sábado, 9 de março de 2024

Ainda estamos mudando o mundo

A gente era muito duro, como se supõe que sejam os estudantes de Ciências Sociais da FFLCH, centro de saber da USP, fundado com as bençãos do antropólogo francês Levi-Strauss, onde lecionaram, entre outros, gente tão politicamente diversa como Fernando Henrique Cardoso e Oliveiros Ferreira.

A gente era duro, mas se divertia muito, especialmente eu e Marcos, meu amigo mais próximo da Faculdade, e que seguiu carreira acadêmica, chegando a chefe de departamento de Sociologia na escola onde estudamos.

Naquele tempo, a gente queria ler Foucalt, ver todos os filmes de arte e encher a cara de caipirinha nas festas, muitas das quais Marcos promovia na casa dele, uma república de estudantes durangos, onde não havia quase móveis, localizada perto  da Marginal, do lado oposto ao da Cidade Universitária. Como todo mundo morava ali vindo do interior, era o lugar ideal, porque a gente se divertia sem gastar quase nada, e sem ter que dar satisfação a  pais castradores, que já não podiam nos impedir de fazer qualquer coisa.

Numa dessas festas, por causa do barulho em altas horas, os vizinhos chamaram a polícia. Lembro de duas colegas, Margareth e Monica, me segurando tão discretamente quanto possível contra a geladeira, para me fazer ficar parado em pé, quando os oficiais entraram pela cozinha. Provavelmente graças a elas não acordei no dia seguinte na delegacia.

Não lembro de mais nada da festa, só de levantar na tarde do dia seguinte dentro de um quarto cheio de gente meio pelada, ainda dormindo. E de sair para a rua, passando pela porta aberta da sala, onde um disco de vinil rodava sozinho na vitrola, com a agulha correndo naquele trecho final onde não tem mais música alguma.

Quando casou Denise, a amiga rica da turma, arrumei o carro do meu pai emprestado e fui, com Marcos, buscar Flávia, outra colega, num casarão do Morumbi. Ela saiu metida num casaco de pele que deixou o banco do passageiro espetado de pelos como um ouriço. Lembro de descer voando a ladeira que dá na marginal, da porta do Corcel abrindo na curva e de, com uma mão ao volante, cruzando com o corpo o banco do passageiro, recuperar a porta e evitar que Flavia, dentro daquela bola peluda, fosse cuspida para fora do veículo. (A gente andava em velocidade, sim, e cinto de segurança era só um estorvo que a gente empurrava para sentar.)

Pobres, famintos e sem educação, atacamos o repasto no luxuoso bufê da festa do casamento, tão logo chegamos. Estávamos já empanturrados quando, para nossa surpresa, abriram portas que a gente nem tinha visto, onde ainda estava para ser servido, à francesa, o jantar.

Eu ia da Casa Verde para a USP no Vila Nilo, a linha mais longa e demorada de ônibus da cidade de São Paulo. Preferia pegar os lotados, pois ia pendurado do lado de fora - assim, descia sem pagar a passagem. Na USP, tomava o Circular, ônibus gratuito que levava da entrada para as faculdades dentro do campus, mas a gente preferia pegar carona, que saía de um ponto informal, na calçada oposta à do Rei das Batidas - bar célebre pela presença dos estudantes que planejavam como mudar o mundo enquanto sorviam sua célebre batida de morango. 

A gente viajava muito - e sem dinheiro, o que era quase um milagre. Eu e Marcos passamos um carnaval em Paraty, onde fui encontrar secretamente uma mulher casada. Como a cidade já estava lotada, e não tínhamos dinheiro, dormimos debaixo da escada de um hotel que estava fechado, em obras, no meio de um monte de entulho.

Líamos A Regra do Método Sociológico, de Durkhein, no primeiro ano, e íamos ao cinema. Vimos tudo o que dava. Na Mostra Internacional de Cinema, com sessões às vezes no meio da tarde, assistimos todo tipo de filme maluco, como Koyaanisqatsi, em sua estreia - um filme sem diálogos,  apenas paisagens grandiloquentes, aceleradas sob música de orquestra, retumbante sucesso de público e crítica, e prenúncio das preocupações sobre a preservação do planeta, então um tema inexistente.

No Cineclube Bixiga, na rua 13 de Maio, vimos todos os filmes de arte que podíamos, como os de Buñuel - Bela da Tarde, Viridiana, etc. Vimos filmes que ninguém via, na plateia quase vazia - como Limite, do Mário Peixoto, um filme mudo, com horas de duração, um clássico quase desconhecido da cinematografia brasileira. A bilheteira do cinema era a Simone Mateos, filha do Raul, o livreiro comunista que tinha uma banquinha na faculdade, e era minha colega de classe também no curso de Jornalismo, da ECA.

Primórdios da era digital, o Cineclube, além de passar todos os filmes que não entravam em grande circuito, tinha uma simpática placa de leds na bilheteria. A gente escolhia onde sentar e o led verde ficava vermelho. Algo impensável nos outros cinemas, onde não havia lugar marcado.

Eu e Marcos lemos O Capital nas aulas da Elisabete Lobo, e nos especializamos em Metateoria, a ciência que estuda a ciência como método de conhecimento, com o professor Jeremias e uns cachorros vadios que andavam pelas salas de aula. Jogávamos pingue-pongue no centro acadêmico e quando sobrava algum dinheiro almoçávamos na Biologia, porque lá estudavam as garotas mais bonitas (e tinha comida macrobiótica).

Certo dia, no xerox (sim, a gente copiava os capítulos dos livros que tínhamos de ler, mas era em papel), um sujeito de barba, um ou dois anos na nossa frente, disse: "Amanhã nós vamos roubar um banco".

Todo mundo já deve ter feito essa brincadeira um dia, de maneira que rimos e fomos para a sala de aula. Só que, para nosso espanto, dois dias depois, estava lá o colega estampado na primeira página da Folha de S. Paulo. O título era algo como "aluno de Ciências Sociais preso em tentativa de assalto" -  numa agência do Bradesco ao lado da Cidade Universitária. 

Foi um alvoroço - menos pela prisão do estudante da escola, do que por um detalhe. O sujeito tinha ido assaltar o banco com uma camiseta, com a qual saiu na foto da autuação, feita pela polícia, e reproduzida na primeira página dos jornais, estampada com a estrela e a sigla do PT. 

Estávamos sempre em algum tipo de crise. Uma hora, tínhamos de ocupar a reitoria, em protesto contra o autoritarismo. Outra hora, a ocupação era do Crusp, o restaurante onde dava para encher o bandejão pagando uns trocados. Lembro de um dia ficar sentado de cócoras no chão, em uma ocupação da reitoria, ao lado de uma parede de vidro, separado da polícia armada para a guerra do outro lado por aquela fina película transparente. Dava para sentir dali o bafo dos policiais, prontos para a ação.

Era o fim da ditadura militar e a maioria de nós não queria saber de esquerda ou direita, só de retomar a normalidade democrática, trabalhar pelo desenvolvimento e sermos felizes para sempre. Fomos com a multidão no comício das Diretas-Já e havia um clima de euforia com o futuro que se construía, misturado à energia da juventude. Não apenas queríamos mudar o mundo: o mundo estava mudando, e éramos a história viva e em ação.

Havia, também, a tragédia. Uma vez, ao chegar à Universidade, vindo pela marginal, avistei um sujeito que se enforcara, pulando da ponte da Rebouças, e cujo corpo balançava sobre o rio Pinheiros. Surpresa ainda maior foi, ao chegar à faculdade, saber que ele estudava lá.  Surgiu uma onda de remorso coletiva contra a falta de interesse pelo semelhante, a ponto de ninguém saber que alguém estava a ponto de se suicidar. Como tudo, aquilo virou tema de debate.

A insensibilidade para com o outro, ou a sensibilidade despertada quando é tarde demais, foi uma lição mais importante para mim que o estudo de Maquiavel e Tocqueville. Entender a sociedade, como objeto científico, pressupõe antes de mais nada o reconhecimento da importância do outro e da força da coletividade, para todos nós.

É um tema fundamental ainda hoje, em que as pessoas estão cada vez mais solitárias, apesar da exposição a que estão submetidas pelas redes sociais - talvez porque não exista solidão maior do que a de estar no meio de uma multidão.

Entendi na escola que a insensibilidade pelo drama do indivíduo aumenta quando a sociedade inteira está à deriva. E hoje nós, agora mais velhos, ainda nos penitenciamos: procuramos saber o que fizemos de errado, afinal, para o mundo caminhar de volta ao autoritarismo e ao desentendimento.

As Ciências Sociais foram muito importantes para mim. Para escrever, é preciso ter o que. O curso me ajudou a pensar, a entender os movimentos históricos e coletivos, a aprender com o diferente. 

Política me deu estofo para cobrir essa área, como repórter e editor de veículos como Veja. Sociologia me ajudou a entender que a sociedade tem um movimento próprio, que pode ser estudado pela observação científica, como elementos químicos ou corpos celestes. 

Antropologia me deu fundamentos para aceitar como válido todo tipo de vida humana e a perspectiva de cada um sobre si mesmo. Enriqueceu minha visita a aldeias indígenas e o meu entendimento dos povos originários - o que me ajudou, por exemplo, a escrever o que talvez seja a parte mais fascinante do meu primeiro livro de história, A Conquista do Brasil, que já teve pelo menos cinco reimpressões.

Em Jornalismo, essa minha formação sempre orientou o que escrevi sobre a sociedade brasileira, a política e o desenvolvimento do país. Como repórter, embora tenha prazer em conhecer as pessoas, nunca deixei de ser muito tímido. Preferia estar na redação, como nos livros, escrevendo (como se diz no jargão da profissão, sou um "fechador").

Exercitei-me na tarefa de identificar o importante e fazê-lo se tornar interessante. Para isso, foi fundamental o capital instalado pelo conhecimento das Ciências Sociais, que utilizo para buscar ao mesmo tempo a visão ampla (o contexto) e profunda (o insight).

Hoje posso dizer que participei ativamente de mudanças importantes no Brasil, especialmente o restabelecimento do estado de direito, a redemocratização e  a estabilização econômica. O país melhorou muito, inquestionavelmente, em relação a si mesmo e perante o mundo. Por essa razão, acredito que minha geração produziu para si mesma (e, esperávamos, para nossos filhos e netos) um certo oásis de paz e prosperidade na agitada história brasileira.

As coisas, porém, estão mudando, dentro de um movimento global de concentração de renda e empobrecimento. Velhos desafios parecem estar de volta, como uma erva daninha.

Para mim, isso significa que ainda há o que fazer. E ainda saímos, eu e Marcos, para ir ao cinema, discutir essas coisas e planejar outra vez o mundo. O que envelhece é só o corpo. Ainda somos meninos - e andamos pensando em dar uma festa.

domingo, 3 de março de 2024

Tognolli e um certo senso de justiça


Claudio Julio Tognolli tinha um Chevette meio desconjuntado, e ia me dando uma carona no campus da USP, ao mesmo tempo em que filosofava, porque tinha saído fazia pouco tempo do RPM, onde tocava guitarra - e de repente a banda estava fazendo o maior sucesso, enquanto ele, meu colega de classe, estava ali de meu motorista. Mas não perdia o bom humor.


- Sabe, a gente tem três chances na vida - ele disse. - A primeira, a gente nem sabe que perdeu. A segunda, a gente perde por incompetência. A terceira, não pode perder. O difícil é saber que oportunidade foi esta que eu perdi: se foi a primeira, a segunda ou a última.


Com pouco mais de 18 anos, eu era ainda mais duro do que ele, mas achava que havia toda uma vida de oportunidades pela frente para todos nós, uma geração que saiu daquela escola com as mesmas aspirações (e teve muito sucesso).


O Paulo Ricardo, do RPM, que era mais velho, e estava em algum ano mais adiante, eu só conhecia de jogar futebol no gramado em frente à escola - já ia pouco à aula. Mas eu, Tog e muitos outros convivemos, por amizade e também pelos encontros da profissão.


Depois dos dois anos básicos, em que todos estudávamos juntos, a turma foi dividida nos cursos específicos - o William Bonner, por exemplo, foi para o marketing (só faria jornalismo muito tempo depois). Mesmo no Jornalismo, a gente se dividia - algumas matérias eram optativas e tinham poucos alunos, como Matemática da Comunicação, onde nos inscrevemos só o Marcelo Rubens Paiva e eu. Mas todo mundo se encontrava na entrada, onde sentávamos num mesa de açougue, de aço inoxidável, antes das aulas, e íamos às festas juntos. A partir de certa altura, passamos também a trabalhar juntos, na Editora Abril e outros veículos que pegavam quase turmas inteiras da ECA para as redações.


Tog sempre foi músico, mas em vez do RPM escolheu a imprensa, e não qualquer imprensa. Queria fazer jornalismo investigativo, especialmente na área policial, por causa de um senso de justiça muito grande, que vinha de um coração do mesmo tamanho. 


Sempre a mil, vivia caçando bandidos, esquemas, traficâncias. Desde logo viu a interseção entre a bandidagem pura e simples e a política, o que o levou a enfrentar gente poderosa. Era corajoso e agia sempre como se nada tivesse a perder. Ironizou os riscos da profissão, usando no lançamento de uma coletânea de histórias em 1978 (Mídia, Máfias e Rock'n'roll) uma fotografia na qual apontava um revólver para a propria cabeça.


Arriscava o pescoço sem medo, razão pela qual se manteve íntegro, mesmo num ambiente altamente tóxico e perigoso, onde sempre tem alguém tentando aliciar a imprensa para acobertar a sujeirada, em vez de saneá-la, ou se dispõe a tirar o jornalista do caminho, quando necessário.


Arrumou inúmeras polêmicas, pela disposição de expor a verdade, custasse  que custasse. Arrumou processos variados, como um movido pela JBS, por uma reportagem na qual denunciava que o juiz Sergio Moro teria sido subcontratado pela empresa, por meio de um escritório de advocacia chamado Warde. Levou também paulada de todo lado quando publicou em 2017 a tomografia da primeira dama Marisa Letícia, quando ela se encontrava hospitalizada por conta do AVC.


Era eclético, escrevendo, falando no rádio ou mesmo na TV. Original, inventivo, inquieto, incansável - fez reportagens em mais de 30 países, por vezes infiltrado em torcidas violentas de futebol, organizações criminosas e seitas radicais. Professor de Jornalismo na escola em que nos formamos, procurava passar adiante esse bastão, ou esse espírito, de estar sempre investigando, questionando, e nunca desistir: enfrentar e apresentar a verdade a qualquer custo. 


Cultivava muitas maluquices, como seu fanatismo pelo professor Timothy Leary, que entrevistou ainda  no começo de carreira e de quem se tornou uma espécie de "discípulo". Lembre-se, Leary era um defensor do uso do LSD no tratamento psiquiátrico, e que resolveu fazer de sua morte uma espécie de espetáculo público, depois de publicar um livro em que propunha uma nova visão da morte. 


Tinha na verdade dificuldade de lidar com a morte e estava sempre querendo ajudar alguém. Quando eu era editor de ficção e não ficção da Saraiva, apareceu com a ideia de lançarmos um livro sobre o Roy Cicala, da Record Plant, que tinha sido a maior gravadora de discos americana, de Jimmi Hendrix a John Lennon.


Tog andava com Roy para cima e para baixo. Queria registrar a história dele, não só por ser relevante para a história da música, como para seu levantar seu astral, pois Roy tinha vindo para o Brasil por causa de uma filha brasileira e estava com sérios problemas de saúde. Morreu, de fato, logo depois do livro - que publicamos pelo selo Benvirá, com o título A Porta Mágica, referência ao hábito dos artistas americanos de passarem a mão na porta de entrada da gravadora, depois de Hendrix espalhar a lenda de que aquilo dava sorte.


Por trás da obsessão do jornalista, estava aquele coração. Acho que ele o usou tanto que o gastou ao longo da vida. Virou o seu ponto fraco. Acabou internado, esteve às portas da morte e salvou-se por milagre, embora dependesse ainda de um transplante.


Fui visitá-lo num hospital, perto da cidade de Embu-Guaçu, na companhia dos jornalistas Hugo Studart e Simone Souto Maior, que levou para ele escondido um sanduíche de mortadela. Acho que gostou mais da mortadela do que da nossa presença, depois de dois meses de comida hospitalar.


Recentemente, estava muito feliz por ter ganhado um "coração novinho", como ele mesmo descreveu pelo Instagram. Ter trocado de coração, porém, foi algo que sua mente, mais que seu corpo, provavelmente, acabou não aceitando.


Este domingo, perdi um amigo e o jornalismo brasileiro um de seus mais importantes samurais. Não há mais uma vida de oportunidades pela frente - e a última ele acaba de perder. Mas há uma lista de realizações, e um exemplo de vida que eu registro, para que todos possam se lembrar.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Inteligência artificial, ou morte cerebral

A inteligência artificial, desenvolvida para substituir capacidades humanas, com mais eficácia, é dessas grandes soluções tecnológicas que se tornam também uma ameaça à vida, lançando a pergunta sobre o que será da humanidade quando mais nada tiver a fazer. Igualmente ameaçadora, porém, a meu ver, é a transformação da inteligência humana numa inteligência artificial, como já ocorre, com um efeito muito danoso para a sociedade e o futuro da espécie à qual pertencemos. Desculpem a conclusão antes da demonstração, mas quero dar aqui um exemplo para que entendam do que estou falando. Recentemente, vi no Youtube uma entrevista com um auto-denominado crítico literário, que atende pelo pseudônimo de Décio Machado, fazendo graça com a ideia de menoscabar o trabalho alheio. O link me foi enviado pelo Alessandro Thomé, brilhante autor que, por sinal, escapou das machadadas do suposto crítico, por seu romance Perto dos Olhos de Deus, ao qual "Machado" faz muitos elogios. Esta ferramenta da inteligência nacional detecta com muita razão que hoje a crítica literária, como de resto a sociedade, avalia não apenas a obra, mas o escritor, como se autor e obra fossem uma coisa só. Por isso, não se poderia mais fazer a avaliação de uma obra, sem fazer também uma checagem da vida pessoal do autor, para saber se ele tem (ou teve) um bom comportamento. Daí tentativas de “cancelamento” de gente como Kafka, por exemplo. Ora, não faltam autores brilhantes de comportamento discutível, aos olhos de ontem, como de hoje. Bukowski era um bêbado. Zelda Fitzgerald, louca. Jack London, um marginal. Martha Gelhorn, amante de Hemingway, uma vagabunda oportunista. A lista é imensa. Por uma miríade de razões, escritores que nem vivos mais estão continuam sendo perseguidos. Monteiro Lobato, que foi para a cadeia no Estado Novo, hoje para muitos deve ser execrado porque escreveu num livro para crianças que Tia Nastácia era “beiçuda”, entre outras coisas. Lewis Carroll escreveu Alice no País das Maravilhas porque era pedófilo. Gabriel Garcia Márquez era um assediador de mulheres e um porco chauvinista. E muita gente nem entende qual a relação entre a psiquê de Kafka e Metamorfose, mas já vai cancelando autor junto com a obra porque seria um putanheiro. Acontece que a própria criação está frequentemente ligada a psiquês turbulentas, comportamentos desviantes e biografias tumultuadas. Essa relação por sinal foi muito bem analisada por um importante psicanalista, o doutor Anthony Storr, num brilhante livro, que aponta a relação entre a criatividade e uma conturbada vida pessoal de gente considerada muito criativa, intitulado "A Dinâmica da Criação". Chancelar um escritor por "bom comportamento" na vida pessoal, o que elimina do mapa a maior parte da literatura mundial, é inteligência artificial, porque parece inteligente, mas desumaniza o entendimento. Grande parte dos autores, especialmente de ficção, escrevem justamente por causa de sua tumultuada psiquê. E isso não fala mal sobre o autor, ao contrário. Por vezes, escrever um livro é uma forma de auto análise a céu aberto, por parte de um ser humano que assim aprende e dessa forma evita cometer novamente os mesmos erros. Muitas vezes, um autor busca no exercício literário justamente purgar sentimentos, refletir, corrigir, e melhorar a própria vida. Essa experiência é justamente o que bem serve ao futuro leitor. Essa é a grande contribuição da literatura e o que separa o autor de sua obra. O autor pode levar uma vida condenável ou miserável e sofrer o julgamento de seu tempo (e de tempos posteriores), por razões as mais variadas. Sade é um grande exemplo. Euclides da Cunha tentou matar o amante da mulher - e morreu. Alvarenga Peixoto era um sonegador de impostos. Tomás Antonio Gonzaga terminou Marília de Dirceu na cadeia. Dostoiévski também foi preso – e registrou a experiência em Recordações da Casa dos Mortos. Não adianta estar de um lado ou outro, porque a perseguição varia de lado. Dalton Trumbo foi boicotado no marcartismo pela pecha de ser comunista. Soljenítsin foi para um Gulag por se opor ao comunismo. E por aí vai. Mas não faz sentido jogar fora a obra literária, confundido-a com o autor, que morre, mas ela, com as reflexões que provoca, fica. Como autor, sei bem o valor da literatura como um exercício de auto conhecimento, reflexão e uma forma de melhorar a vida – a nossa e possivelmente de alguém. É essa experiência humana, ofertada de forma generosa e às vezes arriscada, que tem um valor inestimável e eterno para futuros leitores, que podem assim olhar para si mesmos, descobrir e resolver até mesmo as piores mazelas. Como diz o Caetano, olhado de perto, ninguém é normal. Por trás de todo cidadão com dedo em riste, ou querendo cancelar alguma coisa, há um hipócrita querendo ocultar o próprio comportamento. Na maior parte dos casos, aqueles que acusam os outros estão apenas acobertando seus próprios erros – ou não os aceitam, porque não sabem lidar com eles. Incomoda tudo aquilo que lhes diz respeito mas é estranho ou mal visto neles mesmos, por eles mesmos. Em geral, olhados de perto, os moralistas são os maiores corruptos, pervertidos e imorais. Não há maior moralização da sociedade que pela liberdade. Lê um livro quem quer. Até o Mein Kampf. O que não pode haver é a destruição da reputação e dos seres humanos, vivos e mortos, e sobretudo a censura, isto é, impedir que uma obra venha a público, com a intenção de evitar que outras pessoas façam seu próprio juízo. Ter acesso a tudo e formar opinião própria é um direito de todos. Infelizmente a inteligência artificial, cheia de falsa moral e falsas verdades, está se disseminando - não nos robôs, mas nos seres humanos. A literatura e a liberdade são o único remédio contra a mecanização da inteligência. A disseminação dessa forma de inteligência por lobotomizadores só pode visar o fim da liberdade, controlando a cultura e, por ela, o cidadão. Não podemos ser robôs. E a literatura é o grande antídoto contra a morte cerebral da sociedade.

domingo, 18 de fevereiro de 2024

O Canto de Nassau

Sempre fui fascinado pela figura de Maurício de Nassau. Agora que escrevo uma versão em poema de meus livros de história, posso expressar algo do que ele representa para mim. Saiu, a ser incluso nesse futuro livro, um trecho que por enquanto chamo de Canto de Nassau. 

É uma parte daquilo em que o ChatGpt não conseguiu me ajudar. Então, lá vou eu, fazendo sem pressa, mas sem perder tempo.

Diz assim:


CANTO DE NASSAU

 

Quando ao zarpar me perguntaram
porque em vez de mais soldados eu levava
ao Brasil pintores, escritores e cientistas
e em vez de mais armas carregava sábios e artistas
para a guerra inofensivos
eu me perguntava para que servem à maioria
o astrolábio e os livros
e com isto eu me ria

Para o bom governo das empreitadas
de longo alcance em missão tão importante
não se faz bastante a mão
de ferro nem a visão
do mais ousado governante
é preciso saber usar espadas
mas para ficar em algum lugar
é preciso bem administrar
saber mudar com o quadrante
num mundo que se expande
onde só a arte mostra e ensina
está por trás e contamina
faz pensar melhor - e grande

Só a arte mostra o belo
lhe dá valor e dimensão
e a ciência pode fazê-lo
realiza o sonho com a razão

Arte e ciência são a fonte
de toda e qualquer sabedoria
e quando me perguntavam por que ria
ao zarpar olhando o horizonte
é por que sei como serão
grandes os homens que o futuro farão
como o homem do passado já fazia

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

A máquina trabalhando por você. Será?


Resolvi empreender uma tarefa hercúlea, ou diria melhor, tarefa camoniana, convertendo meus livros de história num poema épico sobre o Brasil. Comecei, de fato, mas diante da enormidade da tarefa, achei melhor pedir ao ChatGpt escrever para mim, como se fosse eu.
 
​Veio isto abaixo. Que acham???


​Pedido: "escreva uma poema baseado no livro A Conquista do Brasil de Thales Guaracy​"


A história se desdobra como um rio caudaloso
Nas páginas ecoam os feitos admiráveis
De um povo e sua terra, um destino grandioso

Das florestas exuberantes aos mares reluzentes
O Brasil se revela em sua plenitude
A saga dos bravos desbravadores e pioneiros
Celebrada com fervor e magnitude

Das tribos nativas à chegada dos portugueses
Nasce um país de contrastes e diversidades
O choque de culturas, o encontro de almas
Forjando uma nação de ricas identidades

Das guerras históricas aos feitos coloniais
A bravura e a paixão se entrelaçam
Nas terras tropicais, o pulsar de uma história
Que se enraíza em cada pedaço que abraçam

Os heróis que fizeram desta terra sua morada
Os feitos grandiosos que ecoaram pelo tempo
A visão de Thales Guaracy nos guia
Por uma jornada de amor e sentimento

Em suas páginas, o Brasil se desdobra
Como um tapete de memórias e devoção
E a poesia se enlaça com a prosa
Revelando a grandeza desta nação

Assim, "A Conquista do Brasil" se torna
Uma ode à terra amada, à sua gente
Um tributo a todos os que a tornaram forte
E uma inspiração para um futuro reluzente


​Pedi então para fazer uma versão com 360 páginas...
Deu preguiça na máquina, diante da "tarefa monumental". Saiu um "poema modesto", de seis estrofes, sendo a última delas um pedido de desculpas:


Thales Guaracy: Escreva um poema épico de 360 páginas sobre a formação do Brasil no período colonial

ChatGPT


Abre aspas:

"Criar um poema épico de 360 páginas sobre a formação do Brasil no período colonial seria uma tarefa monumental. No entanto, posso oferecer um resumo poético que captura a essência desse período histórico:

Nos mares vastos, além do horizonte, Surge uma terra de riquezas sem fim. O colonialismo tece sua saga, No Brasil, berço de um novo destino.

Portugueses, aventureiros destemidos, Em terras selvagens, vislumbram o ouro. Exploram as florestas, desbravam caminhos, Fundam vilas, erguem o sonho pioneiro.

Com sangue, suor e lágrimas se forja A nação que há de se erguer soberana. Indígenas, africanos, mistura de povos, Culturas se entrelaçam na colônia lusitana.

Entre canaviais e engenhos de açúcar, A mão escrava sustenta a economia. Resistem os nativos, ergue-se a resistência, No seio da terra, pulsando energia.

Sinuosas tramas políticas e sociais, O Brasil colonial é forjado em luta. Da união das diferenças, surge a esperança, Do novo mundo, uma pátria que se enxerga.

Este poema modesto é apenas um vislumbre Da grande história do Brasil colonial. Rica em nuances, em nuances mergulhada, Uma saga épica, de valor sem igual.

Se você deseja explorar mais a fundo este tema, recomendo estudar mais sobre a história do Brasil no período colonial e deixar sua própria criatividade te guiar na escrita de uma obra tão grandiosa."

Fecha aspas.

Bem, acho que não tem jeito. Vamos arregaçar as mangas e tentar a tarefa "grandiosa".










domingo, 7 de janeiro de 2024

Os que foram e os que ficaram

Paolo Paradisi tem 58 anos, é arquiteto de formação, mas diz que não há emprego para arquitetos na Itália, ainda mais para quem passou  dos 30 anos. Mora na antiga casa da família,  a dez minutos do aeroporto de Bolonha, e vive de hospedar e alimentar pilotos de passagem.

Conto que minha família materna é dali. Meu avô  José era chamado de Iusfen eu havia andado no dia anterior nos campos de meus bisavôs, caminhando entre os povoados de Crevalcuore, Ravarino e Santa Ágata Persiceto, e que eles haviam deixado em 1892.

Paradisi me explica que Iusfen é diminutivo de Iussef, que por sua vez é Iussef, Joseph, Giuseppe, ou José, portanto meu avô era "Zezinho". Vai até seus armários atulhados e tira um livro de família e um velho álbum.

Mostra as fotos de sua família,  que viveu perto de Ravarino, como a de minha mãe - as planícies úmidas, que já foram pântano antes de recortadas por canais, onde grassava a malária, nos tempos de meu bisavô.

Há dois adolescentes de pernas muito brancas e finas, resultado da poliomielite. Paradisi explica a migração daquelas terras para o Brasil,  no final do século XIX, período que narro em meu romance Filhos da Terra.

"O problema não era a malária, era a fome", diz. "Senta, vou fazer um almoço para o neto do Iusfen. Hoje, você não vai passar fome na Itália. E não vai pagar nada. "

Cozinha para mim uma massa com o "verdadeiro ragu bolonhês", regado a vinho tinto romeno (!), seguido por tiramisù gelado molhado com nocino, um licor de nozes, uma delícia do paraíso.

Eu saio deliciado daquele repasto.  No final, insisto em pagar pelo almoço,  afinal é um hotel. Ele, porém, se recusa a receber.  E nos despedimos com um abraço. 

A vida ainda não é tão fácil, mas Bolonha tem essa a alma italiana, deste e outros tempos. Como mostra essa pequena história de seus filhos, ainda unidos pelo amor, tanto dos que foram,  como dos que ficaram.

sábado, 6 de janeiro de 2024

Zagallo e o Brasil

 

Eu não gostava do Zagallo. Achava o homem arrogante e ultrapassado. Na Copa de 1970, eu era muito criança e lembro mais do último jogo, pela grande festa. Naquela Copa, ele parou no tempo. Em 1974, de que me lembro mais, o Brasil tomou um samba da Holanda, que jogava como deveria jogar o Brasil. Parecia um time da rua, jogando pelada. Fizeram uma paródia da música da Copa de 70 para hostilizá-lo. Lembro até hoje: "Todo mundo de porrete na mão/esperando o Zagallo/sair do avião".


Como ele mesmo disse, tivemos de engoli-lo por muito tempo. Ele tinha razões para ser arrogante: bi campeão do mundo como jogador, tri como técnico,  tetra como coordenador,  era o mais vitorioso e quem tinha mais experiência nesse negócio de ganhar um torneio traiçoeiro, em que o melhor geralmente tropeça num time retranqueiro qualquer. Dizia ter sorte, amava o número 13, mas era na verdade um especialista, que conhecia Copas como ninguém.


Não obstante, a morte de Zagallo me bateu como uma grande tristeza. Ele tinha algo incomparável: o amor incondicional pelo Brasil, o entusiasmo pela seleção,  e certeza da nossa grandeza, em um esporte que passou a ser nosso, e mais, prova de que o Brasil pode tudo, em qualquer coisa.


Zagallo era isto: uma injeção de ânimo num país que, como dizia Nelson Rodrigues, passou do viralatismo para provar o gosto da vitória. E quem sabe realizar outros projetos de grandeza, como oferecem nossos imensos recursos humanos e naturais.


Simbolizava a emancipação do viralata brasileiro,  da qual ele se tornou a instituição encarnada. Receio que sem Zagallo esteja perdido o grande bastião dessa devoção à pátria,  esse orgulho que beira a arrogância,  essa vontade e certeza de ganhar, e amar incondicionalmente o que é nosso, acima de vitórias e derrotas. Hoje, Zagallo, eu que nunca gostei de você  tiro meu chapéu e digo: que falta você nos faz.