terça-feira, 30 de janeiro de 2024

A máquina trabalhando por você. Será?


Resolvi empreender uma tarefa hercúlea, ou diria melhor, tarefa camoniana, convertendo meus livros de história num poema épico sobre o Brasil. Comecei, de fato, mas diante da enormidade da tarefa, achei melhor pedir ao ChatGpt escrever para mim, como se fosse eu.
 
​Veio isto abaixo. Que acham???


​Pedido: "escreva uma poema baseado no livro A Conquista do Brasil de Thales Guaracy​"


A história se desdobra como um rio caudaloso
Nas páginas ecoam os feitos admiráveis
De um povo e sua terra, um destino grandioso

Das florestas exuberantes aos mares reluzentes
O Brasil se revela em sua plenitude
A saga dos bravos desbravadores e pioneiros
Celebrada com fervor e magnitude

Das tribos nativas à chegada dos portugueses
Nasce um país de contrastes e diversidades
O choque de culturas, o encontro de almas
Forjando uma nação de ricas identidades

Das guerras históricas aos feitos coloniais
A bravura e a paixão se entrelaçam
Nas terras tropicais, o pulsar de uma história
Que se enraíza em cada pedaço que abraçam

Os heróis que fizeram desta terra sua morada
Os feitos grandiosos que ecoaram pelo tempo
A visão de Thales Guaracy nos guia
Por uma jornada de amor e sentimento

Em suas páginas, o Brasil se desdobra
Como um tapete de memórias e devoção
E a poesia se enlaça com a prosa
Revelando a grandeza desta nação

Assim, "A Conquista do Brasil" se torna
Uma ode à terra amada, à sua gente
Um tributo a todos os que a tornaram forte
E uma inspiração para um futuro reluzente


​Pedi então para fazer uma versão com 360 páginas...
Deu preguiça na máquina, diante da "tarefa monumental". Saiu um "poema modesto", de seis estrofes, sendo a última delas um pedido de desculpas:


Thales Guaracy: Escreva um poema épico de 360 páginas sobre a formação do Brasil no período colonial

ChatGPT


Abre aspas:

"Criar um poema épico de 360 páginas sobre a formação do Brasil no período colonial seria uma tarefa monumental. No entanto, posso oferecer um resumo poético que captura a essência desse período histórico:

Nos mares vastos, além do horizonte, Surge uma terra de riquezas sem fim. O colonialismo tece sua saga, No Brasil, berço de um novo destino.

Portugueses, aventureiros destemidos, Em terras selvagens, vislumbram o ouro. Exploram as florestas, desbravam caminhos, Fundam vilas, erguem o sonho pioneiro.

Com sangue, suor e lágrimas se forja A nação que há de se erguer soberana. Indígenas, africanos, mistura de povos, Culturas se entrelaçam na colônia lusitana.

Entre canaviais e engenhos de açúcar, A mão escrava sustenta a economia. Resistem os nativos, ergue-se a resistência, No seio da terra, pulsando energia.

Sinuosas tramas políticas e sociais, O Brasil colonial é forjado em luta. Da união das diferenças, surge a esperança, Do novo mundo, uma pátria que se enxerga.

Este poema modesto é apenas um vislumbre Da grande história do Brasil colonial. Rica em nuances, em nuances mergulhada, Uma saga épica, de valor sem igual.

Se você deseja explorar mais a fundo este tema, recomendo estudar mais sobre a história do Brasil no período colonial e deixar sua própria criatividade te guiar na escrita de uma obra tão grandiosa."

Fecha aspas.

Bem, acho que não tem jeito. Vamos arregaçar as mangas e tentar a tarefa "grandiosa".










domingo, 7 de janeiro de 2024

Os que foram e os que ficaram

Paolo Paradisi tem 58 anos, é arquiteto de formação, mas diz que não há emprego para arquitetos na Itália, ainda mais para quem passou  dos 30 anos. Mora na antiga casa da família,  a dez minutos do aeroporto de Bolonha, e vive de hospedar e alimentar pilotos de passagem.

Conto que minha família materna é dali. Meu avô  José era chamado de Iusfen eu havia andado no dia anterior nos campos de meus bisavôs, caminhando entre os povoados de Crevalcuore, Ravarino e Santa Ágata Persiceto, e que eles haviam deixado em 1892.

Paradisi me explica que Iusfen é diminutivo de Iussef, que por sua vez é Iussef, Joseph, Giuseppe, ou José, portanto meu avô era "Zezinho". Vai até seus armários atulhados e tira um livro de família e um velho álbum.

Mostra as fotos de sua família,  que viveu perto de Ravarino, como a de minha mãe - as planícies úmidas, que já foram pântano antes de recortadas por canais, onde grassava a malária, nos tempos de meu bisavô.

Há dois adolescentes de pernas muito brancas e finas, resultado da poliomielite. Paradisi explica a migração daquelas terras para o Brasil,  no final do século XIX, período que narro em meu romance Filhos da Terra.

"O problema não era a malária, era a fome", diz. "Senta, vou fazer um almoço para o neto do Iusfen. Hoje, você não vai passar fome na Itália. E não vai pagar nada. "

Cozinha para mim uma massa com o "verdadeiro ragu bolonhês", regado a vinho tinto romeno (!), seguido por tiramisù gelado molhado com nocino, um licor de nozes, uma delícia do paraíso.

Eu saio deliciado daquele repasto.  No final, insisto em pagar pelo almoço,  afinal é um hotel. Ele, porém, se recusa a receber.  E nos despedimos com um abraço. 

A vida ainda não é tão fácil, mas Bolonha tem essa a alma italiana, deste e outros tempos. Como mostra essa pequena história de seus filhos, ainda unidos pelo amor, tanto dos que foram,  como dos que ficaram.

sábado, 6 de janeiro de 2024

Zagallo e o Brasil

 

Eu não gostava do Zagallo. Achava o homem arrogante e ultrapassado. Na Copa de 1970, eu era muito criança e lembro mais do último jogo, pela grande festa. Naquela Copa, ele parou no tempo. Em 1974, de que me lembro mais, o Brasil tomou um samba da Holanda, que jogava como deveria jogar o Brasil. Parecia um time da rua, jogando pelada. Fizeram uma paródia da música da Copa de 70 para hostilizá-lo. Lembro até hoje: "Todo mundo de porrete na mão/esperando o Zagallo/sair do avião".


Como ele mesmo disse, tivemos de engoli-lo por muito tempo. Ele tinha razões para ser arrogante: bi campeão do mundo como jogador, tri como técnico,  tetra como coordenador,  era o mais vitorioso e quem tinha mais experiência nesse negócio de ganhar um torneio traiçoeiro, em que o melhor geralmente tropeça num time retranqueiro qualquer. Dizia ter sorte, amava o número 13, mas era na verdade um especialista, que conhecia Copas como ninguém.


Não obstante, a morte de Zagallo me bateu como uma grande tristeza. Ele tinha algo incomparável: o amor incondicional pelo Brasil, o entusiasmo pela seleção,  e certeza da nossa grandeza, em um esporte que passou a ser nosso, e mais, prova de que o Brasil pode tudo, em qualquer coisa.


Zagallo era isto: uma injeção de ânimo num país que, como dizia Nelson Rodrigues, passou do viralatismo para provar o gosto da vitória. E quem sabe realizar outros projetos de grandeza, como oferecem nossos imensos recursos humanos e naturais.


Simbolizava a emancipação do viralata brasileiro,  da qual ele se tornou a instituição encarnada. Receio que sem Zagallo esteja perdido o grande bastião dessa devoção à pátria,  esse orgulho que beira a arrogância,  essa vontade e certeza de ganhar, e amar incondicionalmente o que é nosso, acima de vitórias e derrotas. Hoje, Zagallo, eu que nunca gostei de você  tiro meu chapéu e digo: que falta você nos faz.

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Um eletrizante voo pela história


Wendy Fernandes Evangelista e Fernando Alves de Lima e Silva se aproximam da produtora de cinema Joana Henning, no hall dos cinemas Multiplex, no shopping Eldorado, onde tinham acabado de assistir à pré-estreia do filme O sequestro do voo 375, na noite da terça-feira, dia 5. Conversam com Henning e, chorando, os dois se abraçam.

Ambos tiveram suas vidas tragicamente ligadas pela história real narrada no filme. Fernando é filho do piloto Fernando Murilo e Silva, que comandava o voo, falecido em 2020, aos 76 anos de idade. Wendy é filha do copiloto Salvador Evangelista. Tinha oito anos quando seu pai foi morto com um tiro na cabine, quando respondia ao chamado da torre, pelo sequestrador do voo, Raimundo Nonato.

- Se ninguém mais visse o filme, teria valido só por isto - digo a Joana.

- É o spin off - diz ela, com um sorriso.

O sequestro do voo 375 é antes de mais nada uma história humana, a começar pela do piloto Fernando, um herói brasileiro de verdade, desses que são colocados pelas circunstâncias diante de decisões em que a própria vida deixa de ser o mais importante.

O filme assume os relatos dos passageiros, expondo também as versões oficiais sobre tudo o que aconteceu - a do governo e da companhia aérea. Lembra a constrangedora tentativa de acobertar a verdade, típica dos governos covardes e atrabiliários, que carregam ainda muito mais os esqueletos do passado que o embrião do futuro.

Aponta, mais especialmente, que material de imprensa sobre o sequestro foi encontrado nas cavernas do Afeganistão onde havia se abrigado Osama Bin Laden. Sugere que o líder da Al Qaeda estudou o caso brasileiro, no planejamento do sequestro de voos civis para lançar seu ataque às torres gêmeas, em Nova York, assim como o Capitólio e o Pentágono, em 11 de setembro de 2001.

O que Bin Laden aprendeu com o caso brasileiro é que o fator que impediu a execução do plano de sequestro foi justamente o piloto. Como relato em meu livro A Era da Intolerância, o líder da Al Qaeda decidiu treinar os próprios terroristas kamikazes para pilotar os aviões, de modo a assumirem o comando do voo. Não podiam, como Nonato, depender do comandante.

Fizeram cursos de pilotagem, com um detalhe, estranhado pelos instrutores. Nenhum deles compareceu às aulas finais, que versavam, justamente, sobre a aterrissagem.

A história do sequestro acaba sendo um filme de ação, mas é também um excelente painel de uma época. O sequestrador é algoz, mas também vítima - e quem viveu aquele período do Brasil sabe como foi difícil a saga da redemocratização. Foi também o de reeconstrução de uma nação arrasada pela prepotência política e o dirigismo econômico estatal, com suas consequências na vida de todos.

O desespero é a maior fonte do radicalismo e dos movimentos irracionais, que levam aos grandes desastres, tanto dos indivíduos quanto da coletividade. Nestes tempos em que os radicais novamente se levantam, o filme de Joana é, além de grande entretenimento, bastante oportuno.

Mostra que, assim como ocorreu com os instrutores de voo americanos, não podemos ficar indiferentes aos sinais do dia a dia, nem menosprezar aonde as crises podem levar. Um país civilizado e próspero é aquele que não precisa de heróis - embora eles existam e estejam entre nós.

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

O Brasileirão e o que há de errado com o brasileiro












A gente, no Brasil, tem a estranha mania de falar mal da gente mesmo e de achar um lado negativo em tudo o que acontece. Voltamos ao complexo de viralatas, do qual Nelson Rodrigues escrevia, antes de o Brasil ser campeão do mundo pela primeira vez - quando o brasileiro, pelo menos no futebol, deixou essa mentalidade do subdesenvolvimento e passou a ser mais positivo e confiante. A repercussão do Brasileirão de 2023 mostra essa tendência para o catastrofismo, a inclinação para ver somente a desgraça, em vez do mérito. Circula agora na imprensa, nos bares, nas conversas dos torcedores a história de que foi o Botafogo que perdeu o campeonato, e não o Palmeiras que o ganhou. Um jornalista, que atende pela sigla de RMP, fez pouco caso do que teria sido a "arrancada" palmeirense. Disse que não foi arrancada, e sim queda do Botafogo, já que todo mundo se aproximou. Repete o que se fala em toda parte. Sempre é possível ver um copo meio cheio ou meio vazio, mas a inclinação do brasileiro para enxovalhar os derrotados, como um consolo ou conformismo com o derrotismo nacional, assim como desvalorizar os vitoriosos, que são apenas os derrotados de amanhã, é uma característica terrível da nossa personalidade coletiva. E que, diga-se de passagem, passa uma impressão falsa. O Palmeiras venceu o campeonato, não o Botafogo que o perdeu. Venceu numa arrancada com 8 vitórias em 10 jogos e a partir de um jogo memorável, que decidiu o campeonato, dentro dele mesmo uma arrancada heróica: a vitória no jogo decisivo contra o próprio Botafogo, por 4 a 3, com um gol no último lance, depois de estar perdendo por 3 a 1 e ainda ter um pênalti contra, aos 37 minutos do segundo tempo. Embora o Botafogo tivesse perdido um jogo para o Flamengo, depois de longa e impecável série de resultados, e de um primeiro tempo brilhante em que aplicou 3 a 0 no mesmo Palmeiras, a virada épica do time de verde não mudou apenas o jogo, como o campeonato. Ao buscar uma vitória que parecia impossível, o Palmeiras não apenas ganhou a partida, como mostrou que ganhar o Brasileiro também era possível. Nessa partida, o Palmeiras quebrou o espírito do Botafogo. O time que já foi o de Garrincha perdeu a confiança, de tal forma que não mais se levantou. Numa corrida final em que os competidores se aproximaram, faltou justamente o que o Palmeiras já tinha e passou a ter de sobra. Está acostumado a ser campeão, e, como mostrou aquele jogo no qual se impôs contra todas as probabilidades, sempre disposto a tentar o incrível. Antes colecionando vitórias, o Botafogo passou a esmorecer e ceder o placar no final dos jogos, tomando viradas ou deixando o adversário empatar nos últimos minutos, sem a força mental que compensa o cansaço, para assegurar a posição. O Palmeiras venceu porque foi melhor que o Botafogo e os outros competidores que tornaram o campeonato emocionante até o final, especialmente o Atlético Mineiro, o Flamengo e, um pouco mais atrás, Grêmio e Bragantino. Foi melhor no mais importante: na força mental, capaz de decidir disputas parelhas, numa competição decidida nos detalhes. Tecnica e taticamente, todos estavam no mesmo nível. Todos tiveram de alguma forma de se reiventar ao longo do campeonato: uns trocaram de técnico; o Palmeiras, de elementos importantes para a equipe, de forma a suprir a ausência de jogadores alijados da competição por contusões graves: Dudu, Menino, Roni. O Palmeiras achou forças no momento decisivo. Inclusive mais de um reforço: Endrick, um garoto de 17 anos que comandou um grupo de campeões na partida mais perdida e depois mais ganha da história palmeirense. Endrick deu sangue novo ao ataque, ao próprio time, e impulsionou o Palmeiras, enquanto outros ficavam pelo caminho. Essa é a maior virtude do carismático técnico Abel Ferreira. O português é um especialista em fortalecer seu time, não apenas tática e tecnicamente, como mentalmente. Trabalha sobretudo a força mental, que conta muito, sobretudo quando todo o resto é tão equilibrado. A virada sobre o Botafogo mostra a importância de uma mentalidade vencedora, forja de quem não desiste, e quem, mesmo quando perde, sai de cabeça erguida, sabendo que vencer de novo é questão de tempo. É o contrário do derrotismo brasileiro, que gosta de tripudiar sobre quem perde e desvaloriza não só o derrotado, como o vencedor. É uma autoimagem que não condiz com nosso país e desmerece a nossa gente. Quem leu A Conquista do Brasil, meu primeiro livro de história, sabe que o Brasil é resultado de uma arrancada não menos heróica e improvável. Somos a maior prova do mundo, na verdade, de que é muito possível conseguir qualquer coisa, quando a gente olha para o alto, e não para o chão.

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Além da Memória, ou: por que escrevemos

Está saindo pela Assírio & Alvim Brasil o poema em livro Além da Memória, em que procuro explorar o passado mais remoto do ser humano – ou de mim mesmo. Revisito a primeira infância – o “tempo sem palavras”, quando ainda antes de aprendermos a falar, ou racionalizar, construímos nossa personalidade, com a noção sobre sentimentos, como o amor e o medo. Uma forma de cognição pouco compreendida, mas tão presente e influente no adulto, como digo, "artificialmente construído".

Escrever Além da Memória não foi nada fácil e começou num momento de forte impacto pessoal, quando minha mãe estava já muito doente de câncer, e meu filho era recém-nascido. Para lidar com sentimentos tão conflitantes, passei a rabiscar umas memórias, primeiro em prosa. Mas não estava satisfeito. Daquela forma, não conseguia me exprimir. Reescrevi tudo, então, como o poema, que foi apresentado em parte na Casa das Artes, no Porto, em Portugal, por iniciativa da pianista brasileira Enóe Ferrão, com participação da atriz Mariya Victorivna, e sai agora completo, em livro.

Desse tempo em que nascia Além da Memória, ficou esse registro aqui:

"23h29 de 3 de novembro de 2016. Faz algum tempo acabei o romance que será publicado ano que vem. Escrevo agora o livro mais difícil da minha vida. Nem sei se terei coragem de apresentá-lo um dia. Acabo esse trecho, abaixo. Não falta tanto para o fim. Escrevo na esperança de que tenha um fim. Mas receio que nunca acabe.

'Quando minha mãe morreu, meu filho tinha dois anos de vida. Eu olhava para ele como se olhasse para mim mesmo no começo de tudo. Meu filho estava aprendendo a viver. Andava sem dar a mão, aproximava-se de desconhecidos, avançava curioso sobre tudo. Descobria como o mundo é maravilhoso. Avaliava e tentava se certificar da importância de cada pessoa que conhecia, dentro do seu universo. ('Você é o meu vovô?', perguntava repetidas vezes a meu pai). Via o sol, as estrelas. Experimentava, fantasiava. Certo dia, apanhei-o batendo com um tubo de cola na testa. Explicou que tentava colar nele mesmo a sua sombra.

É ao mesmo tempo belo e duro aprender a viver; mais duro ainda, talvez belo, seja aprender a viver com a morte. Pessoas que perderam cedo os pais ou outros entes queridos têm de fazê-lo também cedo. Não existe uma ordem natural para as coisas; o destino muitas vezes é tomado pelo acaso e só nos resta enfrentá-lo como ele vem.

É difícil encarar a morte enquanto estamos cheios de vida; ela não pode se tornar uma sombra, colada na testa, pois aquele que chora ou  teme o fim diariamente, morre um pouco também todos os dias. É preciso assimilar as piores tristezas e os fatos mais duros da existência e ainda assim manter a cabeça erguida, a dignidade e a alegria.

Eu me encontrava nesse estágio do aprendizado; via a vida florescer, ao mesmo tempo em que tinha de aprender a conviver com a dor da grande perda. Era sorte, ser também pai; isso me ajudava a manter a coragem de seguir em frente, pois exigia uma motivação superior a qualquer tristeza.

Filhos são um bem do céu, não porque nos trazem felicidade, mas porque pedem de nós a felicidade. Não apenas dão alegria, como a exigem de nós. Por eles, todos os dias temos de sorrir, de brincar e esquecer nossos males. Crianças não nos dão tempo para a dor.

Ao mesmo tempo em que ensinamos os filhos, aprendemos com eles. Não é apenas pelas crianças que se deve seguir em frente, mas por nós mesmos, e pela criança que há dentro de nós. É na infância, a nossa e dos nossos filhos, ou dos que vêm depois, que está uma fonte permanente de felicidade. Por isso, aquele que não ri nem se alegra com as crianças está morrendo sem saber.

Aquele que aprendeu a viver com a morte talvez esteja mais preparado para aprender a morrer; cada etapa parece servir de antesala da próxima, cada degrau da sabedoria leva a outro. Provavelmente, quando não achamos um degrau, ou perdemos o pé, é porque não subimos direito o anterior."

Esse era o livro em prosa. Quando levei os dois, poema e prosa, a meu antigo editor, Pedro Paulo Senna Madureira, para me ajudar a decidir o que fazer, ele me disse para guardar a prosa. Gostou, mas achou melhor o poema, mais livre, profundo e afetivo. "Este livro é você" - ele me disse. "Triste, sombrio, com esplêndidos raios de sol."

Fez profecias, como o de que eu não me casaria novamente. Como editor e amigo de grandes escritores confessionais, como Clarice Lispector e Pedro Nava, sabia por experiência. "Nenhuma pessoa vai dar o que você precisa" - ele me disse. Essa, creio, para alguns, é a função da arte.

Escrever Além da memória me deu paz - a paz possível. Enquanto escrevia, voltei às lembranças mais remotas, de meus tempos de criança – um menino que não podia andar, com a difusa lembrança de crianças brincando ao longe, atrás do vidro; meus pais,  às voltas com aquele “filho torto”; o mundo circunscrito a um tapete; e, por fim, a imaginação como liberdade.

Em Além da Memória, eu sou filho, mas também pai; sou adulto, e sou menino; evoco ali minha diretriz primordial, essencialmente afetiva. A poesia como linguagem agora para mim se explica, como relato do quase indizível, a começar pelas invisíveis teias da relação entre mãe e filho, nossa ligação mais essencial.

Dividido em duas partes – “Sombra e Luz” e “Menino de apartamento”, Além da Memória é um suave documentário de momentos profundamente íntimos, ou um ensaio sobre o ser humano, no que tem de mais essencial. Traz a criança que frequentemente toma as rédeas da vida, surpreendendo o adulto, às vezes contra ou apesar da razão.

Como diz meu próprio pai, os filhos nascem para ensinar os pais. Foi isso que vivi  quando meu filho começou a crescer, uma espécie de espelho do tempo, quando eu me despedia de minha mãe, mas queria não perder o menino que há em mim.

Por muito tempo hesitei em trazer à luz o poema, porque não sabia qual a razão de expor algo tão pessoal. Hoje, eu sei. A única coisa que explica essa necessidade,  e razão pela qual escrevo, e todos escrevemos, creio, é acreditar que esse sacrifício da intimidade pode de alguma forma fazer as pessoas que amamos viverem para sempre.


terça-feira, 7 de novembro de 2023

Duas mães. E o Brasil

O mais comovente da convocação pela seleção brasileira do Endrick, atacante de 17 anos do Palmeiras, depois do mágico jogo contra o Botafogo, foi ver a dona Cíntia, mãe dele, feliz com a felicidade do marido, o seu Douglas, que trabalhou de pedreiro e pediu um emprego de servente no clube quando o filho foi jogar lá.

Endrick ser convocado para a seleção, porém, não foi o momento mais emocionante da vida da dona Cíntia. E ela disse qual foi. E por que.

"Quando ele pisou no gramado do Alianz Park pela primeira vez, foi como se tivesse pegado um diploma na mão", disse a dona Cíntia.

O Brasil inteiro cabe nessa declaração de mãe. 

Dona Cíntia lembrou minha mãe, dona Marlene, professora da rede de ensino público, quando viu o primeiro boletim do neto, André, que tinha então só dois aninhos, mas recebeu na escola, no fim do ano, uma avaliação.

Ao pegar aquele papel, minha mãe, que ensinava até a adultos as primeiras letras, quando achava algum analfabeto, e me ensinou a ler e escrever, olhou e... As lágrimas saltavam dos seus olhos.


Se tem uma coisa que mexe comigo, e o amor da mãe. E o Brasil. Quando as duas coisas se juntam, então...

Seja feliz, dona Cíntia. Seu diploma está no coração.