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sexta-feira, 5 de abril de 2013
Caminhando com as estrelas
Há alguns anos, sentado na mesa do bar São Cristóvão, em São Paulo, meu pai disse que gostaria de fazer a caminhada de Compostela, aquela mesma, celebrizada por escritor Paulo Coelho, e que virou uma espécie de clichê da paregrinação nos últimos anos. Como sempre, meu pai fizera o convite daquela forma ("eu vou, quem quiser vai comigo"), eu sabendo que o "quem quiser" era comigo. Passamos uma porção de tempo planejando a viagem, mas, por motivos que eram dele, aquilo era sempre adiado.
Isso resultou num romance, publicado em 2007 pela Editora Globo, chamado Campo de Estrelas. Contava a história de um "publicitário", recém saído da luta contra um tumor na bexiga, que encontra o pai num bar e planeja, por sugestão do pai, a viagem a Compostela. O livro acaba e a viagem nunca acontece. É lembrada uma outra viagem, que realmente fiz com meu pai aos 16 anos, quando ele estava na idade que tenho hoje, 48. Foi uma jornada que fizemos de São Paulo a macchu Picchu, or terra, uma aventura de adolesc~encia, inesquecível para ambos. No livro, como na vida real, a caminhada de Compostela, mesmo, não acontece. Mas o que acontece entre os dois, pai e filho, é que é o importante.
Em outubro passado, meu pai voltou com a ideia de andar para Compostela. As circunstâncias eram semelhantes, mas ao contrário. Dois anos atrás, foi ele a ter um tumor na bexiga. Durante um ano, urinara sangue sem que os médicos lhe dessem uma razão, muito menos a cura. Levei-o a um dos médicos que trataram de mim, anos atrás. Por sorte, meu pai também pôde se curar. Se antes o filho é que saíra de um momento delicado, agora era a vez do pai. Ele disse que agora a caminhada ia acontecer, não importava como. E marcamos uma data para a partida, que se tornou sagrada: hoje.
Entre Campo de Estrelas, o romance, e a viagem de verdade, que começa agora, muita coisa aconteceu. O médico que cuidou de mim quando eu estava doente, Eric Wroclavski, faleceu. Foi vítima do mal que travata: um tumor na próstata, que ele descobriu, por ironia do destino, tarde demais. Não revelou a ninguém que estava doente. Descobriu estar desengandado ao mesmo tempo em que eu descobrira meu polipozinho. Naquele tempo, ele me dissera: "Você tem sorte". Eu não entendia como podia ter sorte com uma notícia daquelas. Hoje, relendo aquele encontro, sei que ele dizia isso porque ele, Eric, não recebera do destino a mesma oportunidade. "Você descobriu a dopença em tempo de se curar", disse ele.
Fui ao hospital visitar Eric, quando ele estava já na fase terminal da doença. Levei, comigo, Campo de Estrelas, onde ele é identificado pelo segundo nome - Roger. Li para ele as partes do livro em que aparece. Preso à cama, sem poder se mexer, reviu nossas conversas, que não eram de médico e paciente, mas de amigos, um procurando ajudar ao outro - eu, sem saber por que ele queria saber tanto de mim, onde buscava também força, por rumar mais rapidamente para a morte. Ao me despedir no hospital, sem saber o que dizer, talvez, ou resultado da confusão mental em que que nos deixa a angústia, fiz uma declaração absurda: "Médicos não salvam ninguém para sempre", disse eu, e apontei o romance deixado na cabeceira do leito hospitalar. "Eu é que salvo."
Depois de Campo de Estrelas, eu me casei, tive um filho, que hoje tem seis anos, escrevi mais um romance, Amor e tempestade, fui editor de livros, mudei novamente de trabalho, me separei, comecei há apenas um mês num novo emprego. Ao ser convidado para o novo trabalho, avisei que precisaria me ausentar a partir de hoje, por duas semanas - um compromisso sagrado. Meu pai diz que a caminhada tem de ser agora e nunca mais, pois se aproxima dos 80 anos - embora permaneça com um vigor impressionante, até ele sabe que não será sempre assim. Não penso em reviver a minha viagem com ele de adolescência, nem em escrever outro romance, mas sei de uma coisa: a presença é insubstituível. Somos amigos. E, quem sabe, Campo de Estrelas terá uma continuação, se não literariamente, pelo menos na minha vida, e na dele também.
Minha vida está uma bagunça. Comprei uma casa, há uma semana. Vou deixá-la desmobiliada, com uma porção de coisas pendentes. Preparei os assuntos de trabalho como pude para poder me ausentar. Beijei meu filho longamente esta manhã, ao deixá-lo na escola. Gravei mensagens para ele, para minha mulher, e sentei para escrever estas linhas. Ao meio-dia, parto, deixando tudo para trás. Encontrarei meu pai no aeroporto. É bom pensar que, por alguns dias, seremos nós dois, novamente, sem endereço certo. Não fizemos grandes preparações, como sempre. Não há um roteiro pré-definido, não sabemos onde nos hospedar, temos pouco ou nenhum equipamento. Como diz meu pai, vamos andar por lá, olhar as estrelas, e ver o que acontece. E, depois, vamos voltar.
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