Mostrando postagens com marcador Campo de Estrelas. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Campo de Estrelas. Mostrar todas as postagens

domingo, 11 de setembro de 2016

O que você faria se soubesse que tem pouco tempo?

O que você faria se soubesse que tem pouco tempo?

Em 2003, depois de um período de trabalho que faria de qualquer um a pior pessoa do mundo, eu estava sentado diante da mesa do urologista Eric Wroclavski, que anunciou assim a descoberta casual de um tumor na minha bexiga, com um sorriso no rosto:

- Você teve sorte.

Sorte? Eu, com 36 anos, tinha um tumor. Sorte?

- Teve sorte, porque descbriu por acaso um tumor a tempo de poder se curar - disse ele.

Tumores são assintomáticos, daí que muita gente os descobre quando é tarde demais. Tempo é essencial. Eric marcou a operação para dali alguns dias, apesar de sua agenda estar cheia. "Não vou deixar ele com esse pólipozinho aí", disse a um assistente. Fui operado, fiz o tratamento, duro, e cinco anos de acompanhamento. Foi o mesmo Eric que me deu a notícia da cura. E recomendou que eu ficasse sempre de olho. Para não depender da sorte.

O que eu não sabia é que, na mesma época, Eric tinha descoberto que ele mesmo tinha um tumor. Na próstata. O mal que ele operava. Só que ele, Eric, o tinha descoberto tarde demais. Eric não contou a ninguém. Não contou à família: a mulher, também médica, e os filhos, médicos. Nem mesmo os médicos que trabalhavam em sua equipe sabiam. Conversava com colegas sobre seu caso nos Estados Unidos. E, sendo médico, se automedicava.

Tínhamos, em nossas consultas, longas conversas sobre a  doenaç e a vida. Ele dizia admirar o meu humor - um tanto ácido, é verdade - quando eu falava das fatalidades prosaicas da existência. Eu admirava sua vontade de trabalho. Eric era incansável. Perdi a conta de consultas das quais saí às duas horas da manhã, depois de esperar minha vez, sem reclamar, horas a fio.

Eu o respeitava, porque era um missionário. Atendia o maior número de pacientes que podia, incansavelmente. Horas depois, às seis da manhã, estava já no Einstein, fazendo cirurgia. Parecia numa jornada insana para salvar o maior número de pessoas que pudesse - dar a elas a chance que não tivera para si. Frequentemente tinha os olhos vermelhos: praticamente não dormia. E engordava a olhos vistos. Eu não sabia, mas era por conta dos remédios, com os quais procurava atrasar o progresso inevitável da doença.

Eric me fez viver, e estava morrendo. E só ele sabia disso. Quando um dia não aguentou mais as dores, e entrou no Einstein, dessa vez não como médico, mas para se internar, fiquei estarrecido. Todas as nossas conversas de repente mudaram de sentido. A começar pela frase: "Você teve sorte". Sim, entendi que tivera sorte, a sorte que lhe faltara.

Percebi que as muitas perguntas que ele me fazia não eram somente por minha causa, para saber como eu lidara com a doença. Eram perguntas do interesse dele mesmo, Eric.

Escrevi um romance em que coloquei a história do tratamento ficcionalmente. Em Campo de Estrelas, Eric aparece com o nome de Roger (na verdade, seu nome do meio). Fui visitá-lo no hospital e levei o livro. Eric estava na cama. De ótimo humor. Dali, ele despachava assuntos da associação dos urologistas, que presidia. Mesmo da cama, comandava tudo: seu tratamento, os enfermeiros, seu consultório.

Li para Eric, ao lado da cama, os trechos do romance em que ele aparecia. Primeiro ele fez uma queixa: "Por que você não colocou meu nome de verdade?". (Mais tarde, eu saberia que esse romance já foi muito lido para pacientes internados em hospitais). E eu também fiz uma queixa.

- Por quê você não me contou que estava doente?

Ele disse então que tinha descoberto a doença tarde demais e não queria viver sob o seu signo: os outros olhando para ele como doente. Queria ter uma vida normal, o mais que pudesse. Perguntei também por que ele, sabendo que tinha pouco tempo, trabalhava tanto, e não tinha usado seu dinheiro para viajar, ficar mais com a família ou fazer outra coisa qualquer. Ele me respondeu com uma pergunta.

- Se você soubesse que tem pouco tempo de vida, faria o quê?

Não precisei pensar muito.

- Acho que continuaria escrevendo. O mais que pudesse.

Ele falou, mas eu já sabia o que iria dizer.

- Então. Fiz o máximo o que sempre quis fazer.

Fui embora pesaroso. Foi a última vez em que o vi. Ao me despedir, eu o agradeci. E disse, apontando o livro, com um pouco de raiva:

- Vocês médicos não sabem nada. Eu sou o único que dá a vida eterna.

Eric morreu em 2009 e sua presença ainda não está só nos livros, mas em todas as pessoas que ajudou, seus familiares, amigos e em mim, que ainda estou por aqui. Com frequência penso nele e confiro se estou usando bem o tempo que me resta. É doloroso perder um grande homem e, posso dizer, um inesperado amigo. Acho que devo ainda escrever uma continuação de Campo de Estrelas e contar o resto da história. Afinal, é o que eu faço e farei, como ele, até não poder mais.

E você?  O que você faria se soubesse que tem pouco tempo?

terça-feira, 26 de maio de 2015

O médico e o escritor: uma história do lançamento de A Conquista do Brasil

Lançar um livro dá um certo nervoso, mas eu sempre tive experiências maravilhosas nessas noites de festa, que me lembram do motivo pelo qual eu escrevo, e a verdadeira natureza da conexão que fazemos com as pessoas.

Quando lancei Amor e tempestade, em 2009, apareceu uma moça trazendo um exemplar de O Homem Que Falava com Deus, um romance de 2003. "Mas o livro não é esse", eu disse. Ela respondeu que sabia, claro, mas pedia que eu autografasse aquele. "Queria te mostrar isso." Abriu o livro, folheou-o na minha frente: e não havia uma única página que não estivesse cheia de linhas sublinhadas ou de comentários nas margens. Estava tudo rabiscado. "Li o teu livro pelo menos 20 vezes", ela disse, para meu espanto. "Marquei cada frase." Reparei, porém, que as últimas vinte páginas estavam completamente limpas. "Não li o final", disse ela. Diante do meu espanto, explicou: "É que eu não quero que ele acabe."

Livraria da Vila, Shopping Higienópolis, quarta feira passada, 20 de maio de 2015.  Lançamento de A Conquista do Brasil. Entre parentes, amigos e leitores, surge na minha frente à mesa de autógrafos uma colega de faculdade a quem não via há trinta anos, o que já seria uma maravilha. Ela, porém, coloca na minha frente um exemplar de Campo de Estrelas.

"Mas esse não é o livro", digo eu.

"Eu sei", ela responde. "Mas eu queria que você autografasse esse aqui, para o meu marido." E disse o nome dele.

Ela explicou então que o marido estivera internado com câncer no pâncreas. E que lera para ele o meu romance no hospital. Campo de estrelas é baseado na história do meu próprio tratamento de um câncer de bexiga, mesclado à história meio mágica de uma viagem que fiz quando adolescente com meu pai, Alipio. Presente e passado se fundem para dar coragem diante da maior das angústias. "Esse livro foi muito importante para ele", disse. "Ajudou-o a sair do hospital."

Impressionado, perguntei onde estava o marido dela. "Está por aqui mesmo", ela disse. Não havia tido, porém, coragem de vir com ela me pedir autógrafo pessoalmente. Disse que podia chamá-lo, seria um prazer conhecê-lo. Atendi mais uma ou duas pessoas e ela voltou, desta vez com o marido. Levantei e fui falar com eles.

"Eu só vim para te agradecer", ele disse. "Seu livro me ajudou muito, você não faz ideia de como é importante para mim. No hospital, cada dia eu queria viver até o dia seguinte, para saber como ele continuava."

Disse também que conhecia o médico que inspirava o personagem do livro: Eric Roger, cirurgião do Einstein, que me operou e tratou. "Mas você faz o quê?" - perguntei. "Eu sou médico", disse ele.

Resolvi também fazer uma confissão. Quando Eric revelou que estava com câncer terminal, fato que escondeu por muitos anos, e ficou meses internado no Einstein, eu fui lá visitá-lo. E também li Campo de Estrelas para Eric, sentado ao lado da cama. 

Achei que seria bom aliviar a emoção do momento. 

"Acho que esse é mesmo um livro para ser lido em hospitais, como a revista Caras no cabelereiro", disse.

Rimos. Mas o abraço que aquele homem me deu na despedida trouxe a certeza de que, se não tivesse servido para nada mais, todo o meu esforço escrevendo livros estaria recompensado ali.

Lançamentos trazem surpresas. E dão energia para continuar. Meu próximo livro será um romance. Vamos ver o que acontece em fevereiro de 2016.

http://www.saraiva.com.br/campo-de-estrelas-5246424.html
http://www.saraiva.com.br/o-homem-que-falava-com-deus-4404472.html












terça-feira, 13 de janeiro de 2015

As fotos perdidas de uma grande aventura

Em 2005, publiquei pela editora Globo o romance Campo de Estrelas, em que narro de forma ficcionada uma viagem que fiz com meu pai Alipio a Machu Picchu, por terra, percorrendo o legendário caminho que incluía o Trem da Morte e outras aventuras. Eu tinha dezesseis anos de idade e as memórias dessa viagem substituíram outra viagem que, no livro, planejávamos fazer - o caminho de Santiago de Compostela.

Para os leitores desse romance, que tem muitos aficcionados, uma revelação, surpresa também para mim. No romance, como aconteceu de fato, as mochilas dos personagem são roubadas no caminho de volta, no quarto do hotel em Santa Cruz de la Sierra. Com elas, vão-se também os rolos de filme que, além dos registros de viagem, confirmariam a existência do incrível personagem, misto de mendigo e messias, trajado com trapos e um capacete de desbravador espanhol, apelidado de Homem de Lata. (O Homem de Lata existiu. Nós o vimos uma única vez, num bar em La Paz, onde entrou com um rei).

Remexendo nos meus arquivos de imagem, copiadas de algum antigo CD, junto com outro material, surgiram quatro fotos dessa viagem. Creio que estavam no rolo da câmera fotográfica (naquele tempo um acetato), que meu pai levava consigo, enquanto o ladrão surrupiava nossas coisas no hotel. Isso deve ser sido copiado com outras fotos e ficou perdido no meu arquivo virtual.



Todas as imagens são de um trecho da viagem, justamente aquele em que o taxista nos abandonou em meio ao deserto do altiplano, com outras duas brasileiras que diviam conosco o carro e o custo do trajeto. O homem receava ser interceptado por grevistas que segundo se dizia tinham fechado a estrada, e decidiu voltar a La Paz, rompendo o combinado, e levando o dinheiro, pago adiantado.

Caminhamos todo o dia no deserto, no clima incômodo do frio andino, porém sob o sol implacável, ainda mais forte por conta do ar rarefeito. Salvos por um caminhão do exército em algum ponto entre La Paz e a fronteira com o Peru, atravessamos o lago Titicaca e alcançamos, à noite, a pequena, salvadora e fanstasmagórica cidade de Copacabana.

Numa das fotos, feita por meu pai, estou eu com as brasileiras, depois de descer do táxi, com as bagagens ao chão. Eu e meu pai preferimos encarar o deserto a, como elas, voltar a La Paz, onde não havia condução, por causa da greve. Na Bolívia, ainda mais naquele tempo, se avançava como possível, porque não havia o que chamamos de normalidade.



Nas outras fotos, o belo, árido e implacável cenário do altiplano, com detalhes por vezes bizarros. O pequeno pueblo é aquele em que uma chola nos salvou da fome, oferecendo um pedaço de queijo de cabra impregnado de terra que permaneceu na memória gastronômica como a melhor coisa que já comi, por pior, mais suja e nauseante que de fato fosse.



Para quem não leu o romance, ele pode ser encontrado em formato digital, no link abaixo. A versão impressa pode ser encontrada nos sites das livrarias, mas, ah, vai ficando tão rara quanto as fotos.

http://www.amazon.com.br/Campo-de-Estrelas-ebook/dp/B00EDXV2S4/ref=sr_1_2?s=digital-text&ie=UTF8&qid=1376421275&sr=1-2&keywords=thales+guaracy

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Caminhando com as estrelas


Há alguns anos, sentado na mesa do bar São Cristóvão, em São Paulo, meu pai disse que gostaria de fazer a caminhada de Compostela, aquela mesma, celebrizada por escritor Paulo Coelho, e que virou uma espécie de clichê da paregrinação nos últimos anos. Como sempre, meu pai fizera o convite daquela forma ("eu vou, quem quiser vai comigo"), eu sabendo que o "quem quiser" era comigo. Passamos uma porção de tempo planejando a viagem, mas, por motivos que eram dele, aquilo era sempre adiado.

Isso resultou num romance, publicado em 2007 pela Editora Globo, chamado Campo de Estrelas. Contava a história de um "publicitário", recém saído da luta contra um tumor na bexiga, que encontra o pai num bar e planeja, por sugestão do pai, a viagem a Compostela. O livro acaba e a viagem nunca acontece. É lembrada uma outra viagem, que realmente fiz com meu pai aos 16 anos, quando ele estava na idade que tenho hoje, 48. Foi uma jornada que fizemos de São Paulo a macchu Picchu, or terra, uma aventura de adolesc~encia, inesquecível para ambos. No livro, como na vida real, a caminhada de Compostela, mesmo, não acontece. Mas o que acontece entre os dois, pai e filho, é que é o importante.

Em outubro passado, meu pai voltou com a ideia de andar para Compostela. As circunstâncias eram semelhantes, mas ao contrário. Dois anos atrás, foi ele a ter um tumor na bexiga. Durante um ano, urinara sangue sem que os médicos lhe dessem uma razão, muito menos a cura. Levei-o a um dos médicos que trataram de mim, anos atrás. Por sorte, meu pai também pôde se curar. Se antes o filho é que saíra de um momento delicado, agora era a vez do pai. Ele disse que agora a caminhada ia acontecer, não importava como. E marcamos uma data para a partida, que se tornou sagrada: hoje.

Entre Campo de Estrelas, o romance, e a viagem de verdade, que começa agora, muita coisa aconteceu. O médico que cuidou de mim quando eu estava doente, Eric Wroclavski, faleceu. Foi vítima do mal que travata: um tumor na próstata, que ele descobriu, por ironia do destino, tarde demais. Não revelou a ninguém que estava doente. Descobriu estar desengandado ao mesmo tempo em que eu descobrira meu polipozinho. Naquele tempo, ele me dissera: "Você tem sorte". Eu não entendia como podia ter sorte com uma notícia daquelas. Hoje, relendo aquele encontro, sei que ele dizia isso porque ele, Eric, não recebera do destino a mesma oportunidade. "Você descobriu a dopença em tempo de se curar", disse ele.

Fui ao hospital visitar Eric, quando ele estava já na fase terminal da doença. Levei, comigo, Campo de Estrelas, onde ele é identificado pelo segundo nome - Roger. Li para ele as partes do livro em que aparece. Preso à cama, sem poder se mexer, reviu nossas conversas, que não eram de médico e paciente, mas de amigos, um procurando ajudar ao outro - eu, sem saber por que ele queria saber tanto de mim, onde buscava também força, por rumar mais rapidamente para a morte. Ao me despedir no hospital, sem saber o que dizer, talvez, ou resultado da confusão mental em que que nos deixa a angústia, fiz uma declaração absurda: "Médicos não salvam ninguém para sempre", disse eu, e apontei o romance deixado na cabeceira do leito hospitalar. "Eu é que salvo."

Depois de Campo de Estrelas, eu me casei, tive um filho, que hoje tem seis anos, escrevi mais um romance, Amor e tempestade, fui editor de livros, mudei novamente de trabalho, me separei, comecei há apenas um mês num novo emprego. Ao ser convidado para o novo trabalho, avisei que precisaria me ausentar a partir de hoje, por duas semanas - um compromisso sagrado. Meu pai diz que a caminhada tem de ser agora e nunca mais, pois se aproxima dos 80 anos - embora permaneça com um vigor impressionante, até ele sabe que não será sempre assim. Não penso em reviver a minha viagem com ele de adolescência, nem em escrever outro romance, mas sei de uma coisa: a presença é insubstituível. Somos amigos. E, quem sabe, Campo de Estrelas terá uma continuação, se não literariamente, pelo menos na minha vida, e na dele também.

Minha vida está uma bagunça. Comprei uma casa, há uma semana. Vou deixá-la desmobiliada, com uma porção de coisas pendentes. Preparei os assuntos de trabalho como pude para poder me ausentar. Beijei meu filho longamente esta manhã, ao deixá-lo na escola. Gravei mensagens para ele, para minha mulher, e sentei para escrever estas linhas. Ao meio-dia, parto, deixando tudo para trás. Encontrarei meu pai no aeroporto. É bom pensar que, por alguns dias, seremos nós dois, novamente, sem endereço certo. Não fizemos grandes preparações, como sempre. Não há um roteiro pré-definido, não sabemos onde nos hospedar, temos pouco ou nenhum equipamento. Como diz meu pai, vamos andar por lá, olhar as estrelas, e ver o que acontece. E, depois, vamos voltar.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Meu romance preferido



Existem os livros preferidos dos leitores. E os preferidos de um autor, entre seus próprios livros.

A quem pergunta qual de meus livros é meu preferido, uma só resposta: Campo de Estrelas. Talvez não seja meu melhor livro, em técnica, resolução ou mesmo ambição. Certamente é o que foi pior lançado. Todos os romances de um autor falam ao seu coração. Ele é meu preferido por uma só razão: as pessoas que envolve.

A primeira delas: meu pai. Claro que o pai do livro, inspirado nele, é quase ele. Claro que a viagem do livro, entre pai e filho que juntos rumam por terra a Macchu Picchu, foi também uma viagem de verdade. Coisas da literatura, a fantasia que acrescentei ao romance às vezes me parece muito real, tanto quanto a realidade pode parecer às vezes fantástica ou fantasiosa. O mendigo misterioso, travestido de rei em farrapos, foi um personagem que vimos de fato em La Paz. Que eu e ele não esquecemos.

Meu pai diz que não se lembra de detalhes que eu conto no livro. Fatos que eu tenho como reais podem ser mesmo fruto da imaginação. E ele lembra de coisas que já me escapam. Nunca saberemos ao certo. Já lá vão mnuitos anos, há a traição da memória e a diferença de pontos de vista. Mas foi estranho esse encontro de memórias por meio do livro. Foi estranho o simples fato de meu pai ter lido o livro. Ele, que me fazia ler todas as noites, antes de dormir, quando eu era um projeto de gente (ainda sou).

Sim, meu pai lendo um livro que escrevi. E, depois de ler, me deixou uma mensagem. Esta:

"Querido filho, prezado autor Achei lindo e comovente este final. É claro que sou suspeitíssimo não apenas por ser personagem, companheiro de personagem e pai do autor. Mas sobretudo admirador do estilo e sobretudo da coragem de se revelar publicamente. Fica sendo um livro de aventuras, diário de viagem, literatura juvenil, novela romântica, tudo dependendo da página em que o leitor estiver."

*

Outro personagem caro do livro é o do médico, identificado como Roger. Houve um Roger de verdade - Eric Roger Wroclavski, que tratou do pólipo na bexiga de que fui vítima, me salvando a vida.

Eric morreu há cerca de um ano, vítima de câncer na próstata, que descobriu quando já era tarde demais - ironia cruel, caiu pela doença que tratava. Eric era um herói, que lutava diariamente acima de forças humanas para salvar a quantos pacientes podia. Não sabiamos que ele mesmo sofria do mal que combatia diariamente, pois a ninguém contou da doença. Nem à família. Nem aos médicos que com ele trabalhavam.

Fui ao hospital visitá-lo. Li para ele os trechos do livro em que aparece. Achou que eu devia ter posto o nome dele de verdade. Se eu soubesse o que ele sabia, pensei, teria escrito um romance muito melhor. Nem o mais imaginativo ficcionista poderia imaginar que o médico estava mais doente que o pacioente, e as perguntas que me fazia sobre a vida, literatura e como encarar a vida tinham para ele interesse capital. Comungávamos do mesmo medo.

Depois de saber que ele era um homem marcado para morrer desde o início (ficamos doentes na mesma época), todas as nossas conversas ganharam para mim um novo sentido. "Você devia ter me contado", disse eu. Eric riu. Mal se movia na cama, e riu. Eric salvava vidas, mas só temporariamente. Só os livros podem eternizar realmente as pessoas. Essa é a pretensão da literatura - perenizar estrelas tão fugazes com um brilho capaz de ficar no tempo. O sentido desse meu Campo de Estrelas, onde está reservado lugar para todos nós.

terça-feira, 30 de junho de 2009

A aposta que todos perdemos


Morre o homem que salvava vidas

Quando o dr. Eric Wroclawski me disse, em seu consultório, que eu estava curado do tumor que tivera na bexiga – o que significava apenas fazer uma revisão anual dali em diante -, exultei.


- Agora, estamos em iguais condições – eu disse. – Podemos fazer uma aposta. Quem morrer primeiro de nós dois, perde. O único problema dessa aposta é que o vencedor não recebe o dinheiro.


Eu me dava bem com Eric, e vice-versa; durante todo o meu tratamento, ele dizia que achava admirável a maneira com que eu me referia à doença, às dificuldades derivadas dela e a mim mesmo com ironia. O que eu não sabia é que não estávamos em igualdade de condições. Eric descobrira cinco anos antes, mais ou menos ao mesmo tempo que eu, que tinha um tumor na próstata. Mas, ao contrário do meu polipozinho, o tumor dele era incurável.

Entre outros atos de coragem, Eric decidiu não contar nada a ninguém sobre a doença, o que incluía sua família, os médicos que com ele trabalhavam, os amigos e os pacientes – entre eles, eu. Só quem já passou por isso sabe avaliar quanta força é preciso para lidar com tamanho drama sozinho. Vítima da própria doença que tratava, Eric salvou milhares de vidas ao longo de sua carreira – mas sabia que não salvaria a si mesmo.

Ele tinha vontade de morrer em casa, mas as dores o levaram ao hospital onde trabalhava e permaneceu internado por mais de um ano, até falecer, há duas semanas. Quando eu soube da doença, escrevi sobre Eric – especialmente a visita que lhe fiz no hospital, na qual li para ele os trechos do meu romance Campo de Estrelas, em que ele aparece somente como Roger – seu nome do meio (leia nos arquivos de http://www.thalesguaracy.com.br/, com o título “De onde vem a coragem”). Aqui não quero me repetir - somente acrescento minha consternação diante do inevitável.

Algumas pessoas me criticaram, porque naquela coluna eu falava de Eric no passado, quando na realidade ele ainda estava vivo. Eu nunca quis apressar sua morte – apenas me revoltava contra o destino que colhera o homem como eu o havia conhecido.

Durante seu período de internação, de fato Eric continuou, mesmo dentro de suas limitações, a ser o homem ativo que sempre foi. Dirigia o consultório e as instituições que representava, graças ao seu cérebro inesgotável e o caráter de ferro que não obstruía o riso e a generosidade vindos do coração. Tomado pela metástase, só movimentava-se na cama com ajuda, mas ainda sabia rir e ser ele mesmo.


Tinha mais força do que quem estava em pé. Muitos – mesmo médicos – sequer foram visitá-lo no hospital. Para não encará-lo. E encarar seu próprio medo. Mas não se pode fazer juízo – estou certo de Eric também não o faria. Era mesmo difícil. Tanto que fui lá apenas uma vez – fraquejei quando soube que ele havia piorado.

Nunca poderemos nos conformar com o destino, ainda que não possamos fazer nada contra ele. Nesses momentos, um grito de revolta enche o peito e pela minha vontade correria as galáxias até atingir o responsável como um raio olímpico. Para mim, a morte é obra do Diabo, porque não consigo admitir recebê-la das mãos do nosso mesmo Criador. É muita maldade.

Como nas nossas muitas conversas, Eric certamente riria do que estou dizendo, com as mãos pousadas sobre a barriga, girando a cadeira ergométrica levemente. Ele era um médico: para ele, a morte significava meramente um coração ou outra coisa malfeita do organismo que parava de funcionar. E a vida, essa conjunção delicada de mil peças que podem falhar, cessava – muito embora Eric empregasse sua vida e todas as suas forças no sentido de evitá-lo.

Eric morreu, e podia ter sido eu. Salvei-me graças a ele, e ninguém pôde salvá-lo. Venci a aposta, para minha surpresa, mas não recebo nada. Nem mesmo a vida – nos encontraremos, é uma questão de umpouco mais de tempo. Enquanto isso, a força do espírito de Eric permanece comigo, da mesma forma que me acompanhava quando eu, assombrado pela perspectiva da morte, buscava nele amparo para acreditar no futuro, quando nem mesmo ele via algum futuro para si.


Fica aquele travo na língua, o vazio no coração, a revolta na alma. Gostaria de ter conservado Eric para sempre, não apenas por mim, como por todas a quem ele ajudou. Em meu romance, resta um pouco dele, cristalizado para a eternidade, mas a literatura não muda a realidade da morte nem apazigua o coração. A literatura não é suficiente. Nada é suficiente. Nada.