma prece. Desejei de repente sua boca nervosa que me mordiscava, e suas mãos que redesenhavam meu peito e me estrangulavam com meu próprio cabelo. Implorou algo em meu ouvido,algo em um idioma distante, tapando minha boca com seus dedos que borravam meu rosto de suor.”

O trecho acima, extraído da página 99 do romance Onça Preta (Benvirá), da jornalista, escritora e marchand Lucrecia Zappi, não vem de um romance erótico como Cinquenta Tons de Cinza e, apesar de ser uma obra de ficção escrita por uma mulher, não é exatamente um livro feminino. Relato sobre uma estudante de botânica que vai às terras silenciosas e de gente agreste da Chapada Diamantina, Onça Preta é uma viagem para o lugar que mais interessa aos homens: o interior das mulheres, feito de longos silêncios, de relações não resolvidas, de pensamentos dúbios, que constroem uma lógica aparentemente sem direção.

Com um mestrado em escrita criativa pela Universidade de Nova York, sob orientação de E. L. Doctorow, autor de Ragtime, Lucrecia trabalhou no caderno Ilustrada, do jornal Folha de S.Paulo, e hoje mora em Nova York, onde trabalha em uma galeria de arte. Fala várias línguas, casou várias vezes, nasceu em Buenos Aires, mas foi criada em São Paulo, e estabeleceu estranhas raízes no sertão brasileiro. Onça Preta é uma mistura disso tudo, resultado das divagações de uma mulher de nacionalidades múltiplas, em dúvida sobre o passado, envolta pelo presente e suscetível a um futuro em aberto.

É um romance de artista, não apenas no texto cheio de meandros, capazes de lançar luzes sobre o que os homens custam a entender, como nas ilustrações, feitas pela própria autora, que vai pespontando seu texto com imagens supostamente feitas pela personagem em seus cadernos – assim como um Post, um Eckhout ou um Darwin fora de época, a Beatriz, que é o alterego de Lucrecia, registra cenários, insetos, plantas e outros detalhes sutis da história. Incesto, mistério, diálogos secos, rumos nebulosos e um desfecho insólito traduzem o desafio humano: conviver com nós mesmos e entender os outros, sem julgamento e, talvez, sem esperança. (publicado originalmente na PLAYBOY de outubro)

quarta-feira, 13 de março de 2013

Os dez melhores filmes de todos os tempos

O cinema está tão perto da literatura que ambos para mim são uma coisa só: a arte de contar histórias escrevendo produz imagens, e as imagens para mim se tornam como referências literárias. Segue aqui a minha lista de filmes preferidos, que para mim vale como a lista dos dez melhores filmes de todos os tempos. Assim como a lista dos dez melhores livros, cada um deve ter a sua. Fica esta como inspiração.

1. Cidadão Kane. Pode parecer óbvio citar este que tantos consideram o melhor filme de todos os tempos, pela novidade narrativa (um filme de ficção feito como se fosse um documentário), a força elementar da ideia central (o significado de "Rosebud", somente revelado ao final), e sua ligação com a questão essencial da felicidade. Os clichês sempre têm um fundo de razão. O delírio de poder e dinheiro do milionário Kane, barão da imprensa, é confrontado com sua solidão final. A ironia é que o repórter em busca da resposta para o enigma de Kane jamais a encontra - ela fica como uma espécie de segredo reservado ao espectador.



2. Zabriskie Point. A obra prima de Antonioni, sobre um estudante que foge da polícia, encontra uma mulher no deserto e tem com ela um parênteses de amor, é uma elegia da liberdade. O final antológico ainda me faz palpitar o coração. O mundo sempre quer enquadrar o indivíduo, submetê-lo; nenhum outro filme representa tão bem a liberdade, nem mostra como ela está perto da paixão. Pelo tema, e também a estética, ele é também o expoente de uma geração marcada pelos movimentos de libertação, fosse contra as ditaduras que havia pelo mundo como dos costumes, desde a roupa ao Woman's Lib. Se querem saber como a geração de 1960 mudou o mundo, este filme mostra qual era a sua força interior.



3. O Esporte Favorito do Homem. Estrelado por Rock Hudson e Paula Prentiss, é uma deliciosa comédia sobre um expert de equipamento de pesca convidado por uma charmosa e desastrada marqueteira a participar de um torneio num lago turístico. Até mesmo eu não entendo bem o fascínio que esse filme exerce sobre mim, ainda mais sendo uma comédia aparentemente sem maiores pretensões. Acredito porém, que o motivo seja esse: ele é uma parábola irresistível sobre a inevitabilidade do amor, a conexão entre duas pessoas que aparentemente se detestam, e a natureza paradoxal da ligação entre homem e mulher, cujo encontro sempre parece ir além das coincidências, como uma prova da existência do destino. Isso contado sem nenhum intelectualismo, mas com a graça que deveria haver em todos os relacionamentos amorosos.



4. Blade Runner. Este é o filme que marcou minha geração; perdi a conta do número de vezes que o assisti, e sempre encontro nele alguma coisa de novo. Tenho certeza de que nem Ridley Scott se deu conta, quando o fez, da importância que esse filme teria; não é por acaso que tenha gerado tanta discussão ao longo dos anos. Persistem ainda duas montagens, uma feita pelo estúdio, no seu lançamento, outra que é chamada de "a versão do diretor". Eu gosto de ambas as versões, embora nos últimos anos tenha preferido a do diretor, que é mais sutil, e ao mesmo tempo mais abrupta e cruel. A ideia dos androides que adquirem sentimento e querem mais tempo para viver pode parecer um antigo clichê, mas a criação de um futuro onde o passado faz parte do cenário, do bairro chinês às bicicletas, o clima chuvoso de um planeta que se tornou inóspito, e sobretudo o personagem central, um detetive noir, fazem dele uma espécie de quebra cabeça cultural onde entretenimento puro e filosofia se fundem de um jeito que até parece natural. E é cheio de momentos antológicos, como o encontro do ciborgue assassino com seu criador, parábola de um encontro do Homem com Deus, sua declaração no momento da morte ("lágrimas na chuva") e a frase final que fecha o filme, de um impacto macabro que não fala somente ao personagem, mas a todos nós.



5. Os Embalos de Sábado À Noite. Clássico de um tipo de cinema considerado trash, foi um estrondoso sucesso de bilheteria e um fenômeno de massa em seu lançamento, que mudou o comportamento de toda uma geração. O que mais chamava a atenção eram os malabarismos de John Travolta ao som de Saturday Night Fever, mas o que o filme representava era a possibilidade de um sujeito comum e sem esperança de melhorar de vida e se tornar alguma coisa diferente - um nome com significado, por meio de um talento especial. Isso teve um impacto expressivo em todos aqueles garotos que viviam na periferia, como não mais que um número de RG. E que achavam que, como Tony Manero, poderiam sonhar com alguma coisa, numa época em que a sociedade de consumo de massa e a busca pelo hit alcançavam o seu auge. O figurino datado, a estética brega, os diálogos que hoje soam bisonhos retratam uma época que não existe mais; talvez esses sonhos de fama e riqueza também sejam hoje coisa do passado, ilusão passageira daqueles que, como eu, gostariam de recuperar esse tempo em que tudo era possível, até mesmo ser inocente.



6. O Cão Andaluz. Lembro quando vi o filme de Buñuel, quado ainda estava na faculdade, em uma sessão na Biblioteca Mario de Andrade, em São Paulo. O filme ainda causava escândalo, embora por razões diferentes das que provocara no seu lançamento. O gerente teve de vir à plateia irada, explicar que a projeção não havia sido interrompida de repente; para exasperação do público que reclamava seu dinheiro de volta, revelou que a obra prima do surrealismo tinha, de fato, apenas 20 minutos. Esse delírio que tanta gente buscou inutilmente explicar, onde Salvador Dali aparece puxando um burro morto dentro de um apartamento e um olho é cortado a navalha, numa sequência de cenas absurdas, foi feito para não ter sentido, ou para chocar; é uma provocação à imaginação, a ver diferente, a abandonar a necessidade humana de explicação para tudo; é uma elegia do caos universal, uma desconstrução do que sabemos. Por isso, mostra que a tarefa humana é desaprender, para entender melhor: nenhuma outra obra de criação tem esse peso intelectual, estético e histórico.



7. O Gabinete do Doutor Caligari. O impressionismo alemão nos deu essa pérola, que nos faz ver como podemos nos acostumar com a loucura; ao nos fazer entrar na realidade do louco, ao ponto de parecer a normalidade, passamos a duvidar de tudo, sobretudo de nós mesmos. Uma das grandes tarefas do cinema, a meu ver, é nos fazer mudar de perspectiva; seja para entrar no mundo do sonho, da fantasia, ou mesmo da loucura, seja para quebrar conceitos e pensamentos pré-estabelecidos como para entender o outro e anós mesmos; aí ele se transforma em arte. Com isso, abrem-se novas portas; ver diferente, quebrar paradigmas, é o que faz a sociedade dar novos saltos, assim como permite aos indivíduos compreender melhor uns aos outros, fugir da mesmice e encontrar melhores caminhos.


8. Amarcord. Federico Fellini fez grandes filmes, mas entre eles este é meu preferido, pela sua leveza; o retrato de um pequeno paese italiano, onde os humores, os sentimentos e o próprio modo de vida mudam conforme a estação é uma amostra perfeita do que é a Humanidade; faz com que entendamos como somos parte do mundo e, embora o homem tenha fundado sua subsistência no artifício das cidades e das máquinas, se integra à natureza em espírito. É um filme, por isso, instigante e cheio de humanidade; o gênio de Fellini em encontrar a beleza e a extravagância no cotidiano faz a gente olhar com mais atenção e enxergar de verdade a vida ao nosso redor.



9. Doutor Jivago. Um épico em todas as suas dimensões, mostra ao mesmo tempo a grandeza e a iniquidade da vida; a história do médico que encontra a ruína e a felicidade, ainda que breve, as trapaças do destino, a crueza da realidade, a beleza do momento; há pouca coisa que faz o fascínio, o drama e a complexidade da vida que não esteja dentro desse filme. Julie Christie, como está aqui, é a mulher mais bela que já vi no cinema; nem mesmo a interpretação lacrimosa de Omar Sharif tira a força da história de Pasternak. E são inesquecíveis os cenários grandiosos, como a cabana mergulhada na neve onde se realiza o amor de Jivago e Lara, da qual eu não consigo me lembrar sem ouvir o lírico som da balalaica.



10. 2001, uma Odisseia no Espaço. Stanley Kubrick só fez grandes filmes; todos eles poderiam estar numa lista dos melhores de todos os tempos, assim como todos os romances de Gabriel Garcia Marquez estariam numa lista dos melhores livros. A visão de passado e futuro como uma coisa só, numa espécie de cosmogonia, porém, faz com que este seja seu trabalho mais ambicioso. Recentemente, tenho pensando também em como Kubrick foi profético. As panes de computador, que hoje fazem aviões caírem, e carros acelerarem em vez de brecar, tornam bem realista o HAL - o computador de bordo que toma conta da nave e passa a matar seus tripulantes. Um filme ainda misterioso, intrigante, com um ritmo que nos obriga a entrar em outra dimensão, e que esteticamente não envelheceu, mesmo com a visão bem mais precisa que temos hoje do espaço; esta é aquela obra de arte que qualquer criador gostaria de ter feito, ainda que forneça mais perguntas que respostas. Porém... Não será assim a vida?







segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Prêmio Benvirá: por que não são anunciados os finalistas

Os motivos para manter certo sigilo em um concurso que vai além do nome vencedor



Muita gente pergunta por que a Editora Saraiva não anuncia os finalistas do Prêmio Benvirá. Explica-se.

Não se obriga, pelo regulamento, a divulgação da lista dos finalistas. Na verdade, não existem "finalistas", no sentido estrito, e sim uma pré-seleção de 10 originais, feita por nós, a equipe editorial, para auxiliar os jurados na escolha. Com um volume de 1.505 inscritos, seria difícil para apenas três pessoas examinar tudo o que chegou. Contamos para a pré-seleção com um software muito bem feito, que nos permite examinar a sinopse e o original e deixar nele uma bandeira - "em análise" (amarelo), pré-aprovado (verde), aprovado (azul) ou reprovado (vermelho). Depois, pode-se capturar somente os arquivos estabelecidos como "pré-aprovados" e, por fim, "aprovados". Sem tal programa, seria impossível fazer a seleção de forma tão criteriosa e num prazo tão curto.

Os dez finalistas, portanto, não são finalistas no sentido formal. Os jurados têm acesso à lista completa de inscritos, com seu perfil e a sinopse dos livros. Somente a leitura da compilação de nomes, perfis e sinopses de 1.505 participantes equivale a ler um livro do tamanho de Guerra e Paz, consumindo dos jurados um bom tempo. A partir dessa lista, eles podem pedir vistas de qualquer original. Luis Brás, por exemplo, pediu para ver cinco obras que não estavam na lista de dez (depois de examinar os cinco, ficou com os dez que havíamos pré-selecionado). Anna Maria Martins também pediu vistas de mais dois originais, além dos que lhe entregamos (e também os eliminou em seguida). Isso serviu para reforçar a confiança que a equipe de jurados tem na pré-seleção. E assim eles puderam se dedicar mais à leitura dos manuscritos que passaram pela nossa peneira.

O trabalho da equipe editorial garante que todos os originais sejam examinados, mesmo aqueles de autores que não sejam conhecidos pelos jurados. A lista de dez reflete o que acontece na prática: havia 5 autores estreantes, e outros cinco selecionados entre autores já publicados por grandes editoras, a maioria deles já vencedores de outros prêmios, incluindo o Jabuti.

Existem outros motivos para não se divulgar os finalistas. Muitos dos originais são tão bons quanto o vencedor. Na escolha de qualquer prêmio, infelizmente o vencedor só pode ser um. Às vezes é uma escolha entre obras muito parelhas. Por isso, sempre defendi a ideia de que seria injusto revelar as outras obras, que não podem ser vistas como "perdedoras" num processo que sempre tem algo de subjetivo. Elas têm muita qualidade e eventualmente podem serem consideradas tão ou mais "comerciais" quanto a obra ganhadora.

Por fim, os autores publicados por grandes editoras que chegaram perto de vencer o prêmio não teriam a ganhar com esse tipo de divulgação - pelo contrário, talvez se sentissem desprestigiados por aparecer numa lista de quem tentou e não chegou lá. Qualquer lista, para ser divulgada, precisaria de uma consulta prévia aos participantes. E basta um deles não concordar com a divulgação da lista, para que não faça mais sentido ela vir a público.

Quando propus à Editora Saraiva levarmos adiante o prêmio, pensava não apenas promover a literatura como levantar originais inéditos de qualidade, de autores publicados ou não. Por acompanhar as negociações, observo que mesmo os autores já publicados têm interesse em ver seu livro publicado com o selo Benvirá. Todos os autores que foram pré-selecionados pela equipe editorial, com originais excelentes para publicação, em princípio interessam.

Aos poucos, a lista dos "finalistas" vai naturalmente aparecer no calendário de lançamentos da Benvirá, que vai lhes dar tanta importância quanto ao vencedor do Prêmio. E espero que ambos, autores e editora, venham a colher os frutos de todo esse esforço: os autores, por escrever e participar; a editora, pelo investimento e todo o trabalho que envolve a premiação. A todos, desejo o que se pode desejar de melhor, nesse caso: o reconhecimento pelo sucesso do livro no mercado.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Os 10 melhores livros de todos os tempos

Para os alunos do Escreva Bem, Pense Melhor que me pediram na Casa do Saber uma lista de livros para ler, segue algo que escrevi há algum tempo - minha lista (muito pessoal, claro) dos 10 melhores livros de todos os tempos.

*


Muita gente pergunta qual é a minha a lista dos dez melhores livros de todos os tempos. Ou quais são as dez leituras que julgo indispensáveis. Claro que não li tudo o que existe no mundo, que cada um pode fazer sua própria lista e que ela é bastante subjetiva. Mas quem quiser pode usar esta lista, ou fazer a sua e comparar.

1 – A Bíblia. O livro essencial da Humanidade é uma história familiar. Conta a saga dos descendentes de Adão e Eva e a complicada convivência com seu temperamental Criador, entidade onisciente que lhes deu a vida para depois tirá-la. Seus descendentes partem em busca da reconciliação com a divindade e a recuperação da promessa da vida além da morte.

Ao fazer a opção por comer o fruto da Árvore do Conhecimento, o casal que simboliza a Humanidade renuncia à existência perene no paraíso e à obediência ao Pai opressor em troca de bens ainda mais importantes: o livre arbítrio e o amor.

Além desta mensagem fundadora da civilização, a Bíblia é cheia de dramas que nem Shakespeare inventaria, lindos poemas e passagens poderosas, como o Livro da Sabedoria, escrito pelo sábio rei Salomão (o meu pedaço preferido das escrituras), e a história igualmente poderosa e cheia de ensinamentos de Jesus nos evangelhos de Lucas e de São Mateus, os que a contam melhor.

2 – Fédon. É a Bíblia dos agnósticos, assim como Sócrates é o Jesus dos intelectuais. O melhor, mais famoso e mais importante dos diálogos de Platão relata o último encontro do célebre filósofo ateniense com seus discípulos. Já condenado à morte pelos juízes da Cidade-Estado por “subversão” dos jovens, a quem ensinou o livre pensar, Sócrates discute a existência da vida além da morte enquanto a cicuta vai agindo lentamente em seu organismo.

Despede-se da existência fazendo o que sempre fez, como uma reafirmação do direito à liberdade e ao pensamento, grande dádiva do homem,aquilo que dá sentido e valor à vida. O mestre deixou impacto profundo em seus discípulos e em todos aqueles que têm o privilégio de ler a narrativa de seu mais célebre aluno.

3 – A Ilíada, de Homero. Primeiro grande épico da Humanidade, Homero deu à vida uma nova dimensão. Para ele, homens podiam ser quase deuses, assim como os deuses eram quase homens. Ele criou o guerreiro perfeito em busca da imortalidade (Aquiles) e consagrou o ideal grego de que o maior bem de um homem não é sua vida, mas a glória, especialmente a conquistada pela coragem em batalha, pois ela é a única coisa que o ser humano pode eternizar de si mesmo.

4 – Vidas dos Homens Ilustres, de Plutarco. Maior historiador da antiguidade, o romano Plutarco traçou o perfil de importantes personagens do passado, alguns dos quais foram seus contemporâneos ou haviam deixado registro para ele recente. Além de dar à luz a muito do que sabemos hoje sobre a Humanidade, Plutarco mostra que o centro da história é o indivíduo – a única força capaz de mudar o mundo.

Em sua vasta obra, também conhecida como Vidas Comparadas, certamente o tomo mais interessante é o que faz um paralelo entre os dois maiores gênios políticos e militares de todos os tempos, para que se possa eleger o maior: Alexandre Magno e Júlio César.

5 - A Divina Comédia. O mergulho de Dante e Virgílio no além é a mais bela e poderosa alegoria sobre a condição humana. Depois de mergulhar no inferno, no purgatório e no céu, guiado pelo poeta, Dante nos faz refletir sobre o que seria conhecer a morte – e depois poder voltar.

6 – Hamlet, de Shakespeare. Todas as obras do velho bardo mereceriam menção numa lista da melhor literatura em todos os tempos. Para dar mais espaço aos outros, porém, fico com a clássica tragédia que dispensa todo o trabalho posterior de Freud, ao colocar a mãe no papel de traidora, o filho no do continuador e vingador do pai, e sobretudo que coloca o ser humano diante da angústia eterna de não saber de onde veio, nem para quê: “ser ou não ser, eis a questão”.

7 – Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. Retrato complexo do ser humano, a obra máxima do gênero picaresco e talvez de toda a literatura ficcional é também a que melhor retrata a mais bela diferença do ser humano para as outras feras: a capacidade de sonhar. Sonhando, Quixote de velho miserável se vê herói; faz uma era épica de um tempo mesquinho; alimenta a vida com um amor inexistente e enfrenta aventuras que, como tudo, são obra de sua imaginação.

Porém, em sua ilusão, o pobre Quixote não terá dado à sua vida miserável também uma dimensão incomparável, a grandeza que há na vida de todos nós, mesmo do ser humano mais medíocre? O que separa da loucura a realidade desta nossa existência? O homem que vê gigantes no lugar dos moinhos de vento nos diz uma grande verdade: somos importantes não pelo pelo fazemos, mas pelo que acreditamos. Graças a Cervantes, um louco nos mostrou a razão.

8 – A Metamorfose, de Kafka. A fragilidade da alma humana, vista como algo separado do corpo, é o tema desta pequena e genial obra da literatura que, em perspectiva histórica, podemos chamar de contemporânea. Ao se transformar em uma barata, o personagem central, um alter ego do próprio Kafka, separa também a alma e o que somos do corpo e de toda a aparência, apenas para nos mostrar a impossibilidade de sermos compreendidos pelo próximo e o fundo de nós mesmos – seres irremediavelmente perdidos em nossa inconsolável solidão.

9 – Sidarta, de Herman Hesse. Fundador do gênero “auto-ajuda” na literatura, Hesse também foi o primeiro autor ocidental a ver a profundidade e o interesse na sabedoria oriental. Sua parábola do rio como símbolo da vida - sem começo, meio ou fim, apenas água que é a mesma na nascente, no leito e na foz - é recorrente em minha obra literária. Até hoje procuro acreditar na eficácia da receita do jovem brâmane Sidarta para resolver todos os problemas da vida com três palavras mágicas: pensar, esperar e jejuar.

10 – Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Para colocar um romance brasileiro na lista das dez leituras obrigatórias, vai este que é o nosso melhor livro de ficção em todos os tempos. Relato biográfico escrito por um morto, com a visão muito peculiar de alguém que analisa sua vida a posteriori, Machado trata com a mais fina ironia o dilema central da Humanidade e apresenta em sua crueza máxima a insignificância e a inconsequência da existência humana.

Eu poderia colocar no lugar deste livro o Quincas Borba, que faz o mesmo, só que por meio da narrativa do cachorro. Em um caso ou outro, Machado apresenta a vida humana como algo realmente minúsculo diante do tempo, das estrelas e do universo infinito, mas que em algum lugar, foco de resistência dessas alminhas pensantes que constituem a Humanidade, sobrevive com um sorriso no canto da boca.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Prêmio Benvirá: o processo de seleção

No dia 30 de novembro de 2012, à meia-noite, encerraram-se as inscrições para o segundo Prêmio Benvirá de Literatura. Como na primeira edição, um grande número de participantes deixou para enviar seus originais na última hora. Dos 1.505 inscritos, cerca de 400 fizeram o upload de seu trabalho nos momentos derradeiros.

Prêmios literários geram muita polêmica, como se viu nas duas últimas edições do Jabuti. A escolha do vencedor sempre tem um componente subjetivo, por mais que se queira otimizar os critérios. No caso do Jabuti, discutiu-se muito o regulamento em 2011 porque permitiu ao segundo colocado na categoria romance (Chico Buarque) participar da votação para o Livro do Ano, o prêmio final. Porém, esse não era nem é o maior problema do Jabuti. Diferentemente da escolha nas categorias, feita de forma mais técnica, por profissionais que precisam ler os livros para dar suas notas, o Livro do Ano é escolhido em votação dos membros da CBL. Profissionais que, embora conhecedores do mercado, em geral não leem os livros concorrentes - e votam invariavelmente naquilo que conhecem mais, ou por afinidade.

Em 2012, discutiu-se o resultado na categoria Romance porque um dos jurados utilizou-se da possibilidade de dar notas baixas aos livros que queria ver fora da disputa para favorecer os de sua preferência. O resultado, surgido dentro do regulamento, foi ratificado. O vencedor foi justamente Nihonjin, vencedor do primeiro Prêmio Benvirá. Para o livro do ano, votou-se em alguém mais conhecido dentro do mercado que o estreante Oscar Nakasato, de Nihonjin. Um resultado mais discutível que o primeiro, do corpo técnico. Estou certo de que os pares da CBL não leram Nihonjin para julgar e certamente foram influenciados pela repercussão na imprensa da polêmica em torno do chamado Jurado C.

Essas pressões em torno dos prêmios literários aumentam ainda mais a responsabilidade pelo Prêmio que instituímos na Editora Saraiva. Embora patrocinado por uma companhia privada, e não uma entidade, como é o caso do Jabuti, o Benvirá rapidamente ganhou espaço entre todos aqueles que desejam ter seu livro publicado por uma grande editora, e atrai também um bom número de autores consagrados, publicados por editoras de primeira linha, interessados não apenas no prêmio em dinheiro, como também na publicação. A vitória de Nihonjin na primeira edição sobre autores consagrados, assim como aconteceu no Jabuti, mostra que a qualidade do conteúdo tem prioridade sobre a assinatura do autor no nosso processo seletivo. Isso prova que o Prêmio busca de fato promover a literatura e dá real oportunidade a autores de qualidade ainda desconhecidos do mercado.

Acreditamos que a qualidade prevalece, mesmo no aspecto comercial. Esta é uma boa oportunidade para demolirmos de vez a falácia de que livro ruim vende mais, enquanto a literatura mais refinada (ou, como chamam a "ficção literária") tem necessariamente um público restrito. Cito alguns exemplos que derrubam facilmente esse mito. Garcia Marques é ótimo e vende bem. Vargas Llosa também. É esse o padrão que procuramos obter com o Prêmio e ele reveste toda a política editorial do selo Benvirá.

A seleção do Benvirá é feita pela equipe editorial de ficção e não ficção da Saraiva, que criteriosamente analisa o material enviado pelos participantes, a começar pela sinopse. Todos os originais são abertos e, se não são lidos por inteiro, recebem uma análise tida como suficiente para se verificar que o texto tem padrão para concorrer ao prêmio.

Muito a nosso favor conta o software que criamos para permitir a análise de um volume tão grande de originais. Cada obra tem uma página específica dentro do sistema, com os dados cadastrais do autor e sinopse. E pode ser classificada conforme o estágio em que se encontra: novo cadastro (ainda não examinado), em análise, pré-aprovada e aprovada. Depois da primeira peneirada, restaram cerca de 130 trabalhos "em análise". Na segunda, ficaram 25 originais considerados "pré-aprovados". Eu e mais dois editores, então, elaboramos, cada um, uma lista de dez. Confrontamos nossas listas. Os trabalhos mais votados formaram a nolista final com de "aprovados".

No início de janeiro, os trabalhos aprovados serão entregues, impressos, ao triunvirato que forma o júri, a título de indicação da equipe editorial. Os nomes dos integrantes do júri serão revelados somente com o do vencedor, para evitar qualquer tipo de interferência no processo de escolha, como acontece com o Jabuti. Os jurados podem pedir qualquer original inscrito, se quiserem - ou seja, podem solicitar um original que tenha ficado para trás na escolha dos editores. Não precisam necessariamente, portanto, ficar restritos às indicações feitas no processo seletivo da equipe editorial. Vão reunir-se em fevereiro, em data ainda a ser definida, e a portas fechadas, para poderem decidir, de forma independente, quem será o vencedor.

O vencedor do Benvirá será anunciado ainda em fevereiro, e o livro sairá junto com a premiação, em abril de 2013. Os originais selecionados pela equipe editorial têm boas chances de receber também propostas para publicação, como aconteceu na primeira edição, da qual saíram quatro novos autores, além de Nakasato. Por ter examinado a maioria dos originais, e todos os selecionados, posso dizer que o nível dos trabalhos melhorou muito da primeira para a segunda edição do prêmio. Ninguém sabe se o vencedor do Benvirá será um autor já publicado por outra editora ou não, nem se ganhará também o Jabuti. Mas que o Benvirá se tornou um evento importante na promoção da literatura nacional, está bastante claro.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

O Prêmio da Vida


Em 2008, o escritor paranaense Cristóvão Tezza ganhou todos os prêmios literários importantes, em especial o Jabuti, o São Paulo e o Brasil Telecom, que lhe renderam cerca de meio milhão de reais. Perguntado pela revista Serafina sobre o que mudara em sua vida, Tezza foi um tanto lacônico. “Eu me acostumei com a indiferença”, disse ele. “Anos e anos de escrever sem ser lido me deixaram com a casca grossa.”

Entre a glória do prêmio e o dinheiro, Tezza apreciou mais o dinheiro. Disse que deixaria de dar aulas na universidade, o que até então vinha sendo seu sustento, necessário para quem estava na literatura desde a década de 1960 sem jamais ter se tornado conhecido nacionalmente como agora. Com o salário do magistério é que ele sustentava o filho com síndrome de Down, então com 28 anos, e cuja história narrava em O Filho Eterno, o romance-documentário que o levou enfim ao sucesso literário.

Tezza mereceu o prêmio, não apenas pela luta incansável de anos, pela qualidade do texto, como pela coragem de trazer seus sentimentos mais íntimos num livro que fala de uma árdua mas rica experiência de vida. O fato de fazê-lo quase três décadas anos depois do nascimento do filho mostra quanto amadurecimento foi necessário para que pudesse ter a serenidade necessária ao tratamento do assunto.

O Filho Eterno simboliza muito do que é a literatura. Um homem tem um filho deficiente e somente ele sabe quanto lhe custaram as noites em claro, o medo, a luta pela sobrevivência, sem nunca abandonar o sonho de escrever romances, uma atividade que não lhe permitia sobreviver.

A sensação de que os prêmios não têm muita importância, para alguém como ele, vem muito do fato de que, na realidade, por melhores que sejam, livros são pequenos quando a vida é grande. Um leitor poderá comprar O Filho Eterno e ler tudo em duas horas, por um punhado de reais, mas para o autor aquelas linhas significam uma vida inteira.

Em duzentas páginas, Tezza concentrou seus sonhos, sua batalha, aquilo que de melhor e de pior toca um coração. Na vida real, o campo verdadeiro de batalha, a glória literária não vale nada. A vida é premiada de outras formas: com o amor e o reconhecimento da família e das pessoas queridas e, sobretudo, pelo orgulho de nós mesmos e do que fazemos. Se temos isso, não importa a resposta do mercado, que se nos dá o sucesso ou o fracasso, o prêmio ou a indiferença. A vida é o que vale.

Um romance feito apenas para ganhar um prêmio, sem nenhuma relação importante com aspirações e sentimentos do autor, está fadado a ser esquecido, mesmo com um destaque temporário. Por outro lado, um livro muito importante para quem o escreve continuará a sê-lo, ainda que passe completamente despercebido. Escrevemos antes de mais nada para nós mesmos, como prova Tezza ao fazer, em O Filho Eterno, um acerto de contas, um balanço de sua vida.

Ao ser sincero ao extremo, ele obteve, até, o sucesso de mercado. O Filho Eterno consagrou não um autor, mas uma pessoa cujo empenho de uma vida por outra culmina com a sua obra sintetizadora. Mais importante que a literatura é a relação que Tezza certamente tem com seu filho e processo pelo qual passou, relatado no livro: a surpresa, depois a rejeição, por fim a dedicação integral àquele ser humano dependente que transforma sua vida por completo, exigindo pesados sacrifícios, mas que eleva o ser humano pelo caminho da emoção.

O esforço humano, seja o de criar um filho deficiente, como batalhar por alguma coisa que valha a pena (mesmo que seja uma causa perdida) é que fazem um homem grande. Ainda que ele permaneça na obscuridade, como ainda há tantos por aí. Não importa o destino do romance e do escritor. O que importa é a experiência vivida e o que isso lhe deixou como bagagem.

A educação, como a medicina, é das difíceis e mais gratas atividades humanas. Trabalhar pela educação e um futuro melhor para jovens e o país é o que de melhor se pode fazer, depois da cura e da paternidade. Se Tezza conseguiu escrever o Filho Eterno cuidando de uma criança com limitações e dando aulas, não devia fazer algum dinheiro mudar sua vida. Pois o dinheiro acaba, mas a luta, esse prazer do bem realizado, continua sendo não apenas o fomento da boa literatura, como o principal objeto da vida.

Perto disso, como parecem pequenas todas as veleidades literárias.