“Vem, disse ele, juntando minhas mãos como se me forçasse a uma prece. Desejei de repente sua boca nervosa que me mordiscava, e suas mãos que redesenhavam meu peito e me estrangulavam com meu próprio cabelo. Implorou algo em meu ouvido,algo em um idioma distante, tapando minha boca com seus dedos que borravam meu rosto de suor.”
O trecho acima, extraído da página 99 do romance Onça Preta (Benvirá), da jornalista, escritora e marchand Lucrecia Zappi, não vem de um romance erótico como Cinquenta Tons de Cinza e, apesar de ser uma obra de ficção escrita por uma mulher, não é exatamente um livro feminino. Relato sobre uma estudante de botânica que vai às terras silenciosas e de gente agreste da Chapada Diamantina, Onça Preta é uma viagem para o lugar que mais interessa aos homens: o interior das mulheres, feito de longos silêncios, de relações não resolvidas, de pensamentos dúbios, que constroem uma lógica aparentemente sem direção.
Com um mestrado em escrita criativa pela Universidade de Nova York, sob orientação de E. L. Doctorow, autor de Ragtime, Lucrecia trabalhou no caderno Ilustrada, do jornal Folha de S.Paulo, e hoje mora em Nova York, onde trabalha em uma galeria de arte. Fala várias línguas, casou várias vezes, nasceu em Buenos Aires, mas foi criada em São Paulo, e estabeleceu estranhas raízes no sertão brasileiro. Onça Preta é uma mistura disso tudo, resultado das divagações de uma mulher de nacionalidades múltiplas, em dúvida sobre o passado, envolta pelo presente e suscetível a um futuro em aberto.
É um romance de artista, não apenas no texto cheio de meandros, capazes de lançar luzes sobre o que os homens custam a entender, como nas ilustrações, feitas pela própria autora, que vai pespontando seu texto com imagens supostamente feitas pela personagem em seus cadernos – assim como um Post, um Eckhout ou um Darwin fora de época, a Beatriz, que é o alterego de Lucrecia, registra cenários, insetos, plantas e outros detalhes sutis da história. Incesto, mistério, diálogos secos, rumos nebulosos e um desfecho insólito traduzem o desafio humano: conviver com nós mesmos e entender os outros, sem julgamento e, talvez, sem esperança. (publicado originalmente na PLAYBOY de outubro)