terça-feira, 5 de dezembro de 2023
O Brasileirão e o que há de errado com o brasileiro
quinta-feira, 9 de novembro de 2023
Além da Memória, ou: por que escrevemos
Está saindo pela Assírio & Alvim Brasil o poema em livro Além da Memória, em que procuro explorar o passado mais remoto do ser humano – ou de mim mesmo. Revisito a primeira infância – o “tempo sem palavras”, quando ainda antes de aprendermos a falar, ou racionalizar, construímos nossa personalidade, com a noção sobre sentimentos, como o amor e o medo. Uma forma de cognição pouco compreendida, mas tão presente e influente no adulto, como digo, "artificialmente construído".
'Quando minha mãe morreu, meu filho tinha dois anos de vida. Eu olhava para ele como se olhasse para mim mesmo no começo de tudo. Meu filho estava aprendendo a viver. Andava sem dar a mão, aproximava-se de desconhecidos, avançava curioso sobre tudo. Descobria como o mundo é maravilhoso. Avaliava e tentava se certificar da importância de cada pessoa que conhecia, dentro do seu universo. ('Você é o meu vovô?', perguntava repetidas vezes a meu pai). Via o sol, as estrelas. Experimentava, fantasiava. Certo dia, apanhei-o batendo com um tubo de cola na testa. Explicou que tentava colar nele mesmo a sua sombra.
É ao mesmo tempo belo e duro aprender a viver; mais duro ainda, talvez belo, seja aprender a viver com a morte. Pessoas que perderam cedo os pais ou outros entes queridos têm de fazê-lo também cedo. Não existe uma ordem natural para as coisas; o destino muitas vezes é tomado pelo acaso e só nos resta enfrentá-lo como ele vem.
É difícil encarar a morte enquanto estamos cheios de vida; ela não pode se tornar uma sombra, colada na testa, pois aquele que chora ou teme o fim diariamente, morre um pouco também todos os dias. É preciso assimilar as piores tristezas e os fatos mais duros da existência e ainda assim manter a cabeça erguida, a dignidade e a alegria.
Eu me encontrava nesse estágio do aprendizado; via a vida florescer, ao mesmo tempo em que tinha de aprender a conviver com a dor da grande perda. Era sorte, ser também pai; isso me ajudava a manter a coragem de seguir em frente, pois exigia uma motivação superior a qualquer tristeza.
Filhos são um bem do céu, não porque nos trazem felicidade, mas porque pedem de nós a felicidade. Não apenas dão alegria, como a exigem de nós. Por eles, todos os dias temos de sorrir, de brincar e esquecer nossos males. Crianças não nos dão tempo para a dor.
Ao mesmo tempo em que ensinamos os filhos, aprendemos com eles. Não é apenas pelas crianças que se deve seguir em frente, mas por nós mesmos, e pela criança que há dentro de nós. É na infância, a nossa e dos nossos filhos, ou dos que vêm depois, que está uma fonte permanente de felicidade. Por isso, aquele que não ri nem se alegra com as crianças está morrendo sem saber.
Aquele que aprendeu a viver com a morte talvez esteja mais preparado para aprender a morrer; cada etapa parece servir de antesala da próxima, cada degrau da sabedoria leva a outro. Provavelmente, quando não achamos um degrau, ou perdemos o pé, é porque não subimos direito o anterior."
terça-feira, 7 de novembro de 2023
Duas mães. E o Brasil
O mais comovente da convocação pela seleção brasileira do Endrick, atacante de 17 anos do Palmeiras, depois do mágico jogo contra o Botafogo, foi ver a dona Cíntia, mãe dele, feliz com a felicidade do marido, o seu Douglas, que trabalhou de pedreiro e pediu um emprego de servente no clube quando o filho foi jogar lá.
Endrick ser convocado para a seleção, porém, não foi o momento mais emocionante da vida da dona Cíntia. E ela disse qual foi. E por que.
"Quando ele pisou no gramado do Alianz Park pela primeira vez, foi como se tivesse pegado um diploma na mão", disse a dona Cíntia.
O Brasil inteiro cabe nessa declaração de mãe.
Dona Cíntia lembrou minha mãe, dona Marlene, professora da rede de ensino público, quando viu o primeiro boletim do neto, André, que tinha então só dois aninhos, mas recebeu na escola, no fim do ano, uma avaliação.
Ao pegar aquele papel, minha mãe, que ensinava até a adultos as primeiras letras, quando achava algum analfabeto, e me ensinou a ler e escrever, olhou e... As lágrimas saltavam dos seus olhos.
Se tem uma coisa que mexe comigo, e o amor da mãe. E o Brasil. Quando as duas coisas se juntam, então...
Seja feliz, dona Cíntia. Seu diploma está no coração.
terça-feira, 31 de outubro de 2023
O homem mais importante que o presidente
- Não.
Como se sabe, Aécio profeticamente perdeu a eleição - não foi presidente. Mas até ele passou a saber quem era Danilo Miranda.
Danilo foi maior que o poder público não apenas na verba, como na conscientização. Abriu o Sesc, uma entidade de lazer para comerciários, ao público em geral, usando a verba de que dispunha para ampliar seu alcance - e seu benefício. Foi mais do que precisava ser, não só porque podia, mas porque queria e porque sabia.
Foi do erudito à arte popular. Criou centros culturais, promoveu o teatro, as artes plásticas, a música, o cinema, a literatura. De forma geral, fez mais pelas artes, pelo entretenimento e pela cultura que a maioria dos ministros e secretários que passaram pela área ao longo das décadas de seu trabalho.
A despedida meio tribal de Danilo, no Sesc Pompeia, com gente cantando e dançando ao redor de um caixão, serviu para mostrar que o trabalho com inteligência e amor à arte não morre, é festejado. Não devia sê-lo apenas pela tribo artística, mas por todos os brasileiros para quem não é preciso ser político, na pior acepção da palavra, para dirigir alguma coisa no Brasil. Ao menos da maneira como se deve, no esforço que parece às vezes inglório, de levar este país a um outro patamar.
terça-feira, 24 de outubro de 2023
O que há no fundo de nós
Lanço agora em novembro, pela Assírio & Alvim, Além da Memória - talvez o livro mais difícil que já escrevi, por diversas razões. Primeiro, é extremamente íntimo, o que me fez retardar por muito tempo a sua publicação. Segundo, por ter sido parte de um esforço profundo de auto conhecimento - e de entendimento do ser humano, creio - literalmente desde o berço.
Comecei a escrevê-lo, de certa forma, quando meu filho nasceu, 17 anos atrás. Ao observá-lo, pude acompanhar de perto o desenvolvimento da vida em todas as suas fases - e isso trazia lembranças, evocações, da minha própria infância, além do que eu achava que era capaz de lembrar.
Comecei a investigar obscuras memórias, o "tempo sem palavras", em que ainda nem aprendemos a falar - e, portanto, a racionalizar. É o período mais marcante da vida, e do qual menos lembramos ou conhecemos. Ainda mais no meu caso, porque, devido a um diagnóstico médico, o prognóstico era de que eu jamais poderia andar - um drama que afetou a vida da família e a minha mesmo, de um jeito que só hoje eu sei o quanto.
Com o nascimento do meu filho, descobri muitas coisas, sobre ele, as crianças e sobre mim. Algumas delas, por conta do nascimento de seu primeiro neto, minha própria mãe me contou.
Uma dessas descobertas foi que ela jamais me amamentou. Quando me disse isso, pensava não em mim, mas na diferença entre as gerações, com certa pena dela mesma. Convalesceu um mês no hospital, depois da cesariana, uma cirurgia que naquela época deixava um corte vertical na mulher e era bem mais tosca que hoje em dia.
No primeiro dia em que se levantou, teve ir para o trabalho. Professora primária, foi cuidar de outras crianças, para ganhar dinheiro e enfrentar o imprevisível sustento de um filho que saíra torto.
Naquele tempo, e eu falo de 1964, não havia licença-maternidade nas empresas. A indústria fazia muita propaganda do leite em pó, especialmente o Ninho, que diziam ser muito melhor – além de mais prático – do que o leite materno. Bobagem, como se sabe hoje, mas é o que se acreditava naquela época.
Fazia-se muitas outras coisas estúpidas com as crianças, então muito normais, como embrulhá-las em cueiros. Naquele tempo não havia ainda a fralda descartável. Os nenês usavam a fralda de pano e depois eram enrolados naquele algodão mais grosso, até virar um charuto.
A função do cueiro era tolher os movimentos, conforme a antiga crença de que isso ajudava a conformar as pernas. Só pude andar depois dos dois anos de idade.
Quando meu próprio filho saiu andando, da mesinha de centro até o sofá, uma distância de meio metro metro, aos oitos meses de idade, chorei - e ninguém entendeu. Nem eu.
Quarenta e quatro anos depois do meu nascimento, quando minha mãe morreu e revirei sua caixa de fotografias, vi que ela me tomava no colo com aqueles olhos de amor da mãe. Lamentei não lembrar daquilo.
Somente quando meu filho nasceu, pude saber melhor como é esse amor, por vê-lo nos olhos da mãe dele. Pensei em quantas coisas não me lembrava a respeito de mim mesmo, porque pertencem ao tempo do qual realmente não nos lembramos. Ou melhor, não sabemos como lembrar.
Com um mês de vida, estou certo de que meu filho já me reconhecia, bem como à mãe, e sabia quem dele cuidava. É a fase humana do maior aprendizado, porque saímos do zero para um mundo imenso e ainda essencialmente emocional, não verbal, como forma de cognição.
Eu me perguntava onde paravam as lembranças desse primeiro contato com o mundo, a memória dessa fase que, mesmo sem ser traduzida em palavras, não deixa de ser a base da nossa personalidade, e da inteligência, eminentemente intuitiva.
O que chamamos de memória é a memória racional, construída com imagens e palavras. Os psicanalistas que consultei consideram que a memória, entendida como tal, começa a partir das primeiras palavras. Estou certo, porém, de que existe uma memória anterior, do tempo em que não falávamos, mas sentíamos e tomávamos contato com o mundo desta maneira sensorial.
Para descrever isto, primeiro tentei a prosa, mas não estava satisfeito. Compreendi que a única linguagem que mais se aproxima desse mundo sensorial da criança é a do poema. A poesia, que fala mais pelo que deixa entre as palavras, mais sugere do que descreve, flertando com o sentimento mais puro, ou a "não-palavra", é o que achei para usar.
Essa memória feita de luz e de sombra, de toque, de cheiros e estímulos como dor, incômodo, carinho e tudo o que podemos reconhecer sensorialmente, incluindo o amor, é ainda mais importante porque não a compreendemos direito. Nos acostumamos a usar para isto o instrumento de reconhecimento errado, que é o verbal e racional. Porém, essa inteligência sensorial e indefinível só porque ser compreendida no seu próprio campo, e vive por trás do que somos, não apenas na infância, como no resto da vida - ou, como digo no poema, no adulto "artificialmente construído".
Não compreendemos as mensagens desse aprendizado primordial porque elas estão no campo do sentimento puro, do aprendizado não verbal, intuitivo, quase instintivo. Às vezes, agimos sem saber por quê, ou reagimos a algo, sem saber a razão, ou até mesmo contra ela, por algum impulso aparentemente inexplicável. Acredito hoje que se trata da manifestação dessa memória afetiva, que nos faz reagir segundo um aprendizado anterior à memória racional.
Algo mais antigo ou profundo e que não somos capazes de compreender e resolver bem porque nos acostumamos a traduzir nossos sentimentos em palavras.
Ao ver meu filho, tão pequeno e já com personalidade tão definida, capaz de reagir a estímulos como um beijo e um carinho, um barulho, um grito ou a música clássica, entendi que essa memória sensorial e afetiva só pode ser compreendida e manifestada também sensorial e emocionalmente. Colocada em segundo plano quando se usa apenas a razão, está por trás de muito do nosso comportamento e muitas vezes aflora e tomas as rédeas da vida, sem sabermos por que.
A maior influência na vida do ser humano não é percebida, pois é em grande parte inata. Na maternidade, a enfermeira que trouxe meu filho de madrugada, para mamar pela primeira vez, disse: “Ele é muito calmo, mas quando fica bravo, fica muito bravo”.
Em uma frase, com poucas horas de observação, acabou de defini-lo como ele é hoje, dezesseis anos depois, e provavelmente como será a vida inteira.
A personalidade inata de cada criança faz com que ela reaja de maneira própria aos primeiros estímulos externos. Uma criança pode receber uma reprimenda com indiferença ou compreensão, enquanto outra, diante da mesma severidade, pode ficar magoada ou abalada pela vida inteira. Cada indivíduo se molda de forma diferente a como o mundo nos trata, quando caímos dentro dele.
Por meu filho, observando como ele tomava conhecimento da vida, e criando com ele nosso relacionamento mudo, mas cheio de afeto e significado, imaginei que eu poderia penetrar nessa caixa preta emocional, entender muito do que sou, fazer uma investigação da memória afetiva até encontrar não apenas essa conexão com ele, como a minha própria personalidade essencial.
Poderia entender a raiz do meu comportamento e também de alguns dos meus problemas - enfim, daquilo que me levou a ser o que eu sou, para o bem e para o mal.
Uma investigação ao começo, ou ao fundo de mim mesmo, algo em que penso cada vez mais, estranhamente na medida em que vou ficando mais velho, como se o tempo nos levasse de volta a nós mesmos - nós que estamos lá, ainda, naquela criança.
Isto é, acredite, Além da Memória - um onírico mergulho no universo interior e, talvez, de umas vidas passadas.
sexta-feira, 6 de outubro de 2023
A mais VIP das revistas
Na década de 1990, dirigi durante seis anos a revista VIP, então chamada de VIP Exame, quando era ainda um suplemento de EXAME, publicado mensalmente - EXAME era quinzenal, e VIP alternava as quinzenas com Informática EXAMe, que também mais tarde se tornaria independente, com o nome de Info. Primeiro, sob a supervisão do jornalista Antonio Machado, então diretor de EXAME, e depois de José Roberto Guzzo, que me dava completa liberdade para trabalhar (conversávamos apenas sobre as capas, a única coisa que ele queria ver quando eu fechava).
Foi também a primeira a entrevistar e perfilar um então jovem empresário chamado Eike Batista. Pela primeira vez, uma publicação contava a história de como Eike fizera fortuna nos garimpos da Amazônia, abria empresas a passos rápidos e causava furor ao se casar com a bomshell do momento, Luma de Oliveira, num rumoroso caso de abandono duplo dos ex-noivos de ambos, que fervia nas colunas sociais.
Eike, que me recebeu da primeira vez com uma pistola sobre a mesa num escritório no Flamengo, queria mostrar como havia se tornado campeão em competições de superlanchas nos Estados Unidos, com um barco na época invencível - o "Espírito do Amazonas". Mais tarde, me receberia com Luma no iate clube e passou uma tarde fotografando para a capa da revista em um de seus barcos de corrida. E desapareceria da mídia por mais de uma década.
Havia, também, escritores consagrados. Lembro com carinho de uma série especial da seção "Viagem Inteligente", com o relato de escritores sobre seus lugares favoritos no mundo. Lygia Fagundes Telles escreveu sobre Gotemburgo; Antonio Callado, sobre Roma; Nélida Piñon, sobre Barcelona; Luís Fernando Veríssimo, sobre Paris.
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O concurso Barilla: marco no comportamento masculino |
terça-feira, 8 de agosto de 2023
Amor e Tempestade e a picardia
No cinema, o herói picaresco mais conhecido é Forrest Gump, um sujeito meio imbecilizado que corre o mundo, participa involuntariamente de grandes episódios históricos, dos quais acaba fazendo parte decisiva, embora sem querer. É a natureza do herói pícaro.
Em Amor e Tempestade, o meu Coracy - qualquer semelhança no nome deve ser coincidência - entra involuntariamente entre os 18 de Forte de Copacabana (que eram 19...), conhece o padre Cícero, Lampião, Rondon, Oswald de Andrade, e e por aí vai. Acaba sendo o personagem central da história brasileira. Infelizmente, ninguém o reconhece!
A literatura pícara sempre teve poucos autores no Brasil, embora se apreste com perfeição ao nosso tropicalismo cultural. Para quem não conhece bem o gênero, recomendo algumas leituras.
O maior clássico da literatura picaresca brasileira é Manoel Antônio de Almeida, com seu Memórias de Um Sargento de Milícias. Temos também o Fernado Sabino de O Grande Mentecapto; Chico Buarque, cujos romances navegam todos nesse gênero, especialmente Estorvo; e José Roberto Torero, brilhante romancista histórico-picaresco, de quem recomendo o sardônico O Chalaça, o obscuro ajudante de D. Pedro I, de quem Torero faz o verdadeiro e insuspeitado patrono da independência brasileira.
O romance picaresco nasceu como o antípoda dos grandes heróis românticos dos folhetins medievais, ironizando-os. A grande obra que elevou o gênero aos maiores clássicos foi Dom Quixote. Na minha opinião, é a maior obra literária de todos os tempos, justamente por mostrar como vivemos sonhos de grandeza, na pequeneza do que somos: a grande contradição do ser humano.
Por muito tempo considerado literatura menor, o gênero picaresco, na tradição do Dom Quixote, talvez seja o maior, assim como seu personagem, porque o contrário também é verdadeiro: na nossa pequeneza, lutando contra a miséria humana, no fim, nós somos grandes.
Melhor ainda, trata disso com certa leveza, uma auto ironia, que não por acaso gerou esta palavra para mim tão cara: a picardia. Designa uma forma de enfrentar as dificuldades da vida, aceitar com naturalidade o erro, a derrota, o azar. Sobretudo, é uma forma de lidar com as pequenas e grandes traições da vida, como a indiferença, a ingratidão e o desamor, que não merecem de nós mais que a ironia.