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terça-feira, 30 de junho de 2009

A aposta que todos perdemos


Morre o homem que salvava vidas

Quando o dr. Eric Wroclawski me disse, em seu consultório, que eu estava curado do tumor que tivera na bexiga – o que significava apenas fazer uma revisão anual dali em diante -, exultei.


- Agora, estamos em iguais condições – eu disse. – Podemos fazer uma aposta. Quem morrer primeiro de nós dois, perde. O único problema dessa aposta é que o vencedor não recebe o dinheiro.


Eu me dava bem com Eric, e vice-versa; durante todo o meu tratamento, ele dizia que achava admirável a maneira com que eu me referia à doença, às dificuldades derivadas dela e a mim mesmo com ironia. O que eu não sabia é que não estávamos em igualdade de condições. Eric descobrira cinco anos antes, mais ou menos ao mesmo tempo que eu, que tinha um tumor na próstata. Mas, ao contrário do meu polipozinho, o tumor dele era incurável.

Entre outros atos de coragem, Eric decidiu não contar nada a ninguém sobre a doença, o que incluía sua família, os médicos que com ele trabalhavam, os amigos e os pacientes – entre eles, eu. Só quem já passou por isso sabe avaliar quanta força é preciso para lidar com tamanho drama sozinho. Vítima da própria doença que tratava, Eric salvou milhares de vidas ao longo de sua carreira – mas sabia que não salvaria a si mesmo.

Ele tinha vontade de morrer em casa, mas as dores o levaram ao hospital onde trabalhava e permaneceu internado por mais de um ano, até falecer, há duas semanas. Quando eu soube da doença, escrevi sobre Eric – especialmente a visita que lhe fiz no hospital, na qual li para ele os trechos do meu romance Campo de Estrelas, em que ele aparece somente como Roger – seu nome do meio (leia nos arquivos de http://www.thalesguaracy.com.br/, com o título “De onde vem a coragem”). Aqui não quero me repetir - somente acrescento minha consternação diante do inevitável.

Algumas pessoas me criticaram, porque naquela coluna eu falava de Eric no passado, quando na realidade ele ainda estava vivo. Eu nunca quis apressar sua morte – apenas me revoltava contra o destino que colhera o homem como eu o havia conhecido.

Durante seu período de internação, de fato Eric continuou, mesmo dentro de suas limitações, a ser o homem ativo que sempre foi. Dirigia o consultório e as instituições que representava, graças ao seu cérebro inesgotável e o caráter de ferro que não obstruía o riso e a generosidade vindos do coração. Tomado pela metástase, só movimentava-se na cama com ajuda, mas ainda sabia rir e ser ele mesmo.


Tinha mais força do que quem estava em pé. Muitos – mesmo médicos – sequer foram visitá-lo no hospital. Para não encará-lo. E encarar seu próprio medo. Mas não se pode fazer juízo – estou certo de Eric também não o faria. Era mesmo difícil. Tanto que fui lá apenas uma vez – fraquejei quando soube que ele havia piorado.

Nunca poderemos nos conformar com o destino, ainda que não possamos fazer nada contra ele. Nesses momentos, um grito de revolta enche o peito e pela minha vontade correria as galáxias até atingir o responsável como um raio olímpico. Para mim, a morte é obra do Diabo, porque não consigo admitir recebê-la das mãos do nosso mesmo Criador. É muita maldade.

Como nas nossas muitas conversas, Eric certamente riria do que estou dizendo, com as mãos pousadas sobre a barriga, girando a cadeira ergométrica levemente. Ele era um médico: para ele, a morte significava meramente um coração ou outra coisa malfeita do organismo que parava de funcionar. E a vida, essa conjunção delicada de mil peças que podem falhar, cessava – muito embora Eric empregasse sua vida e todas as suas forças no sentido de evitá-lo.

Eric morreu, e podia ter sido eu. Salvei-me graças a ele, e ninguém pôde salvá-lo. Venci a aposta, para minha surpresa, mas não recebo nada. Nem mesmo a vida – nos encontraremos, é uma questão de umpouco mais de tempo. Enquanto isso, a força do espírito de Eric permanece comigo, da mesma forma que me acompanhava quando eu, assombrado pela perspectiva da morte, buscava nele amparo para acreditar no futuro, quando nem mesmo ele via algum futuro para si.


Fica aquele travo na língua, o vazio no coração, a revolta na alma. Gostaria de ter conservado Eric para sempre, não apenas por mim, como por todas a quem ele ajudou. Em meu romance, resta um pouco dele, cristalizado para a eternidade, mas a literatura não muda a realidade da morte nem apazigua o coração. A literatura não é suficiente. Nada é suficiente. Nada.